Era uma pequena repartição, com escasso pessoal administrativo, na qual os diplomatas mais jovens tinham de fazer, eles próprios, o registo da entrada e da saída da correspondência, sendo também responsáveis pela atribuição da classificação de arquivo. Nada de que haja que ter saudades, mas que não deixava de representar um banho inaugural de humildade, que atenuava as tentações de importância emproada de alguns recém-chegados às Necessidades, armados em ridículos "adidos plenipotenciários de 1ª classe".
O chefe da repartição pedia, há muito, um reforço para o chamado "apoio" administrativo. Por uma qualquer embirração, que teria a ver com dissídios antigos, o responsável pelo pessoal vinha a protelar, desde há meses, o envio de mais uma funcionária. Os diplomatas protestavam com o excesso de trabalho, as duas únicas administrativas queixavam-se de que não podiam continuar sozinhas.
Por intervenção do diretor-geral, o serviço de pessoal lá se dignou, um dia, enviar uma nova funcionária. "Nova" é uma maneira de dizer, porque a senhora tinha já uma certa idade e, desde a primeira hora, informou que, por razões de saúde, não poderia encarregar-se de tarefas que obrigassem à colocação de pastas pesadas nas prateleiras. Fê-lo, aliás, de uma forma pouco simpática, denotando o seu desagrado com a nova colocação, o que prenunciava conflitos e tensões. Ficou claro que as alegadas limitações da funcionária iam criar-lhe um estatuto desigual, com consequências na distribuição das tarefas. O chefe de repartição estava furioso e depreendeu que a seleção da nova funcionária, com as limitações que apresentava, tinha sido uma perfídia do responsável pelo pessoal.
Decidiu responder à letra e por escrito. Elaborou, com cuidado, uma comunicação para a Repartição do pessoal, que teve o cuidado, ele próprio, de dactilografar, de classificar no arquivo e de registar "nas saídas", cujas cópias guardou para si, por horas. De seguida, chamou a tal funcionária e deu-lhe instruções para ir entregar a nota, em envelope fechado, diretamente ao chefe do serviço de pessoal, sublinhando bem que vinha da sua parte. E a senhora lá foi.
Meia hora depois, a notícia saía do "4º andar", onde se situa a área administrativa do MNE: o chefe do pessoal estava furibundo com o seu colega, escandalizado pelo teor da nota que recebera, iniciada com o formulário gongórico da época: "A Repartição X apresenta os seus atenciosos cumprimentos à Repartição do Pessoal e, dada a circunstância de, por alegadas limitações físicas, se revelar não adequada à execução das funções para que foi destinada, tem a honra de remeter, em anexo à presente nota e a título devolutivo, a funcionária "fulana de tal", solicitando a substituição da mesma por uma outra em perfeitas condições"...
Esta historieta, de cujas consequências não guardei memória, ficou nos anais da "casa". Devolver um funcionário "em anexo" a uma nota de que o próprio é portador é um verdadeiro "must". Quantas vezes tive a vontade, mas não tive a coragem, para proceder de forma idêntica.
6 comentários:
Mais uma história com a maior graça. Espero um dia ver coligidas todas esta histórias "diplomáticas" num livro.
Um abraço
A historieta é realmente deliciosa, exceto para a dita senhora, mesmo que a devolução tenha sido feita a "tútulo" devolutivo.
Má vizinhança, esta do i e do u, que frequentemente descamba em "lapsus tecladum".
Acontece a todos.
Um abraço
Caro Guilherme: isto de estar a trabalhar em tempo de férias perturba os teclados de qualquer um. Estivesse eu quase A-Ver-o-Mar ou a aconchegar-me no "santinho" do Moreirense e nada disto aconteceria. Abrações.
Que bela história.
Bem parecida com a de um ex sacerdote que os Recursos Humanos do Banco de Portugal puseram sob as minhas ordens...
Eu bem tentei devolve-lo. Mas não havia ninguém para a troca. E quando prescindi dele... não tinham onde o colocar!
Será por muitos casos como este que Portugal está como está??? Mas... eu não sei.
Bem sr. Embaixador a história é paradigmática de desconcertante e oportuna do ponto de vista da eficácia...
Mas o desafio na gestão de recursos humanos é potenciar as capacidades ainda que remniscentes e não expor as incompetências...
Daí que o estilo de liderança patente é o autocrático.
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