O Lopes tinha vindo de Moçambique. O pai parece que tinha propriedades por lá. Dispunha de um quarto individual, embora interior, o que era então um invejado luxo, no lar universitário da rua da Torrinha, no Porto, onde eu também vivia, nessa metade dos anos sessenta do século passado.
Talvez saudoso dos ares do Índico, muitas vezes, o Lopes trazia uma cadeira e vinha conversar connosco para a varanda traseira. Por ali, com o Lopes Feio, o Nelson Pacheco e o Matias, restantes ocupantes do andar, ficávamos à cavaqueira, pela noite dentro. Eu era caloiro, eles andavam pelo menos um ano adiantados.
Recordo que estávamos no tempo da Guerra dos Seis Dias e que o Lopes era fanaticamente pró-árabe, não por uma simpatia particular pelos adversários de Israel, mas porque tinha os judeus em muito má conta. Ouvia-lhe comentários sobre os “exageros numéricos” do Holocausto e sobre a oportunidade perdida pelo Hitler, de que o Lopes era admirador confesso, na luta contra a União Soviética.
Um dia, nessas conversas, veio à baila a neve. Eu era o único, dos cinco, que vinha de uma terra com regulares nevões. E “pintava” os invernos de Vila Real a neve e branco, os feriados no liceu que a neve oferecia, o isolamento que provocava na cidade e coisas assim. Ao que me lembro, nesse tempo, pelo menos de três em três anos, Vila Real acordava “sob um alvo manto de neve”, como reiteradamente escrevia, sem originalidade, a imprensa local.
O Neves era um madrugador. Eu era, como sou sempre que posso, um contumaz “late riser”. Um dia, ouvi um restolho no quarto. Alguém afastava o estore de palhinha em que eu e o Lopes Feio investíramos para dividir a nossa assoalhada. Abri os olhos e vi a sombra esguia do Lopes, debruçado sobre a minha cama, a acordar-me: “Ó Seixas, anda ali à janela!” O dia estava ainda a começar. Posso imaginar a imprecação que devo ter emitido, o lugar onde lhe devo ter recomendado que fosse, mas o Lopes foi insistente e eu, zonzo de sono e em pijama, pelo gelo da manhã, lá acedi em ir à varanda. Lá chegado, ouvi do Neves: “Ó Seixas! Isto é neve?”
Olhei para aquelas traseiras da Torrinha, com um pouco dos Clérigos a ver-se ao fundo, o casario do Breyner e do Rosário no amanhecer cinzento, e, sem o menor entusiasmo, confirmei: “Sim, é neve. Porquê?”. Aquilo, na verdade, nem era neve que se visse, eram uns míseros fiapos a fingir de neve, sem condições de “pegar”, que é o único estatuto digno de uma nevada que se preze.
“Eh pá! É que eu nunca tinha visto neve!” O “moçambicano” Lopes ali ficou extasiado, debruçado no frio da varanda, a admirar o que era apenas um genérico pobre de um nevão a sério. E eu lá me fui deitar, que a noite da Candeia ainda me pesava.
Há horas, de Vila Real, disseram-me que se vê neve no Marão. E, por qualquer razão, mas também porque, nos últimos tempos, se tem falado de nazis, lembrei-me do Lopes.
2 comentários:
A primeira vez que vi neve era muito pequena. Lembro-me de me terem ido buscar á escolinha e de guarda chuva aberto para aparar os flocos de neve, com os pés a pisar a neve e as meias molhadas.
A Candeia!
Uma autentica Faculdade de ... (falta-me o termo)
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