domingo, agosto 05, 2012

Almanaques

Na casa da minha avó paterna, em Viana do Castelo, um belo edifício frente à doca onde hoje se acolhe uma fundação musical, havia um escritório que, por quase uma dezena e meia de Agostos, se transformava no meu quarto. Recordo-me que, ao redor da cama, para além de uma escrivaninha, havia três armários envidraçados, dentro dos quais reluziam belas encadernações de livros, pertencentes a um membro da família que morrera ainda antes de eu nascer, o tio Túlio. A sua figura severa olhava-nos da parede, de uma fotografia em que aparecia com uma farda cinzenta de tenente da Cruz vermelha. Ao lado, num outro caixilho, que tilintava quando se lhe tocava, jaziam as suas condecorações. Os livros estiveram, por muito tempo, inacessíveis à ala mais jovem da família, fechados à chave. Estava por lá tudo o que era literariamente óbvio na pátria - Eça, Camilo, Júlio Dinis, Herculano, etc. - e uma imensa diversidade de obras estrangeiras, que assentava muito no realismo francês do fim do século XIX e, na área do ensaio, tinha coisas muito ecléticas e até cientificamente bizarras. Por razões que a memória da família não acolhe, recordo ainda existirem textos vários, em português e francês, sobre espiritismo. Só lá para os meus 13 ou 14 anos é que tive direito às chaves dos armários talvez porque, verdade seja dita, apenas nessa idade comecei a ter curiosidade em explorar alguma daquela livralhada. De início foi Jules Verne e os muitos Sandokan. Depois, aconselhado em segredo por primos mais velhos, aventurei-me, pelas razões naturais da idade, por literatura com páginas tidas por mais excitantes, num outro mundo de aventuras...

Mas todo este preâmbulo serviu apenas para dizer que, num dos armários, o tio Túlio tinha uma magnífica (e julgo que, à época, muita completa) coleção dos Almanaque Bertrand, umas dezenas de preciosos volumes de que eu bem gostaria hoje de ser proprietário (que será feito deles?). Embora a "cultura de almanaque" de alguns nossos conhecidos fosse sempre objeto de ácidas graças no seio da nossa família, a verdade é que esses belos anuários, que aliavam o caráter de repositório de memórias com anedotas, curiosidades, jogos, curtos textos literários, de humor e de divulgação, foram muito importantes para algumas gerações, num tempo sem televisão e com a rádio apenas a nascer, em que muita imagem era substituída por imaginação.

Nesta ensoleirada tarde de domingo, com a Bertrand do Chiado aberta (viva a crise!), adquiri, por uma muito módica quantia, o Almanaque Bertrand nº 72, relativo a 2012/2013. E, por mais de uma hora, na esplanada da Brasileira, em frente ao "Paris em Lisboa", na qualidade de quase único representante português na maré de estrangeiros que se fotografavam com o metálico Pessoa, diverti-me imenso com essa encadernada fonte de informação e distração. E recordei, com alguma saudade e gratidão, o tal tio Túlio que nunca conheci. 

Do Almanaque deste ano, deixo esta divertida definição (muito injusta, reconheça-se) do "Folar de Chaves": "grossas almofadas confecionadas a partir de restos de croissant e recheadas com bacon, linguíça, salpicão e espanhóis"...

11 comentários:

gherkin disse...

Então o seu tio Júlio já tinha como amigos os meus Sandokans da infância? Por isso, considero-me da família! Sandokan, que saudades quando eram comentados entre amigos, como os filmes, que, depois de exibidos, eram debatidos pelo nosso grupo de infância! Obrigado por mais esta "pérola" evocativa!

Isabel Seixas disse...

Não vou negar que gostei imenso do texto,agora...
O último parágrafo era (Quase,pese embora a publicidade) escusado.

Até desativei o ID e o Ego ...

Daí que toda superego e apelando aos meus valores de isenção, acredito no Seu juizo de valor(oportuno de atenuante).

PS De outro olhar "Grossas almofadas" e "Espanhóis"...Não faltará quem prefira essa receita!

FERNANDO Pessoa disse...

Só uma pequena correção: em frente à Esplanada da Brasileira tem a Benetton, em frente à Paris em Lisboa é a Benard, e os seus melhores croissants. Boas ferias!

patricio branco disse...

minha mulher compra os almanaques Bertrand e é bom que a livraria continue a tradição. Em casa de meu avô havia o almanaque que muito me divertia folhear e depois ler .
Estas entradas são boas evocações da vida passada, para quem escreve e lê.
Ps. desconheço o que são os "espanhois" que entram no recheio do folar, algum enchido assim chamado na região, talvez

Fernando Correia de Oliveira disse...

Sobre os Almanaques:

Parecerá extranho mencionar, em hum Jornal de Instrucção Publica, a existência de hum Almanack, e com tudo estamos persuadidos, que esta he a folha mais competente para tal fim, porque hum livrinho destes encerra muitas noticias, que devem interessar aos jovens, como aos velhos (…). Muitas vezes uma Folhinha resolve huma duvida, que seria muito trabalhoso resolver, quando houvéssemos de recorrer á Historia, ás Ephemerides, e a outros meios,
que nem sempre estão ao nosso alcance.

A Folhinha, Kalendario, ou Almanack, he necessário a todo o homem, que se emprega em alguma cousa na sociedade, porque necessita para se regular saber, quaes os dias santificados, nos quaes he exempto do trabalho nas suas repartições, cargos, tribunaes, officios, &c., he útil, por que também he conveniente saber os dias de Lua, as horas de nascimento e occaso do sol, a
noticia dos ecclipses e de outros phenomenos da natureza (…).

Almanak Familiar de Vicente Ferreira, 1856

ou ainda

E se os livros todos desaparecessem, bruscamente, e com eles todas as noções, e só restasse, da vasta aniquilação, um Almanaque isolado, a Civilização guiada pela indicações genéricas, sobre a Religião, o Estado, a Lavoura, poderia continuar, sem esplendor, sem requinte, mas com fartura e com ordem. Por isso os homens se apressaram a arquivar essas verdades de Almanaque, - antes mesmo de fixar em livros duráveis as suas Leis, os seus Ritos, os seus Anais. Antes de ter um Código, uma Cartilha, uma História, a cidade antiga teve um Almanaque.

Eça de Queiroz

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador,
Ao ler o seu post, lembrei-me de como pode ser bom fazer férias em Lisboa, em Agosto.
É o que venho fazendo há uma semana e nunca elas me pareceram tão agradáveis.
Como o Senhor Embaixador, mas um pouco mais abaixo, também me dei ao luxo de tomar o PA, mas na esplanada da Benard.
Uma delícia!

Anónimo disse...

Mais uma narrativa de flashback a propósito de uma ida ao Chiado. Boas férias, com muitos momentos destes!

Carlos Fonseca disse...

Creio que na pequena vila do Baixo Mondego, onde nasci, não haveria muitos habitantes que conhecessem o Almanaque Bertrand (embora quase todos soubessem da existência da Livraria Bertrand, que tinha um quiosque/livraria na estação de caminho de ferro).

Naqueles longínquos tempos - estou mesmo a ficar velho, e com saudades dos mergulhos no Mondego ou no Arunca - o Almanaque mais lido localmente, era o Borda d'Água.

Uma grande parte da população nem trabalho certo tinha, quanto mais dinheiro para o Almanaque Bertrand.

Anónimo disse...

Caro Carlos Fonseca, era o Borda d'Água e o Seringador, mais esquecido. Quanto ao almananaque Bertrand, mais chique ;), encontram-se dos mais antigos na feira da ladra e em muitos alfarrabistas de vão de escada. Gosto de os comprar, (a esse e aos outros) quando são em conta. É mesmo "tara" por almanaques e coisas do género. Se houver algum clube, eu junto-me.
Parabéns pelo blog, senhor Embaixador.

António (Coimbra)

Elza Felgueiras (Viana do Castelo) disse...

Muito boa noite Sr.Embaixador

Ao ler o seu texto verífico que existe algo em comum, o seu tio Túlio era padrinho do meu avo paterno com o mesmo nome.
O nosso avo era o melhor avo do mundo e arredores, pessoa dócil, meigo e tinha um coração muito grande, já faleceu alguns anos e não ha dia que não me lembre dele,e sei que hoje e o meu anjo da guarda. Desculpe este carinho.

Elza Felgueiras (Viana do Castelo) disse...

Muito boa noite Sr Embaixador

Ao ler o seu texto verífico que existe um nome em comum na sua e na minha família 'Túlio'.

O seu tio era padrinho do meu avo paterno, com o mesmo nome,para mim e para o meu irmão era o avo que muitos gostariam de ter, mas só nos e que tivemos o prazer e o orgulho de conviver com este avo que era um homem dócil,honesto e que tinha um coração do tamanho do mundo.

A lei da bomba

Acho de uma naïveté simplória os raciocínios que levam a sério a letra da doutrina nuclear russa. Como se a Rússia, no dia em que lhe der na...