Agora que o presidente Lula se prepara para abandonar a chefia do Estado brasileiro, vem-me à memória uma história dos meus tempos no Brasil.
Foi em 2008. O presidente Cavaco Silva visitava oficialmente o Brasil, no quadro das comemorações da chegada da corte portuguesa, 200 anos antes. Um conjunto de cerimónias teve lugar no Rio de Janeiro. Pelo que me dizia respeito, como embaixador de Portugal, insisti imenso em incluir no programa da visita uma deslocação do presidente Lula ao Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.
O Real Gabinete é uma instituição sui generis. Num edifício de desenho eclético, onde prevalece um neomanuelino com distorção transatlântica, que recorda um pouco a estação do Rossio ou o hotel do Bussaco, aí repousam centenas de milhar de livros em língua portuguesa, sendo hoje o maior repositório existente fora do nosso país. Mas o Real Gabinete é um muito mais do que um interessante edifício: é a expressão simbólica do magnífico esforço da comunidade portuguesa para erigir, no Brasil, um monumento representativo da dignidade da sua presença, da empenhada contribuição dada por muitos e muitos milhares de portugueses para a construção daquele país.
Infelizmente, o Real Gabinete não é muito conhecido dos brasileiros, nem sequer dos muitos turistas portugueses que, no Rio, lhe preferem o Calçadão, Ipanema ou o Leblon. Situado numa zona que veio a tornar-se algo periférica, só lentamente começa agora a surgir nos itinerários turísticos e culturais. Em tempos idos, para os portugueses desafetos ao regime ditatorial que vigorou até 1974, o Real Gabinete representava também uma certa "colónia" de matriz salazarista, que tendia a confundir o respeito pelo nosso passado com a adesão a quantos o utilizavam como arma de arremesso contra os que pretendiam forçar os caminhos do futuro.
Eu sou um "fã" do Real Gabinete, confesso. Por isso, aí me desloquei sempre que pude, durante o tempo que permaneci no Brasil. Uma visita do presidente Lula, acompanhando pelo nosso chefe de Estado, parecia-me ser a melhor maneira de simbolizar a relação luso-brasileira contemporânea, em especial naqueles tempos em que o Brasil nos estava a ajudar a melhorar a imagem que dom João VI conservava na nossa própria memória coletiva. Além disso, interpretava a sua realização como uma subliminar homenagem à matriz fundacional do Brasil, com tanto mais significado quanto o seria ser levada a cabo por um presidente brasileiro oriundo de uma área política onde tradicionalmente se não acolhem os maiores amigos brasileiros de Portugal.
A minha sugestão foi simpaticamente aceite por Lisboa. Nas autoridades brasileiras ela fez também o seu curso, com suportes e estímulos vários, acabando por ser acolhida. Quando o dia chegou, devo dizer que estava com uma grande curiosidade para ver a reação que teria o presidente Lula, na sua entrada no Real Gabinete, durante o trajeto que lhe desenhámos, o qual, naturalmente, não incluia a passagem pela sala onde figura o busto do ditador de Santa Comba.
Não me desiludi. O chefe de Estado brasileiro, naqueles segundos em que defrontou e prescutou a imensidão de estantes, recheadas de quase meio milhão de livros, num espaço belíssimo, com uma dimensão grandiosa, terá percebido mais, sobre o papel dos portugueses no Brasil, do que em toda a sua anterior vida. A sua cara não iludia, os comentários que trocava com os interlocutores próximos eram de um genuíno deslumbre.
Não me desiludi. O chefe de Estado brasileiro, naqueles segundos em que defrontou e prescutou a imensidão de estantes, recheadas de quase meio milhão de livros, num espaço belíssimo, com uma dimensão grandiosa, terá percebido mais, sobre o papel dos portugueses no Brasil, do que em toda a sua anterior vida. A sua cara não iludia, os comentários que trocava com os interlocutores próximos eram de um genuíno deslumbre.
Lula tomou lugar na tribuna. Continuava a olhar, deliciado, em torno daquela grandiosa obra portuguesa no Brasil. Começaram os discursos. A certo ponto, vejo Lula acenar, levemente, para um dos varandins superiores, onde se situam as estantes com livros: estava a saudar empregados, com bata de trabalho, que aí se haviam colocado para ver o seu presidente. Era Lula no seu melhor...
O discurso que então proferiu foi uma das peças oratórias sobre Portugal que, desde sempre, mais me impressionaram, na boca de um dirigente brasileiro, em especial vindo de um político com as origens de Lula. Ao longo de dois séculos, muitos outros foram bem mais gongóricos, imensos se espraiaram em loas adjetivadas à "mãe pátria" lusitana, mas nenhum outro, que eu tenha conhecimento, foi tão moderno e pragmático, mesclando a afetividade com o realismo, substituindo a cerimónia por uma visão inteligente e lúcida. E, ao mesmo tempo, simples.
A ida do presidente Lula ao Real Gabinete Português de Leitura, naquele dia de Março de 2008, representou um olhar diferente do Brasil contemporâneo sobre o Portugal de sempre, talvez com menos "caravelas" do que era habitual, mas com os pés bem assentes naquilo que, nos dias hoje, importa sublinhar e reter. Se estiverem interessados, leiam o discurso aqui.
10 comentários:
Caríssimo Embaixador Francisco Seixas da Costa,
O Real Gabinete Português de Leitura, como nos diz, foi alvo de grande devoção durante o Salazarismo, mas isto não justifica que tenha sido durante a II(III) República votado ao "ostracismo".
Foi bem mais airosa a estratégia delineada pelo Senhor Embaixador ao dar a conhecer ao Presidente Lula da Silva este marco cultural da presença dos portugueses no Brasil, já que o livrou de encarar o semblante do ditador de Santa Comba Dão. Mas, pelo menos, não foi preciso retirar o busto de Salazar, porque sempre me fez impressão o branqueamento da memória colectiva que normalmente os revolucionários querem fazer quando destronam um regime ou um chefe considerado odioso. A História é para o bem e para o mal feita dos sucessos e dos revezes, das vitórias e das derrotas e, portanto, nunca compreendi este tipo de atitudes de radicalismo emocional.
Não conheço o Real Gabinete Português de Leitura, mas se um dia visitar o Brasil será decerto um dos meus locais de eleição até porque ele corporiza o espírito lusófono em que me revejo!
Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt
Teve sorte Sr. embaixador. Se a fala fosse de improviso, principalmente aquelas pela tarde e suado...
Um momento lúciodo da História.
A frase que mais me impressionou: "Neste ano também comemoramos o quarto centenário do Padre Antônio Vieira, o mais brasileiro dos portugueses e o mais português dos brasileiros. Além de figurar entre os grandes nomes da literatura de nossos países, distinguiu-se como defensor dos direitos dos índios e dos negros."
Obrigado caro jornalista Paulo Martins
Excelente texto senhor embaixador. Acredito que o presidente Lula tenha ficado impressionado com o edificio, e com os livros. Que os quisesse ler - estou a ser mazinha - e' que tenho duvidas!
Senhor Embaixador
Oportuníssimo post.
E, pese embora a surpresa, belo discurso o de Lula, mesmo sabendo que não terá sido ele que o fez. Basta o facto de o ter aceitado, para que isso já represente a sua adesão ao conteúdo do mesmo
O discurso não é obviamente de Lula. Quem quer conheça o itinerário e a amplitude mental do personagem saberia que, por uma vez, ele abandonou seus famosos, e inacreditáveis, "improvisos", para ler um texto preparado por burocratas do Estado.
Certas coisas precisam ser ditas: o discurso é do presidente do Brasil, mas não é de Lula...
Paulo Roberto de Almeida
Parabéns senhor embaixador pelo texto sobre nosso presidente no Gabinete Real de Leitura, um lindíssimo espaço, hoje bem mais conhecido entre nós brasileiros, mesmo no sul, em Porto Alegre, como é meu caso. O presidente Lula é um homem sempre surpreendente. A leitura de seu post me faz ter ainda mais certeza da genialidade política deste homem de origem humildade, que certamente gostaria de ter lido todos aqueles livros, mas foi impedido pelas circunstâncias da vida. Não posso deixar de parabenizá-lo também por compartilhar seus pensamentos por intermédio de uma ferramenta contemporânea como um blog. Trata-se realmente de um diplomata dentro de seu tempo histórico.
Mágda Cunha, jornalista e pesquisadora/PUCRS
Oh!
Quem me dera passar lá um dia...
Isabel Seixas
Caríssimo Embaixador,
Tive, naquela ocasião, a honra e a alegria de ter sido - como dizemos - o "diplig" (diplomata de ligação) do Presidente Cavaco Silva, ao longo de sua estada no Rio de Janeiro para as celebrações do Bicentenário da vinda ao Brasil da Família Real portuguesa.
Colho o momento para parabenizar Vossa Excelência pelo interessantíssimo "blog" e enviar-lhe os votos de boas Festas e de um feliz Ano Novo.
Carob Emerson: que gosto vê-lo por este espaço. Grandes saudades tenho desse tempo magnífico e dessa visita bem sucedida, para a qual ambos contribuímos. Um forte abraço para si e votos de Boas Festas
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