Sou dum tempo em que as "explicações" faziam parte do quotidiano complementar do ensino do liceu, em Vila Real. A avaliar pelo número e frequência dos "explicadores" e explicandos, em vários domínios, devia ser uma profissão rentável.
Durante muitos anos, a grande e competente explicadora de Matemática da cidade era um senhora de feitio difícil, atingida por uma doença fisicamente incapacitante, que se deslocava com dificuldade. Sentava-se, por largas horas, numa sala com mesa retangular e uma janela para a rua. Chamava-se Maria de Lurdes, nós éramos supostos chamá-la de "senhora D. Maria de Lurdes" mas, desde cedo, a corruptela aceite soava a "Semelurdes". Os explicandos menos atentos eram chamados para o seu lado, lugares temíveis porque as repreensões orais eram complementadas com "reguadas" com um lápis com uma espécie de boquilha (nunca vi nada igual!), que nos acertava nos nós dos dedos, punindo as distrações ou comentários que lhe desagradavam.
As explicações duravam uma hora e eram medidas pelos toques dos sinos da Sé, porque a "Semelurdes" não usava relógio. Entrava-se e saía-se às meias horas (em que o sino dava dois toques). Com uma disposição menos entusiasta pelo estudo, muitos ansiávamos bastante por esses dois toques do sino. Por isso, eram-nos indiferentes os restantes toques (três para os três quartos de hora, quatro toques para a hora certa, seguida de um bater dessa hora noutro sino, e, finalmente, um toque para o quarto de hora, depois da hora exata). O relógio da Sé, ali perto, funcionava então na perfeição. Havia, porém, momentos, creio que para missas e outros atos religiosos (sou pouco dado a essas questões) em que se assistia ao sineiro a subir à torre, dando depois fortes badaladas num dos sinos.
Eu tinha andado na escola primária com o sineiro, que tinha mais dois ou três anos do que eu e que era conhecido pelo nome de Viròmundo. Um dia, numa conversa de explicandos da "Semelurdes", no encontro prévio que sempre havia em frente à pastelaria "Gomes", e ao vermos o Viròmundo a rondar a torre da Sé, surgiu uma ideia: pedir ao Virómundo para, na altura do quarto de hora, dar mais uma badalada à mão, criando assim a ilusão sonora de que era meia-hora, o que poria fim à explicação desse dia um quarto de hora mais cedo. Como era eu que conhecia bem o Viròmundo, fui o encarregado da diligência. O sineiro mostrou-se, de início, avesso à ideia. Não queria arriscar o lugar, mas lá acabou por aceitar o "frete", a troco de "cinco coroas", talvez pensando, e bem, que não seria por essa badalada a mais que o padre Henrique o poria "com dono". E sempre empochava "vinte e cinco tostões" só por subir à torre. Era um bom negócio!
E lá fomos nós para a explicação da "Semelurdes", às duas badaladas das três e meia. O grupo que havia combinado a patranha (que não incluía uma ou duas colegas mais "certinhas") adiantou os seus próprios relógios um quarto de hora. A aula da explicação decorreu normalmente. Dez minutos passados sobre as badaladas da hora completa (que era habitual ninguém notar), um de nós (creio ter sido o João Leite Gomes, mas não estou seguro) lançou, aproveitando um momento de silêncio: "Como o tempo passa... já são quatro e vinte e cinco". A Julinha, uma colega "certinha", ripostou, olhando para o relógio: "Não são nada! São quatro e dez". Um coro saiu logo em protesto, mostrando os respetivos relógios, defendendo serem "quatro e vinte e cinco". O relógio da intrigada Julinha foi qualificado de "marca Roscoff" o que obrigou a "Semelurdes", um tanto hesitante pela noção impressiva do tempo, a arbitrar, para acabar com a conversa: "A mim parece-me não ter passado uma hora, mas logo veremos, com o toque das quatro e meia".
E lá vieram, um minuto depois, as duas ansiadas badaladas das "quatro e meia", que, afinal, era a badalada das quatro e um quarto complementada com aquela que fora paga ao Viròmundo. Levantámo-nos das cadeiras, mais lestos e sorridentes do que era habitual, perante uma "Semelurdes" um tanto perplexa e uma Julinha desiludida pela qualidade do relógio que o pai lhe tinha comprado, nos anos, no Nascimento.
A "Semelurdes" deve então ter ficado muito surpreendida pelo facto dos explicandos seguintes terem chegado com um quarto de hora "de atraso". Imagina-se que devem ter sido objeto de um raspanete e que todos devem ter dado fortes garantias de que chegavam exatamente às quatro e meia. Na sessão de "explicação" seguinte, dois dias depois, quando entrámos na sala, conosco preparados para "ouvir das boas", ela surpreendeu-nos a todos ao não dizer uma palavra sobre o assunto. Nós que, a montante desse momento, havíamos feito pressão sobre a Julinha e as restantes "certinhas" para "estarem caladinhas".
O assunto passou. Um dia, anos corridos, estava eu já na universidade, fui visitar e cumprimentar a "Semelurdes". E decidi revelar-lhe a patranha. Lembrava-se do episódio, alguém lhe tinha falado da história da cumplicidade do sineiro, mas era a primeira vez que dele tinha confirmação. Agora, pela palavra, "de confiança", de um dos "conspiradores"...
Eram bem simples esses tempos de Vila Real, nos nossos 14 ou 15 anos...
11 comentários:
Tive explicações dessa Senhora. Esperava-se numa sala anexa. Era tudo muito chato. Não tenho saudades.
Luis Ribeiro
Senhor embaixador,
Eu já conheci a D. Maria de Lurdes como a “menina Lulu”.
A menina Lulu era muito inocente. Acreditava facilmente nas justificações de que os explicandos lhe davam.
Deixo-lhe aqui outra estória à volta dessa senhora. O nome é fictício, já que não pedi autorização ao visado para revelar o seu nome.
“O Zé Pinto faltou durante algumas semanas às explicações de matemática e, quando pela primeira vez se apresentou, a menina Lulu quis saber o porquê de tão prolongada ausência, tendo o explicando dado como justificação o facto de a mãe ter dado à luz.
A menina Lulu achou estranho mas não comentou, pois a senhora já não estaria em idade fértil. Contudo, resolveu telefonar-lhe para lhe dar os parabéns…
Na semana seguinte, quando o Zé Pinto voltou às explicações, a menina Lulu, muito indignada virou-se para ele e relatou o ocorrido, tendo referido que a sua mãe lhe dissera que, provavelmente, teria havido algum equívoco, que não tinha tido nenhum bebé.
O Zé Pinto não se descompôs e com a face carregada afirmou: “Não me diga nada, menina Lulu. A minha mãe está de rastos. O bebé…morreu.”
Não sei se voltou a telefonar a dar os pêsames à mãe do Zé…”
Aníbal Liberal Neves
"éramos supostos" ???!!! Por amor de Deus! Também aderiu a esta irritante moda? "nós DEVÍAMOS de", "nós TÍNHAMOS de"
A Dona Lulu foi a única pessoa que me fez entender, embora temporariamente, as funções e derivadas de funções.
Ia jurar que era cega!
Zé Pinto
Caro Zé Pinto: não era nada cega...
Que história tão engraçada!
A história é bem engraçada...
Agora...
Sou dum tempo em que as "explicações" faziam parte do quotidiano complementar do ensino do liceu, em Vila Real.
Esqueceu-se de acrescentar dos filhinhos de papá, daí a possibilidade de os meninos bem terem tido sempre maiores possibilidades de acesso ao ensino superior público e frequência dos cursos melhor cotados em termos de empregabilidade , boa remuneração garantida e aquisição imediata de estatuto reconhecido.
É a vida...
Estava até a pensar que nem me lembro de quase ninguém que consiga entrar em cursos cuja média(inflacionada) ultrapasse os 16 valores sem explicação a matemática fisicoquimica e outras onde figura a língua portuguesa a partir do 10º ano pela módica quantia em média de 100 Euros por disciplina... Basicamente não dá para quem aufere de ordenados minimos nem médios...
Exma Isabel Seixas: o meu Pai era regente agricola a minha Mãe domestica, sem qualquer outro rendimento, licenciaram 3 filhos por volta do 25 de abril. Os outros 2 acabaram o liceu depois do 25 e não quiseram estudar mais. Como nós houve muitos!
Estou em crer que a maioria que andou na explicação de matemãtica da D. Lulu foi para letras...
antonio pa
Exmo Senhor antónio Pa
Acredito que sim, sem qualquer dúvida sendo que face à profissão do seu pai, também já o considero incluído nos meninos bem que referi, no bom sentido é claro, ou seja com algumas possibilidades...
Há 40 anos sinceramente não me lembro da maioria dos alunos terem explicações mesmo que tivessem dificuldades de aprendizagem.
E a minha Mãe tabém era menina bem?
Ao que me refiro óbviamente não é isso. Quem era capaz e tinha vontade seguia em frente e não precisava de explicações mesmo com parcos recursos. Tinha esforço redobrado mas era recompensado.
Agora todos são "doutores"(da mula russa) com ou sem explicações. Pensava-se que o 25 de abril ia compensar os de mais fracos recursos, mas afinal descompensou os capazes.
Atenciosamente
antónio pa
Sr. Embaixador se me permite
Senhor António Pa
O 25 de Abril compensou de facto os de mais fracos recursos...
1º Deu-lhes voz
2ºHumanizou o ensino em muitos sentidos mas essencialmente permitiu que os/as burras, os/as socas, os /as burros como portas fossem considerados, vendo respeitado o seu ritmo de aprendizagem.
3ºGerou no nosso país a possibilidade e a cultura de progressão do ensino básico para o secundário e do secundário para o ensino superior, da formação continua e ou ao longo da vida.
4ºÉ comum encontrar-se na explicação o filho do lavrador,do operário , do assistente operacional do assistente técnico e do técnico superior, assim como do sacristão e do sineiro.
5º Os nossos filhos são todos doutores e considerados doutores e com a mesma habilitação académica dos doutores e são considerados capazes nos países também desenvolvidos independentemente da filiação e afiliação.
Poderiamos dar mais exemplos
mas façamos então jus às nossas mães. Meninas bem ?
claro que sim, bem trabalhadoras, algumas sepultadas no cansaço e nas rotinas inacabadas do trabalho doméstico, sem salário e muitas sem compensação afetiva , muitas a fazer do faça quem as fizer quem as paga é a minha mulher...
Mas todas acredito piamente a lutar por que os filhos fossem também ,Meninos Bem...
De qualquer maneira viva , reviva e valha-nos o 25 de Abril aliás o meu amado padroeiro, que obviamente não é santo...
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