sexta-feira, agosto 03, 2012

Dinheiro em Caixa?

Durante quase três décadas, o meu pai foi gerente, em Vila Real, de uma das filiais distritais da Caixa Geral de Depósitos, instituição em que trabalhou, com imenso orgulho e insuperável dedicação, 47 anos da sua vida. A Caixa era também a sua família e ainda recordo a alegria que lhe dei quando, em 1971, sem o avisar, fiz concurso e fui admitido como funcionário da Caixa - aquele que foi o meu primeiro emprego.

Durante muitas décadas, a Caixa foi o banco popular de Portugal. Era à Caixa, porque a Caixa era do Estado, que as pessoas mais simples confiavam os seus haveres. A Caixa tinha "cadernetas" escritas à mão, onde era inscritos os juros e registados os saldos. Os depositantes compraziam-se em passar pelo balcão da Caixa, para fazer esse acrescento regular, que lhes assegurava "quanto tinham na Caixa".

O meu pai recordava, às vezes, uma pequena história.

Um dia, um funcionário veio avisá-lo de que um cliente, depois de ter pedido para "atualizar a caderneta", informou que queria levantar todo o dinheiro que tinha na sua conta, em espécie. Tratava-se de um montante bastante elevado e, até por razões de segurança, era um pouco estranho que o cliente quisesse transportar o dinheiro dessa forma. Estaria o homem insatisfeito com o serviço prestado pela Caixa?

O meu pai mandou entrar o cliente para o seu gabinete. Era um homem muito simples, residente numa aldeia próxima de Vila Real, idêntico a uma imensidão de outros clientes oriundos das áreas rurais, que constituiam uma grande massa dos depositantes na Caixa. Perante a estranheza manifestada, pela inusitada (e até arriscada) operação que ele pretendia executar, o homem respondeu: "O dinheiro é ou não é meu? Posso ou não posso fazer com ele o que me apetecer? Quero levantá-lo todo e já!". Perante esta inabalável determinação, o meu pai mandou preparar grandes envelopes com as notas, que foram entregues ao cliente. Após receber o dinheiro, o homem perdeu largos minutos a contar todas as notas. No final, disse: "Agora, quero depositar isto tudo outra vez. Foi só para saber se o dinheiro ainda era meu!". E era, claro.

Lembrei-me disto, na tarde de hoje, também na Caixa, também em Vila Real, quando assisti ao drama de uma pobre senhora de aldeia, a dona Celeste, confrontada com a impossibilidade de resgate do montante de um "produto" em que, há alguns anos, tinha sido convencida a empregar alguns largos milhares de euros e que, agora, se via impossibilitada de levantar, sem perder uma importante fatia do próprio capital. Fui testemunha por largos e pungentes minutos do embaraço delicado dos funcionários, dos lamentos lancinantes da senhora, seguidos do seu desmaio, com hipótese de convocação do 112. Um espetáculo triste, penoso e indigno, que incomodou quem a ele assistiu. Que não sei mesmo como acabou, porque, logo que pude, saí, indignado.

Quem terá sido o funcionário espertalhote que vendeu à dona Celeste o "produto", em cujo "small print" estavam (espero eu!) as condicionantes limitativas das possibilidades de resgate? Aquele que o fez impingiu àquela pobre senhora, que tinha uma evidente limitação cultural para entender as peculiaridades da evolução financeira dos mercados, um "produto" em que enterrou muitos dos seus haveres. E, goste-se ou não da palavra, essa pessoa incorreu, na prática, numa verdadeira fraude. Ela e, com ela, a Caixa Geral de Depósitos, instituição onde também eu tenho as minhas economias e que, por ser propriedade do Estado, sempre tive por um banco diferente, onde tinha a certeza que os clientes nunca seriam tratados assim. Enganei-me, pelos vistos. 

Se fosse vivo, e se tivesse assistido a esta lamentável cena, o meu pai teria hoje sentido uma imensa tristeza, idêntica à que eu próprio experimentei. Mas ele já morreu, como também já parece ter desaparecido aquela Caixa Geral de Depósitos que foi o seu orgulho, em que as pessoas mais simples deste país, por muitos anos, se habituaram a confiar.  

23 comentários:

Helena Sacadura Cabral disse...

Ai! Senhor Embaixador, que lamentável história a que nos conta. Na banca, mesmo na do Estado, continuam a existir sempre uns espertalhões que se servem da ileteracia financeira daqueles que a eles acorrem.
Fez muito bem em denunciar um caso desses. Pode ser que algum administrador encartado leia e se sinta envergonhado.
A D. Celeste devia pedir à CGD que lhe dissesse quem tinha sido o chico esperto que lhe tratou do contrato , porque deve lá vir a assinatura do empregado responsável. E pedir a um daqueles raros benévolos advogados que lhe tratasse do assunto. Na Caixa e no BdP.

patricio branco disse...

excelente texto!

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Senhor Embaixador,

Excelente texto. Vou copiar e enviar para um amigo meu que está na Caixa.

Quem sabe se este blogue ainda vai ajudar uma Senhora em Vila Real.

Anónimo disse...

O Senhor Embaixador não vive em Portugal! Ainda bem para si… Histórias destas são o pão nosso de cada dia. Quando nos dirigíamos à Administração sabíamos que encontrava-mos pessoas, agora, só por muito acaso…

gherkin disse...

Banca, meu caro! Longos os tempos em que se falava com o gerente, cm foi o caso do seu pai!
Quem ganha, somos nós com tão excelente narrativa. Obrigado.
Gilberto Ferraz

Anónimo disse...

É por este e por outros, 'posts', que eu sou seu leitor.
JCM

Anónimo disse...

tristes "chicos espertos".

Anónimo disse...

Subscrevo Patrício Branco. De facto, ao que a CGD chegou. Fui, durante muitos anos, seu cliente. Mas, há coisa de uns anos a esta parte, deixei de o ser, por razões várias que tinham a ver com a "nova filosofia" da CGD.
Um Post corajoso.

Unknown disse...

Belo texto, sem dúvida, mas revela desconhecimento do que é prática há muito tempo nos bancos, não só por cá! Eu próprio perdi dinheiro numa aplicação há não muito tempo assim, simplesmente porque o banco me aconselhou determinado produto "5 estrelas", que até dava lucro em tempo de crise, e depois... fiquei a saber quem era Bernie Madoff... O banco, esse, estava resguardado de eventuais responsabilidades, pois não se tratava de um fundo de capital garantido. Nos dias de hoje não há bancos como antigamente os havia. O nosso mundo é outro, outro muito diferente...
Os meus respeitosos cumprimentos.
Carlos Gilbert

Unknown disse...

Belo texto, sem dúvida, mas revela desconhecimento do que é prática há muito tempo nos bancos, não só por cá! Eu próprio perdi dinheiro numa aplicação há não muito tempo assim, simplesmente porque o banco me aconselhou determinado produto "5 estrelas", que até dava lucro em tempo de crise, e depois... fiquei a saber quem era Bernie Madoff... O banco, esse, estava resguardado de eventuais responsabilidades, pois não se tratava de um fundo de capital garantido. Nos dias de hoje não há bancos como antigamente os havia. O nosso mundo é outro, outro muito diferente...
Os meus respeitosos cumprimentos.
Carlos Gilbert

Isabel Seixas disse...

Nem sei que diga, de facto.
Mas sempre belo, o texto, mas triste.

domingos disse...

Nesta história triste, a CGD tem formalmente razão; "o contrato foi assinado..." como já ouvi dizer. A raiz da questão é outra: hoje, os empregados dos bancos são incitados a vender aos clientes certos "produtos" (como agora lhes chamam) e são beneficiados com isso: promoções, bónus, louvores, prémios de produtividade, etc. Se o cliente enfia o barrete, problema dele. Este espírito competitivo, "darwinêsco", não existia dantes. São dirigentes bancários com MBA's estrangeiros que os copiam de práticas financeiras totalmente alheias à lisura e às honradas tradições do nosso povo.

Isabel Seixas disse...

Pois ...
Também conheço "funcionários" que por via da quase obrigatoriedade de subsistência profissional e para atingir os objetivos propostos/impostos fizeram esse tipo de aconselhamento para compra de "produtos" e quando se depararam perplexos com essa Nova realidade das perdas dos seus "clientes" pediram ajuda emocional aos técnicos de saúde para superar os sentimentos de culpa sem culpa "formal"...

Não minimiza a dor da D. Celeste.
mas faz-me continuar a acreditar que a maldade não é genuina...

Anónimo disse...

Pois é meu caro Amigo... Os bancos em geral estão a seguir os bns exemplos do Estado, o qual, segundo estudávamos há muios anos, tinha de ser "pessoa de bem". De facto, também os reformados pelo regime geral da Segurança Social descontaram uma vida inteira, mais de de 40 anos em muitos casos, cerca de 35% (trabalhador e patrão) do que ganhavam, na totalidade, para agora verem ser-lhes retirados dois vencimentos que também entraram no cálculo dos descontos. A bem dizer a história é semelhante à da senhora de Vila Real. Entrega-se o nosso dinheiro a uma instituição, para ser remunerada de uma certa maneira, contratualmente regulada e, passados uns tempos a instituição resolve unilateralmente de modo diverso. Penso que isto deve ser qualificado de um modo muito pouco abonatório para quem trata assim quem age de boa fé e sem alternativa. Saberá, certamente, que muitos desses produtos bancários tinham, e possivelmente ainda têm, contratos ou folhetos informativos com equações que incluem derivadas e integrais, matéria que é acessível a qualquer cidadão...
José Honorato Ferreira

SilvaRocha disse...

A CGD tem sido, desde sempre, o meu banco. Era efectivamente diferente dos outros. Mas disse «era» porque, na realidade, já não é. Quando o Durão Barroso, em plena campanha eleitoral, dizia que iria privatizar a Caixa, cedo deixou de o afirmar por ter sentido a reacção negativa das pessoas. A CGD funcionava como uma espécie de mecanismo moderador. Os outros bancos lançavam boatos do tipo «vão ser pagas as operações nos terminais multibanco» e aparecia a Caixa com o seu «poder popular» a pôr a´gua na fervura... Agora está igual aos outros.

Gil disse...

.Proponho uma interpretação alternativa: a D. Celeste faz parte daqueles milhões da portugueses que, embora advertidos pelos governantes e, até, pelos próprios bancos, decaíram viver acima das suas possibilidades e, praticamente, exigiram a criação de sofisticados "produtos financeiros" que lhes serviam para alimentar Deus sabe que nefandos vícios.
Agora chegou a hora da verdade; a contragosto, os bancos empobrecidos pela ganância dos particulares, vêem-se obrigados a cobrar os seus créditos para manterem as exíguas margens de lucro.
A culpa recai exclusivamente na prodigalidade das Donas Celestes da vida.

Miguel Reis disse...

Essa CGD já não existe há muito tempo. O monstro que a substituiu é efectivamente um monstro, que alocou milhões ao financiamento de negócios imprudentes, negando credito a empresas viáveis. Tudo com o maior desrespeito pela gente humilde que lhes confiou dinheiro com sabor a suor e sangue.

Mônica disse...

Sr Embaixador
O seu pai era um homem integro. Hoje os bancos nao sao assim mais. Só que no meu arraial, existiu um homem que nao confiava nos bancos , colocou o dinheiro debaixo do colchao envelheceu e nao percebeu que o dinheiro nao valia mais!
Quando faleceu viram o dinheiro debaixo do colchao com notas antigas e novas, mas todas sem valor . Quem ficou mais triste?
Seus familiares.
Tenha um bom sabado
com amizade Monica

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Carlos Gilbert: Eu conheço muito bem estes "produtos". O que acho obsceno é que eles sejam vendidos às pobres das Donas Celestes deste mundo, incautas compradoras dos mesmos, sem perceberem no que se metem. E não me venham com a "pressão" sobre os empregados bancários, para obterem resultados! Eles que me tentem vender os "produtos" a mim e a outros, que sabemos (?) bem aquilo em que estamos a arriscar. Mas não a quem a Caixa habituou à mera dualidade depósitos à ordem / depósitos a prazo. Isso chama-se pura fraude ou burla, os juristas que decidam qual a tipologia da desonestidade que preferem.

Anónimo disse...

Hoje a polícia matou um ladrão “por esticão”, de 18 anos, com um tiro.
Certamente, quando apanhar “estes todos, de que ouvimos falar, todos os dias, há tanto tempo”, vai metralhá-los…

Anónimo disse...

Caro Gilbert,
Os Bancos – hoje em dia - são aquilo que os deixam ser. Ou, melhor dizendo, aquilo que os Governos os deixam ser. Há já alguns anos a esta parte que a Banca está sem controlo, em (completa) roda livre e (quase) sem vigilância do(s) Regulador(es), etc. Ao ponto, até, no caso português, de os seus representantes terem assento no Banco de Portugal! Num outro país, como, por exemplo, a Suécia, tal situação dava prisão! Em Portugal é...legal!
A Banca, que está, largamente, na origem desta situação (economico-financeira) em que nos encontramos, em vários países (incluíndo – naturalmente – o nosso!), todavia, beneficia do tal “esquema” de resgate financeiro, a juros baixos, ainda que depois cobre aos seus potenciais clientes juros muito mais elevados. A CGD tem vindo, desde há algum tempo, a praticar uma "política" em nada diferente da Banca privada. É caso para nos perguntarmos para que serve esta CGD? A questão é que ninguém está interessado em mudar este tipo de procedimentos, seja a Administração (nomeada pelos Governos...), seja...o Governo (“compreensivelmente”!). Quem sabe, a pensar na privatização, a prazo - e passo a passo - da CGD. Aguardemos até 2015.
“Atento

Helena Sacadura Cabral disse...

Meu querido José Honorato estás cheio de razão. Infelizmente o Estado e a CGD há muito que deixaram de ser pessoas de bem.

Anónimo disse...

Permita-me, Senhor Embaixador, que discorde de si.
Estes "produtos" são criados pela banca, CGD incluida (pelas suas administrações e não pelos trabalhadores que têm que os vender), para serem sobretudo impingidos às Donas Celestes deste mundo e não ao Senhor Embaixador e outros que sabem (?)aquilo que estão a arriscar.

É burla?
É.
É fraude?
É... mas não é questão jurídicamente relevante, uma vez que o autor e beneficiiário é o capital financeiro.
V

25 de novembro