segunda-feira, março 25, 2019

Aqui havia uma curva


Foi Ilse Losa, uma escritora que merecia ser revisitada, quem um dia escreveu um pequeno livro intitulado “Aqui havia uma casa”, a propósito de um refugiado da guerra, como ela era, que regressou à sua terra natal, devastada pelo segundo conflito mundial.

Lembrei-me disso agora, sentado na esplanada da “Tosta Fina” das “boxes” (só quem é de Vila Real sabe o que isto é e que também há a Tosta Fina “sede”, a da Senhora da Conceição), a ver os carros passar na Avenida Aureliano Barrigas (um dia conto quem foi), uma artéria que mais não é senão um heterónimo local da Estrada Nacional nº 2.

Por aqui há hoje uma leve curva, que se deteta na imagem, mas, no passado, era bastante diferente: era então muito acentuada, francamente perigosa. A abordagem a esse ponto da estrada, que era estreita, tinha de fazer-se com grande prudência e, claro, sem ultrapassagens.

Esta era então parte do “circuito”, o que também tem a ver com as “boxes” e com Aureliano Barrigas, porque, em Vila Real, “isto anda tudo ligado”, como escreveu o jornalista e poeta Eduardo Guerra Carneiro, que, não por acaso, também era de Vila Real. E, para “compor o ramalhete”, é também por aqui perto que, quando venho a Vila Real, eu próprio “moro”.

Numa noite, que recordo quente, do início dos anos 60, a cidade foi abalada pela notícia: naquela curva, perto da hora do jantar, dois amigos, José Loureiro e António Guedes, duas figuras da cidade bem conhecidas, numa disputa de velocidade, muito típica numa terra onde o circuito foi sempre um chamariz para ousadias de acelerador ao fundo, haviam sido vitimadas num acidente de um automóvel em que seguiam, numa ultrapassagem imprudente, abalroando outra viatura. Não eram uns miúdos: eram homens feitos, casados, com família.

Tenho ainda na memória a consternação que atravessou toda a gente, chocada com a brutalidade do acidente do carro conduzido por José Loureiro, o “filho do Loureiro”, como os nada íntimos, como eu era, chamávamos ao condutor. Os funerais das vítimas marcaram a história da Vila Real de então.

Há meses, ao rever o magnífico “Il Sorpasso”, por cá “A Ultrapassagem”, de Dino Risi, um filme italiano de 1962, onde dois amigos, representados por Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant, têm um trágico desastre numa ultrapassagem, lembrei-me do acidente do “filho do Loureiro”. Em que ano terá sido este útimo?

Agora, nesta tarde de extraordinário sol primaveril, com a Gomes fechada, sentei-me por esta esplanada a testar a bola de carne (uma eterna “competição” tradicional vila-realense, em que a Gomes costuma ter a medalha de ouro, mas em que, ao almoço de hoje, a que é produzida pela Alice, para consumo caseiro nas refeições no Lameirão, não lhe ficou nada atrás) e lembrei-me de que aqui havia uma curva.

8 comentários:

APS disse...

Uma pequena precisão: no filme de Risi, só Trintignant morre, Gassman safa-se.
Como em muitas coisas da vida, o crime compensa e a virtude é castigada...

Francisco Seixas da Costa disse...

Obrigado pela nota. É isso mesmo!

Anónimo disse...

E não é Jean-Claude, caro Francisco, é Jean-Louis. Estarei certo? Jean-Claude era o Brialy.

Um abraço

JPGarcia

Francisco Seixas da Costa disse...

Tem toda a razão. Mais um erro. Esta escrita sobre o joelho... Abracao

ana castro fernandes disse...

Caro sr embaixador deixou de postar no facebook?
Embora siga o blog há uns anos e receba por e-mail (há pouco tempo)os seus textos, no facebook é um bocadinho mais prático.
cumprimentos

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Ana Castro Fernandes. Continuo a postar no Facebook, mesmo a um ritmo maior do que costumo fazer por aqui. Deve ser do algoritmo... Obrigado pela sua atenção

ana castro fernandes disse...

Grata pela atenção.
Boa noite

Cícero Catilinária disse...

E que curva, caro Embaixador, que curva, no fim da chamada recta da meta, ou dos boxes, antecedendo a recta que dava acesso ao desvio para Chaves e à descida para a Timpeira. Magníficos circuitos de 72 e 73 que passei num quintalinho umas dezenas de metros após a saída da dita. E deixe-me acrescentar que era uma curva onde se via quem "tinha mãos" ou quem "era um pé".

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...