No andar na linha do Estoril onde passava muitos dos seus dias de reforma, o velho diplomata recebia a visita daquele colega mais jovem, que sabia que ocupava um cargo de chefia média nas Necessidades. Era alguém com quem apenas se tinha vagamente cruzado, em algumas escassas ocasiões de trabalho. Dele só tinha, como imagem, a chamada "opinião dos corredores", a qual, num ministério onde as pessoas tendem a viver muito distantes umas das outras, funciona como uma espécie de "processo individual", em permanente atualização por conversas ouvidas. Dessa imagem fazia parte a ideia de que se tratava de um rapaz mais esperto do que inteligente, com uma ambição não ponderada por uma ética exigente e que, até no casamento, não descurara a procura de alguém que o ajudasse a subir socialmente. Nada que fosse novo no tecido humano da "casa", como era bem sabido. Enfim, o velho embaixador estava algo intrigado e curioso com o que iria sair daquele inesperado pedido de conversa.
O colega mais jovem trouxera-lhe, como oferta, uma garrafa de um vinho branco, cuja qualidade elogiou bastante e que esperava que o embaixador apreciasse. Era "lá da quinta", uma subliminar referência a presumíveis origens abastadas, que douram sempre um currículo social em construção. O embaixador pediu à mulher para colocar o vinho a refrescar e, minutos volvidos, ultrapassados que foram os comentários em torno das notícias mais recentes sobre as movimentações na "casa", a conversa foi direita ao tema que o visitante pretendia abordar: ia haver promoções dentro de pouco tempo, os candidatos eram muitos e o jovem vinha pedir ao embaixador se acaso não poderia "deixar cair uma palavra" em seu favor junto do secretário-geral, cuja proposta a fazer ao Conselho diplomático seria, como sempre, decisiva. O argumentário era estafado, embora porventura verdadeiro: estava já há muito tempo em Lisboa, fora ultrapassado "de forma indecente" na última promoção e esta era uma oportunidade para, num prazo razoável, poder vir a obter uma chefia de missão no estrangeiro. Como o embaixador era um amigo de peito do secretário-geral, sabia-se que uma palavra sua - "com o prestígio que o senhor embaixador tem!" - podia fazer toda a diferença.
O embaixador estava surpreendido com o topete do jovem. Afinal, mal o conhecia e tinha tido o desplante de vir meter-lhe uma "cunha", de uma forma tão descarada. Deixou correr a conversa e, sem se comprometer, usando circunlóquios, o velho diplomata divagou um pouco sobre a "carreira", contou algumas histórias (como se sabe, os embaixadores gostam de contar histórias...) e citou casos passados de promoções, bem como de algumas desilusões nas ditas, relativas a colegas conhecidos. Com as artes do "métier", não disse nem que sim nem quem não. E, assim, o jovem atrevido ficou sem saber se, no final, ele faria, ou não, uma "démarche" a seu favor, junto do secretário-geral.
Entretanto, tinha chegado a hora do lanche. O embaixador disse à mulher para trazer um Alcains de qualidade, que um general qualquer lhe tinha oferecido, abrindo, para acompanhar o queijo, a garrafa de vinho branco que o jovem colega lhe trouxera. Mudando de conversa, serviu o vinho, que até nem era mau de todo, embora comentasse que um tinto, ou mesmo um porto, talvez acabasse por ser mais adequado. Por largos minutos, com a conversa já muito longe do tema anterior, o embaixador foi insistindo com o colega mais novo para o acompanhar no esvaziar da garrafa, o que este fez, tomando dois ou três copos.
Fazia-se tarde e despediram-se, sempre sem qualquer compromisso assumido. Regressado à sala, o embaixador recebeu uma leve reprimenda da mulher, pelo facto de, em lugar de ter guardado a garrafa que lhe havia sido oferecida, anunciada como de grande qualidade, para uma ocasião mais própria, tê-la praticamente gasto num improvisado lanche, forçando mesmo o ofertante a beber grande parte dela. Não tinha sido bonito!
O embaixador riu-se e a mulher só veio a perceber que, no gesto do marido, tinha havido alguma especial intenção quando este lhe disse: "A garrafa? Não quis ficar a dever-lhe nenhum favor. Na saca a trouxe, na barriga a levou"...
12 comentários:
Ora que diplomata diplomático...
historia exemplar, dever favores nem sempre é bom, por vezes, quando não são inocentes, pedem nos o pagamento com juros.
Mas uma garrafita de vinho nem obrigava o embaixador a muito, é coisa pouca. Mas acho que teve a atitude correcta.
Gostei muito da referência a um "general qualquer" que trouxe o queijo de Alcains
Admito que me deixa sempre de pé atrás quando em Portugal se fala de "cunhas". Na verdade, o termo tem laconicamente, e a meu ver, demasiada tensão negativa para ser devidamente analisado - chamemos-lhe então, "conhecimentos".
Acontece que há formas elegantes de os fazer, e formas... menos elegantes.
(Já agora, e por se ter falado de vinho branco, lembrei-me de partilhar um interessante que me ofereceram há algum tempo: "Invisível", da Ervideira. [link:http://www.vozdocampo.com/especiais/vinha-vinho/ervideira-reforca-best-seller-invisivel-regressa-ao-mercado/])
A história está ao nível do melhor a que já nos habituou.
Mas achei particularmente delicioso o aparte: (como se sabe, os embaixadores gostam de contar histórias...), bem como o do queijo do general de Alcains.
A sua história lembrou-me outra, com algumas semelhanças.
Há alguns anos, um funcionário da Administração do Porto de Lisboa, "famoso" no meio pela antipatia, bem como pelo excessivo zelo burocrático, que levantava sérias dificuldades aos funcionários dos despachantes alfandegários, apareceu no escritório do responsável pelos despachos dos Caminhos de Ferro, dizendo, meio enfiado, que tinhas um pedido para lhe fazer.
E lá foi explicando que um cunhado ia fazer exame para maquinista da CP, e ele ficaria muito grato se o referido responsável pudesse dar uma palavrinha a favor do seu familiar. Não porque ele não fosse competente, mas porque os candidatos eram muitos, e as vagas poucas.
O despachante da CP, para o despachar, disse-lhe que ficasse descansado, que ia ver se mexia uns cordelinhos, embora sem qualquer garantia de êxito.
E nunca mais se lembrou (ou quis lembrar) do assunto.
Passadas algumas semanas, voltou a receber a visita do homem do Porto de Lisboa, que lhe vinha agradecer o grande favor que lhe tinha feito. O seu cunhado já era maquinista.
A partir daquele dia, o pessoal dos despachos aduaneiros da CP, nunca mais se deparou com entraves burocráticos. Pelo contrário, beneficiava de "regalias" que deixavam os colegas de outros escritórios abismados.
Então, meu caro, "os Embaixadores gostam de contar histórias"? Pelo seu exemplo, é uma verdade! Porém, são histórias, que, além do seu valor, valem bem pela elegante prosa! Obrigado. Gilberto
Pois é.... As Necessidades são um mundo. Mas.... eu não sei.
Na saca a trouxe, na barriga a levou"...
A expressão vem mesmo a propósito e é bem engraçada, desconhecia.
Aqui há anos, quando as cunhas já eram escandalosas, mas ainda muito longe do estado actual, ouvi uma teoria, “SÉRIA”, sobre o tema. Afinal a cunha representaria, no fundo, uma “carta de recomendação” do candidato, apresentada por alguém de confiança, o que habilitava o “cunhado” com mais um elemento valiosíssimo para a ponderação do concurso.
É muito mais “seguro” dar o lugar a alguém “recomendado”, do que a outro cujo curriculum não é confiável… (obviamente que não é confiável).
Realmente não há limites, para o descaramento. Neste País chegou a ser um dos piores anátemas, agora até tem “virtualidades óbvias”.
O diplomata apenas queria uma “cartita de recomendação”. Seria pedir demais?...
"E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d'Ela receberei em muita mercê."
Carta de Pêro Vaz de Caminha a El-Rei sobre o Achamento do Brasil .
FSC (o autor deste Blogue) já fez o favor de aceitar enviar "umas palavras, escritas" sobre outros colegas nessa mesma situação, à espera da promoção a ministro plenipoteniário, a fim de que o SG viesse a ler as suas "recomendações" sobre determinado colega mais jovem na carreira, no Conselho Diplomático.
Alegadamente, por FSC "ter o tal estatuto de prestígio" na carreira.
Dito isto, não se entende muito bem este seu Post.
a) Nestrangeirados
Caro comentador anónimo das 0.55: fi-lo e fá-lo-ei se tal me voltar a ser solicitado, mas só se conhecer bem o trabalho do funcionário em causa (o que não é o caso da história) e se, sobre ele, tiver uma fundamentada opinião favorável. Chama-se a isto prestar uma informação útil à hierarquia do MNE. Mas "cunhas" não meto nem aceito, como bem saberá! Ou não?
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