A V República francesa é um regime semi-presidencialista, em que a figura do chefe de Estado é de tal modo preponderante que leva a que muitos observadores o olhem como sendo presidencialista.
O general De Gaulle foi “entronizado”, em 1958, por um verdadeiro “pronunciamento”, para utilizar uma figura da ciência política mais comum em outras latitudes. Dado o caráter estabilizador do novo regime, que veio a pôr cobro a um tempo parlamentar que se estava a revelar pouco funcional e sem soluções estáveis, e que viria a ser titulado por uma figura que trazia atrás de si uma inigualável popularidade, pode dizer-se que a maioria dos franceses “absolveu”, com o tempo, esse pecadilho histórico.
1965
De Gaulle foi a votos, em 1965, já sob uma nova Constituição. Ficou à frente na primeira volta, mas, não tendo obtido mais de metade dos votos expressos, foi obrigado a um segundo turno, por um jovem mas já “vieux routier” da anterior política parlamentar, o socialista François Mitterrand.
1969
Abalado pelos acontecimentos do Maio 68, o general decidiu sair de cena, no ano seguinte. O seu antigo primeiro-ministro, Georges Pompidou, que verdadeiramente iniciou o “gaullismo sem De Gaulle”, uma direita democrática com forte sentido estatista e, inicialmente, com forte agenda social, veio a disputar a segunda volta da eleição presidencial contra o líder do Senado, Alain Poher, um centrista sem grande expressão política.
A esquerda democrática, que havia feito uma má gestão da sua posição no terreno político, no rescaldo do Maio 68, ficou fora do podium.
A televisão de então, do Estado, era muito cerimoniosa para com o poder de turno. Nem a De Gaulle nem a Georges Pompidou passou pela cabeça fazer um debate televisivo com o seu opositor, entre os dois turnos das eleições presidenciais que venceram.
1974
Georges Pompidou viria a morrer no cargo, em 1974, sem completar o que era então o septanato presidencial. Mitterrand regressou à luta e perdeu por uma unha negra (49,19 % para 50,81%) para o “kennediano” ministro das Finanças de Pompidou, Giscard d’Estaing, de centro-direita.
Pela primeira vez em França, seguindo o modelo americano, teve lugar um debate televisivo entre as duas voltas. Nele ficou famosa a certeira frase de Giscard, dirigida ao seu contendor da esquerda: “Você não tem o monopólio do coração”.
1981
Sete anos depois, Mitterrand teve a sua desforra. Impediu a reeleição de Giscard e inaugurou o primeiro dos seus dois períodos de sete anos como presidente - o mais longo tempo de estada no Eliseu de um presidente.
No debate entre os dois, ao ser chamado de “homem do passado”, por Giscard d’Estaing, Mitterrand respondeu-lhe à letra, qualificando-o de “homem do passivo”, referindo-se ao estado das contas públicas.
A esquerda francesa chegava finalmente ao Eliseu pela mão de alguém que conseguira reconstruir uma alternativa ao gaullismo, o Partido Socialista.
1988
Mitterrand conseguiu reeleger-se em 1988. Tendo perdido entretanto a maioria parlamentar, vira-se já obrigado a partilhar o exercício do poder com a direita gaullista. Esta era então titulada por Jacques Chirac, um antigo discípulo de Pompidou, que, antes de ser primeiro-ministro com Mitterrand, já o havia sido no mandato de Giscard d’Estaing.
François Mitterrand, presidente em exercício, viria assim a conseguir ser reeleito contra aquele que era o primeiro-ministro que a maioria parlamentar adversária lhe impusera.
No debate televisivo entre as duas voltas da eleição, Chirac fez questão de deixar claro que ambos estavam ali apenas na qualidade de candidatos, não na de primeiro-ministro e de presidente da República. Mitterrand teve então uma resposta, de “concordância”, que ficou para a história política francesa: “Estou totalmente de acordo consigo, senhor primeiro-ministro”.
1995
Em 1995, Jacques Chirac chegou, finalmente, ao Eliseu. Bateu o novo lider socialista, Lionel Jospin, por uma margem de cerca de 5%. O morno debate televisivo entre os dois não ficou na memória do país.
2002
Sete anos depois, em 2002, viria a acontecer uma imensa surpresa na eleição presidencial. Quando todos esperavam que Chirac e Jospin reeditassem a disputa, numa segunda volta da eleição presidencial, intrometeu-se entre eles Jean-Marie Le Pen, líder do Front National, um partido de extrema-direita, com um resultado no primeiro turno superior ao de Lionel Jospin.
A França e a Europa ficaram em estado de choque! Chirac recusou o tradicional debate televisivo com Le Pen, contra quem se levantou uma imensa onda de rejeição “republicana”. Chirac, dos 19,88% que obteve na primeira volta, veio a recolher, no final, uns esmagadores 82,21%.
O mandato presidencial já fora, entretanto, reduzido a cinco anos.
2007
Em 2007, os socialistas apresentaram, pela primeira vez, uma mulher como candidata, Ségolène Royal, que, na primeira volta, ficou atrás de um antigo ministro de Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy.
O debate entre os dois foi interessante, com Royal a mostrar um tom tenso, que levou Sarkozy a dizer-lhe que “para ser presidente da República, é preciso ser calmo”. Sarkozy ganhou o debate e a eleição.
2012
Cinco anos depois, Sarkozy virá a encontrar, na segunda volta, o antigo marido de Ségolène Royal, o também socialista François Hollande, que emergira de uma eleição primária no seio da sua família política. Hollande explorou o polémico saldo do quinquenato de Sarkozy e, com um discurso bem construído, onde ficou célebre a sua longa anáfora “Eu, como presidente, farei… Eu como presidente, farei…”, reverteu a seu favor o resultado da primeira volta.
De notar que, em França, os candidatos à reeleição, quer depois tenham saído vencedores ou vencidos, ficaram sempre à frente de todos os seus opositores, na primeira volta.
2017
E chegámos a 2017. O desempenho de Hollande, durante os seus cinco anos no Eliseu, terá convencido o próprio a não se recandidatar. Os socialistas fizeram uma eleição primária de onde emergiu um candidato sem um carisma capaz de elevar as cores do partido. Mais à esquerda, um antigo ministro socialista de Jospin, Jean-Luc Mélenchon, conseguiu, na primeira volta, aproximar-se dos 20% (cinco anos mais tarde, ultrapassaria mesma esta honrosa fasquia).
O candidato da direita gaullista, o antigo primeiro-ministro de Sarkozy, François Fillon, envolveu-se em escândalos e não chegou à segunda volta.
Nessa disputa, esteve a sucessora de Jean-Marie Le Pen, a sua filha Marine Le Pen, então com uma agenda de extrema-direita clássica.
Defrontou Emmanuel Macron, um político jovem e brilhante (que havia sido quadro do banco Rothschild, tal como já o fora Pompidou), por algum tempo ministro de Hollande, que tinha criado um novo movimento (depois partido), qualificado como “nem de direita nem de esquerda”.
O debate televisivo entre os dois foi, de longe, o mais vivo de todos os momentos similares. Le Pen mostrou grande impreparação e uma agressividade que o eleitorado não apreciou. Ainda tentou cunhar uma frase para a memória política: “Eu sou a candidata do poder de compra, você é o candidato dos que podem comprar a França”, referido-se a aquisições de empresas, assunto com que Macron, afinal, nada tivera a ver. Este revelou serenidade, determinação e conhecimento aprofundado dos dossiês. Ganhou, a grande distância, o debate e tornou-se presidente.
2022
Ontem, no clássico debate televisivo entre as duas voltas, Macron reeditou o seu “derby” com Le Pen. Esta esteve diferente, mais “estadista”, tecnicamente mais capaz, tentando disfarçar a agenda radical que se sabe ser a sua - embora a espaços a denunciasse. Macron, que foi obrigado a defender o seu quinquenato, revelou um manejo hábil do discurso de quem está no poder, com um europeísmo que pretendeu colar ao interesse da França. Aqui ou ali, Macron terá sido algo condescendente, um pouco “patronizing”, mesmo arrogante. Ao dizer que Le Pen estava a “mentir sobre a mercadoria”, uma expressão clássica para o comércio fraudulento, acabou por criar a frase mais sonante do debate. Este correu muito melhor a Marine Le Pen do que o de 2017. Não era, aliás, difícil. Mas, na minha opinião, esteve longe de ser o suficiente para poder reverter a diferença que a separa de Macron, em todas as sondagens.
5 comentários:
Macron vai ganhar. Antonio Costa "pediu"para votar Macron...Sanchez também. Se um dia Marine le Pen chegar enfim ao poder, e se houver eleiçoes em Portugal, pode ser que ela incite ao voto por Ventura !
Quanto ao debate entre os dois candidatos, tirei a mesma conclusao de sempre:
"O sufrágio universal, considerado por si só e actuando numa sociedade baseada na desigualdade económica e social,nunca passará de um chamariz para o povo; por parte dos democratas burgueses, não passará de uma mentira odiosa, o instrumento mais seguro para consolidar, com aparência de liberalismo e justiça, em detrimento dos interesses populares e da liberdade. » Nao recordo exactamente o nome do autor destas palavras.
Sufrágio universal”, é a opinião da maioria que deve fazer a lei; mas o que não percebo é que a opinião é algo que podemos muito facilmente direcionar e modificar; pode-se sempre, com a ajuda de sugestões apropriadas (demagogia, pesquisas, ataques, pandemias, e desta vez fomos servidos !etc.) provocar correntes que vão nesta ou naquela direção determinada.
Mesmo uma guerra a proposito, pode ser explorada...e a da Ucrânia serà, fortemente.
E os meios de comunicação de massa: imprensa escrita, , rádio, cinema, videogames, publicidade, cartazes urbanos, sites, "Wiki", etc., a maioria deles "subsidiados" para esse fim, auxiliando muito na manobra.
Mas não hà problema: O Sistema vai vencer !
Macron, incapaz de conter a sua violência e o seu desprezo, atacou Le Pen de maneira quase difamatória sobre o seu empréstimo à Rússia e ele jogou o resto do tempo o Professor, derrubando as SUAS certezas como Verdades Incontroversas, do alto de seu necrotério incorrigível .
Mas não vou ter pena ou defendê-la, pois ela vestiu-se de "Madame Propre"...
Que assim seja!
Que a representante do 24 de abril à francesa tenha a devida derrota.
Joaquim, o óptimo é inimigo do bom; pior do que isso, os "óptimos reais" (aqueles que foram tentados) foram os sistemas mais hostis às tentativas de progressão ou aperfeiçoamento dos sistemas.
Passa por aqui a questão da duração dos mandatos presidenciais em França. A questão leva-me a pensar no nosso caso. Em Portugal o Presidente não tem funções executivas e por isso está liberto dos domínios da política diária. Não me convence ter o Presidente um certo condicionamento em função de se apresentar novamente a votos e, também, não parece igualitária a disputa da eleição presidencial com um candidato em exercício. Julgo, pois, ser bastante mais indicado que o Presidente em Portugal tivesse só um mandato e, nesse caso, com a duração de sete (7) anos. Todos os Presidentes da Democracia foram reeleitos. Quase parece terem um mandato de 10 anos.
José Figueiredo
Braga
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