terça-feira, outubro 17, 2017

E agora, António?


“Toda a vida é feita de mudança”, escrevia Camões. Em poucos meses, do Portugal otimista - do Europeu à Eurovisão, dos sorrisos das agências de “rating” ao namoro Belém-S. Bento, do deslumbre dos turistas ao colorido orgulho nacional, enfim, do país das maravilhas abençoado até pelo papa - caiu-se na depressão, por culpa da tragédia dos fogos e dos mortos que eles trouxeram. A tragicomédia de Tancos também ajudou ao fim da festa. E a fácil ciclotimia emocional lusitana confirmou-se, uma vez mais. 

Há que convir que o governo não tem conseguido gizar um discurso totalmente convincente, pelo que uma parte do país, mesmo dentre aqueles que o apoiam, passou a colá-lo à insegurança que hoje visivelmente muitos sentem. Alguns já pensam que o executivo “is in office, but not in charge”, para usar a clássica dualidade anglo-saxónica. Governar é também saber transmitir confiança, e esta está hoje visivelmente em carência. 

As pessoas até sabem que o estado da floresta é o que é, que a inconsciência e o crime espreitam por aí, que a meteorologia tem sido excecionalmente adversa, que os meios disponíveis seriam sempre finitos e insuficientes se acaso as condições ultrapassassem, como ultrapassaram, o razoável e o expectável, que quem chefia as operações fez seguramente todo o melhor que sabia, fosse o que fosse esse melhor - sabem tudo isso, mas não conseguem aceitar o que lhes sucedeu. A racionalidade é um bem escasso, por estes tempos, com tantas tragédias em cenário de fundo.

Saído de uma vitória eleitoral sólida, há meia-dúzia de dias, António Costa vê-se assim, da noite para a manhã, objeto de um clamor nacional, fruto de um imenso desespero, convertido em desesperança. O presidente da República, sintonizado com a óbvia emoção das pessoas, entrega agora ao parlamento a resposta sobre a sustentabilidade da solução política que gere o país. E sublinha isso com rara ênfase. Coloca-se numa posição de atentismo, o que é um claro recuo face ao modo como vinha a relacionar-se até aqui com o executivo. Porém, ele também sabe que não tem, por ora, condições para proceder a um teste eleitoral relegitimador, tanto mais que o principal partido da oposição vive uma indefinição interna. 

Escrevi “por ora”: é ao governo, é a António Costa que compete criar condições para que Marcelo Rebelo de Sousa não venha a ter essa tentação. Cada dia que passe sem que o país mude da perceção em que parece ter caído torna as coisas mais difíceis, tudo agravado por uma comunicação social crescentemente hostil, com uma oposição sem sombra de vontade de compromisso, com um apoio político-partidário ao governo ainda atravessado por várias tensões. É, porém, nestes momentos complexos que os verdadeiros líderes se testam. António Costa tem aqui o seu grande exame. Por mim, continuo plenamente confiante em que será aprovado. Alguns acharão que se trata apenas de “wishful thinking”. Logo veremos.

segunda-feira, outubro 16, 2017

Incêndios


Atravessei ontem parte do país, nas piores horas dos fogos. Cruzei-me, ao longo de autoestradas e de estradas secundárias que por vezes fui forçado a seguir em alternativa, com dezenas de fogos, que se sucediam num ritmo incrível e quase surreal. Senti o clima sem pinga de humidade, o vento forte que fazia aproximar as chamas da estrada, mudando de sentido de quando em quando.

O ordenamento das matas é o que é, os meios de combate disponíveis são finitos, a conjuntura climatérica que vivemos é de uma reconhecida excecionalidade. Nenhum país do mundo está preparado para ocorrências destas dimensões. Como se vê, aqui ao lado, em Espanha.

Percebo a tentação para fulanizar politicamente as culpas, mas entendo que se trata de um ato de despero sem sentido tentar encontrar culpados fáceis naquilo que a natureza nos impõe, por estes dias, como quase inevitável.

O futuro na Unesco

No seio das várias atitudes controversas que Donald Trump tem vindo a tomar na ordem internacional, o anúncio da saída dos EUA da Unesco deve ser visto como significativo, mas, no entanto, como um episódio menor. A circunstância de Israel ter acompanhado a atitude americana revelou a racionalidade subjacente: foi uma resposta a decisões recentes que, no âmbito da organização, foram tomadas num sentido que as autoridades israelitas interpretam como hostis aos seus interesses.

A Unesco é uma agência da constelação das Nações Unidas dedicada à educação, à ciência e à cultura. Ela é mais visível, contudo, na leitura das opiniões públicas, pela classificação dos Patrimónios, de natureza material e imaterial, disputadas pelos vários países, como fatores de prestígio, com consequências económicas não despiciendas. Não obstante os seus objetivos poderem indiciar alguma neutralidade temática, tornou-se evidente, ao longo do seu historial, que a Unesco se foi transformando num palco secundário dos grandes afrontamentos políticos à escala global. Por um tempo, a Guerra Fria e as questões do então chamado Terceiro Mundo marcaram os dias da Unesco. Em crescendo, o diferendo israelo-palestiniano transportou para aí toda a sua acrimónia. 

A partir de certa altura, o mundo ocidental revelou um certo incómodo com o curso tomado pela organização, vista como um instrumento para agendas adversas aos seus objetivos. Os Estados Unidos e o Reino Unido, por exemplo, haviam já assumido, no passado, gestos de afastamento da Unesco, com consequências graves nas respetivas contribuições financeiras. Outros Estados não deixaram de mostrar sintomas de idêntico desagrado, apenas minorados pelo imperativo de terem de manter um relacionamento minimamente eficaz, no plano diplomático, com zonas do mundo que usavam a organização para dar relevo às suas especificidades culturais ou de relativismo civilizacional, como era o caso do mundo islâmico. Algum regular viés doutrinário em certas decisões geradas no seu seio, embora de forma indiscutivelmente democrática, contribuíram para que a Unesco sempre mantivesse a si associado um registo polémico, bem patente nos momentos de mudança dos respetivos diretores-gerais. 

Convém, no entanto, ser justo: dentro da Unesco, continuou sempre a a ser desenvolvido, em muitas e importantes áreas, um trabalho reconhecidamente notável, da maior importância no plano científico e cultural, que garantiu à organização um lugar interessante, respeitado e prestigiado no universo multilateral. 

A recente decisão da administração Trump de abandonar a Unesco insere-se naquilo que é manifestamente o multilateralismo "à la carte" que Washington assumiu como doutrina: utilizar o mundo das organizações internacionais quando ele convém à sua agenda nacional e atuar, nas áreas multilaterais onde os seus interesses não são servidos, de uma forma hostil e até agressiva. Acho, aliás, que estamos apenas no início desta coreografia política da equipa de Trump.

Como sairá a Unesco desta crise? É evidente que os tempos futuros não vão ser fáceis para a organização, mas a verdade é que a atitude americana que vinha do passado também já tinha conduzido a Unesco a restrições muito fortes em vários dos seus programas. Os próximos anos serão complexos, mas talvez o facto da nova diretora-geral, há dias eleita, ser francesa possa trazer a Europa para um papel mais importante na Unesco. E isso faria toda a diferença.

Nós e a Unesco

O nosso país tem um historial interessante na Unesco e um registo de relação muito frutuosa com a organização. Muito embora tivéssemos o trauma de uma candidatura frustrada, em 1987, à sua liderança, com Victor Sá Machado, figuras houve – como Ernesto Melo Antunes, Maria de Lourdes Pintasilgo ou José Augusto Seabra – que aí granjearam forte prestígio. Também Mário Ruivo e José Mariano Gago são nomes portugueses que, ainda nos dias de hoje, são mencionados com grande respeito pelos corredores da organização, pelas contribuições de altíssima valia que lhes são reconhecidas, respetivamente nas questões da política dos Oceanos e nas áreas da Ciência.

Em tempos mais recentes, Portugal obteve na Unesco vitórias importantes, quer em eleições para as suas estruturas, quer no sucesso de candidaturas ao estatuto de Património material e imaterial. Além disso, passa muito pela Unesco o esforço que o nosso país, em articulação com os restantes Estados que falam português, desenvolvem para a consagração global da sua língua comum, suporte das diversas culturas que nela se expressam.

Foi à revelia destes interesses que a Unesco foi surpreendida, em 2012, com a retirada do embaixador representante permanente que, desde sempre, Portugal mantivera junto da organização, passando a entregar essa função, em acumulação, ao representante diplomático em França. Sei do que falo, porque fui precisamente o diplomata que, pela primeira vez, teve de acumular ambos os “chapéus”, numa ubiquidade quase impossível. 

A Unesco fez-nos então sentir o desagrado pelo gesto, tanto mais incompreensível quanto tínhamos acabado, com alarde nacional, de ver o Fado consagrado como Património Imaterial e, na nossa agenda, figuravam difíceis dossiês que, nas condições materiais e humanas em que passámos a ser forçados a trabalhar, foi muito difícil levar a cabo. Quer eu quer o colega que me sucedeu nessas funções fizemos o que nos foi possível. Mas devemos assumir que este tempo foi um “parêntesis” que é preciso abrir.

Portugal deve, dentro em breve, ser eleito para o Conselho Executivo da Unesco, o órgão máximo da organização, depois de uma magnífica campanha montada pela nossa diplomacia. Não quero dar conselhos a quem deles não necessita, mas acho que seria este o momento de Portugal indicar de novo um embaixador dedicado exclusivamente à Unesco, reatando uma tradição perdida num momento menos feliz da nossa história prestigiada dentro da organização. 

(Artigo hoje publicado no "Diário de Notícias")

domingo, outubro 15, 2017

Manuel Freitas


Há quanto tempo nos conhecíamos? Nem sei bem. Há bem mais de meio século, pela certa. O Manuel (Manel, como eu o tratava) era mais velho do que eu alguns anos. E um ano, no tempo da adolescência, faz (ou fazia) uma imensa diferença. Lembro-me dele a namorar a mais bonita rapariga de Viana, a minha prima Filomena. Mantínhamos, por essa época, uma cordialidade algo cerimoniosa. Era originário da zona de Aveiro, o tio, que o protegia, tinha em Viana uma importante ourivesaria, perto da Praça, junto à Matriz. O Manel andou entretanto pela tropa, em Moçambique. Depois, foi para o Porto acabar Económicas. Aproximámo-nos por lá. Ele, no entanto, estudava e eu só fingia que o fazia. Vivíamos em ruas paralelas, ele no Breyner, eu na Miguel Bombarda, ambos com quartos a meias com colegas. O dele tinha um sofá, o meu não (lembrei-lhe eu, rindo-nos, ainda no mês passado). Jantávamos no Zé dos Bragas, íamos ao café ao Centro (o Centro Universitário do Porto, detestado pela esquerda), onde fiquei amigo de muitos dos seus amigos. O cinema juntáva-nos com alguma frequência (vimos e discutimos o "Barbarella" numa tarde no Rivoli, comigo a detestar o filme e ele mais preso à graça da Jane Fonda). Depois, casou com a tal mais bonita rapariga de Viana. A partir daí, o Manel passou a ser uma visita que eu sempre cumpria, com gosto, nas minhas frequentes idas (melhor, vindas, porque escrevo isto aqui) a Viana. Vi nascer-lhes e crescer os filhos e assisti à tragédia que, sucessivamente, foi a desaparição, ambos em condições trágicas, da Marisa e do Eduardo. Notei, entretanto, o seu gosto crescente pela cidade que fez sua, a sua militância política (foi fundador local do PPD), o seu empenhamento cívico, com voz forte, nas televisões, pelos interesses locais. Exprimia-se lindamente, era culto e preparado, frontal nas posições e forte nas ideias que exprimia, não desdenhando uma boa polémica, o que o não tornou consensual - e ele gostava desse "estatuto"! Testemunhei o seu desespero pela barbaridade dos assaltos violentos à sua ourivesaria, ao Museu do Ouro, que desinteressadamente criara, como preito à arte de ourives, em que ele próprio se tornou conhecedor, de que publicou livros, de cujo valioso espólio fez oferta generosa à cidade, em memória do filho. O tempo (melhor, a idade) foi criando, entre nós, uma amizade sólida e sincera, caldeada em longos anos de convivência desinteressada, pela qual nunca perpassou a menor réstea de conflitualidade, sabendo nós que, na política, olhámos sempre cada um para seu lado (nos últimos anos, demo-nos conta de que, afinal, as nossas divergências eram ínfimas e irrelevantes). Um dia, há já algum tempo, deu-me conta da doença, mas também da esperança com que a defrontava - ele que passara por tragédias familiares quase insuperáveis, cuja devastação pessoal sofrera na pele. A derrota final foi hoje, à hora de almoço, depois de uma luta tenaz. Há semanas, numa visita que lhe fiz, vi-o pela última vez, com o olhar já perdido, o ânimo esmorecido, uma sombra do Manel que sempre nos brindava com um sorriso largo, alegre por nos ver. Nessa mesma noite telefonou-me, com um pretexto simples, uma conversa que tive por uma despedida. Para trás, fica agora, aqui por Viana, a Filomena aquela que foi a rapariga mais bonita da cidade, que assim o perde, como, no passado, foi perdendo os pais, um irmão e os filhos. A ela, com a amizade fraterna de uma vida, só posso desejar a serenidade possível e toda a coragem do mundo.

sábado, outubro 14, 2017

Somos netos da madrugada?


Há qualquer coisa que indicia um malsão e inexistente estado de exceção no espetáculo do ministro das Finanças a entregar ao chefe do parlamento, tarde na noite, o Orçamento para 2018, seguindo depois para uma conferência de imprensa pela uma da manhã. É para apagar mediaticamente os "fogos" de Pedrógão ou as faúlhas de Sócrates? Seja por que motivo for, é preciso dizer de forma clara que, em democracia, as coisas não devem passar-se assim. Há rituais de serenidade e eficácia que devem ser respeitados, para que os cidadãos fiquem com a certeza de que quem os governa não anda "à bout de souffle", que as coisas do Estado estão em boas mãos e são tratadas nas devidas horas, que o tempo dos "homens sem sono" já foi chão que deu uvas. As madrugadas servem para um copo no Procópio, não para coreografias de Estado.

sexta-feira, outubro 13, 2017

Para além da Catalunha


Há questões que o caso da Catalunha suscita, que vão para além da coreografia política de quem se revê nas posições dos senhores Puigdemont e Rajoy.

O direito à autodeterminação (livre decisão sobre o futuro de uma comunidade) e à independência (constituição de um Estado) estão vulgarmente ligados, no imaginário político internacional, a antigas colónias ou territórios não autónomos, numa lógica de “libertação”. É assim, aliás, que o tema é tratado nas Nações Unidas, onde esses direitos são institucionalmente protegidos. Mas há outros exemplos: novos países que emergiram da implosão de Estados, quase sempre numa afirmação democrática contrastante com um modelo autoritário que prevalecia no antecedente.

O caso da Catalunha traz à nossa atenção um fenómeno novo, que só encontra similitudes com o exemplo da Escócia. Trata-se da circunstância de uma comunidade inserida num Estado plenamente democrático, que aí usufrui de uma plenitude e igualdade de direitos, mas onde a ordem constitucional não prevê um qualquer modelo de secessão territorial, pretender, um dia, organizar-se num Estado autónomo. (Não importa aqui discutir a validade da recente consulta organizada na Catalunha). Não estamos perante comunidades oprimidas, sujeitas a um jugo anti-democrático. É apenas a circunstância de uma parte da população de um Estado, reivindicando-se de uma identidade específica e de um determinado território, decidir cindir-se, pelo facto da vontade de viver autonomamente se sobrepor ao interesse em continuar junto, por ter considerado que essa sinergia lhe trazia mais inconvenientes do que vantagens.  

No caso britânico, onde o reino é “unido”, o parlamento central não viu inconveniente em permitir um referendo, o qual, se acaso tivesse tido um desfecho favorável, poderia ter conduzido à independência da Escócia. A ordem jurídica britânica tem esta flexibilidade, aceite por todos. 

No caso espanhol, as coisas não se passam assim. A Constituição de 1978, aliás votada maioritariamente na Catalunha, não prevê essa rutura. Assim, ela é ilegal. A questão passa a ser política e não jurídica: os habitantes numa região de um Estado cuja ordem constitucional votaram (neste caso, catalães e todos quantos vivem na Catalunha, mesmo não se considerando catalães), a meio do seu percurso histórico, podem mudar de opinião? Mas, atendendo ao impacto dessa cisão sobre o todo de que faziam parte, essa aferição de opinião pode ser feita contra a vontade explícita das restante partes desse todo?

(Artigo publicado no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, outubro 12, 2017

Sócrates


Sócrates foi acusado pelo Ministério Público. Já não era sem tempo! Agora que foi deduzida uma acusação concreta, vai ser possível à opinião pública, sem ser através de fugas alambicadas para a comunicação social, ter acesso à leitura dos factos que hoje permitem à justiça formular as suas graves imputações. Pelo que entretanto já foi divulgado, José Sócrates e os restantes acusados vão ter de explicar muita coisa. Há factos que parecem muito estranhos, circunstâncias que se afiguram muito pouco óbvias, coincidências e ligações que vai ser necessário dilucidar com clareza. Ao longo deste tempo, é evidente terem-se adensado crescentes dúvidas, no seio da opinião pública, sobre as atividades do antigo primeiro-ministro. Muitas pessoas, algumas das quais também ajudadas por preconceito político, mas muitas outras com total boa fé, consideram já Sócrates culpado. No que me toca, porque só sei o que leio e não dispenso o contraditório, não posso por ora concluir se Sócrates é ou não culpado, em parte ou no todo, daquilo de que o acusam. Mas também eu criei dúvidas, que quero esclarecer. Também eu quero saber toda a verdade sobre aquilo de que é acusado alguém que conheci há mais de 20 anos, de quem fui colega de governo durante mais de cinco anos, que foi meu primeiro-ministro durante seis anos. Mas não é a mim que compete julgar Sócrates, essa é a função dos tribunais. Espero que o julgamento que se vai seguir nos traga essa verdade, seja ela qual for. Não é confortável para um país ver um seu antigo chefe de governo a contas com a justiça, em especial acusado de graves atos de improbidade cometidos no exercício do cargo que o voto popular lhe confiou. Porém, se a investigação tivesse durado um tempo razoável e se não se tivessem registado "leaks" que em nada enobreceram a neutralidade da nossa justiça, seria tentado a dizer, desde já, que só pode dignificar o nosso sistema judicial a circunstância de figuras poderosas poderem, sem a menor limitação, ser levadas à barra dos tribunais. Mas di-lo-ei, de muito bom grado, se, no final deste processo, todos pudermos concluir, sem a menor sombra de dúvidas, que foi feita justiça.

quarta-feira, outubro 11, 2017

Seguidores

Dou conta, na coluna ao lado, de ter atingido os 900 seguidores - pessoas que recebem um email diário com as publicações deste blogue. Diz-me quem sabe destas coisas que, se a esse número se somar a média diária de 1500 leitores que visitam este espaço, e se pensarmos que há muitos que o fazem apenas algumas vezes por semana ou por mês, o universo de leitura regular ou irregular do blogue deve situar-se nas 5000 pessoas. É um número muito simpático, tanto mais que os textos aqui publicados surgem simultaneamente no Facebook, onde os seguidores ultrapassam os 11 mil. 

O tempo áureo dos blogues de opinião já passou. Começou aí por 2002/3, teve o seu pico uma década depois, estando hoje em declínio evidente. O que hoje "está a dar" são os blogues de produtos, de divulgação comercial. Muitos e excelentes blogues de opinião desapareceram ou deixaram de ser alimentados, a sua utilização como plataforma para algumas agendas deixou de se fazer ou mudou-se para o Twitter. Parte da "geração dos blogues" mais políticos, mais à direita do que à esquerda, tem hoje espaços nos media ou alcandorou-se a estatutos institucionais. 

Por mim, quero deixar expresso que estou muito grato a quem tem a paciência e faz o favor de me ler.

50 anos


"Eu tinha 20 anos e não deixarei ninguém dizer que essa era a melhor idade da vida". A citação de Paul Nizan, retirada do "Aden Arabia", é vulgar, mas é pena não ser completada pelo que vem a seguir: "Tudo ameaça de ruina um jovem: o amor, as ideias, a perda da sua família, a entrada no grupo das pessoas crescidas. É duro aprender o seu lugar no mundo."

Não sei se eram exatamente esses os sentimentos que me atravessavam nesse mês de outubro de 1967, quando me preparava para completar essa idade mítica. Conhecendo-me, não creio.

Lembro-me muito bem de ter recebido, verifico agora que com essa idade, a notícia da morte de Che Guevara, faz hoje precisamente meio século. Recordo a imagem do seu corpo indecentemente exposto na Bolívia, como relíquia de vitória da ditadura militar sobre a guerrilha.

Guevara estava já na fase em que os "dois, três, muitos Vietnam" andavam muito longe de hipóteses de concretização. Antes, andara próximo da guerrilha independentista angolana, no "ano em que estivemos em parte nenhuma", como ele classificaria esse tempo no Congo. Cuba e a sua revolução, essas estavam já muito longe.

Tal como Fidel, Guevara nunca fez parte da minha mitologia de esquerdista. Talvez porque a revolução cubana teve lugar antes da minha idade adulta, o seu socialismo "latino" disse-me sempre muito pouco. Mas Guevara, caramba!, era "do meu lado". Por isso, li o seu diário (edição espanhola, comprada à sucapa na Tanco, em Orense), e também o que Régis Debray escreveu sobre ele, apreciei sempre a sua bela foto feita por Alberto Korda e tenho ainda por casa esta antologia dos "Cadernos" da "Dom Quixote", que a polícia logo recolheu pelas livrarias.

Ernesto "Che" Guevara morreu há 50 anos. Tinha 40 anos, o dobro da minha idade de então. Não seria "a melhor idade da vida", mas era uma bela idade para apreciar as revoluções e acreditar que elas ainda eram possíveis. É que, mesmo não o sendo, as revoluções fazem para sempre parte do património dos que nelas acreditaram. E os bons sonhos não têm preço!


terça-feira, outubro 10, 2017

A nova colina de Santana

Santana Lopes é, sem o menor favor, uma das figuras mais interessantes da política portuguesa, nas últimas décadas. (Digo isto com o óbvio "disclaimer" de quem nunca teve com ele a menor afinidade, antes pelo contrário). Acho mesmo estranho que, até agora, nunca ninguém tenha feito uma sua biografia, num tempo em que isso está na moda. A menos que os potenciais biógrafos tivessem a consciência de que "you haven't seen it all". Se assim foi, tinham razão.

A postura de Santana no seio do "PPD/PSD" (como ele gosta de chamar ao seu partido) é a de alguém que quis sempre afirmar-se como uma espécie de herdeiro teórico de Francisco Sá Carneiro, de quem foi adjunto, embora nunca tivesse ficado muito claro o que é que isso significava em concreto, no terreno ideológico. Tribuno emérito em congressos, foi quase sempre uma "esperança" com escassa concretização prática nos voos mais altos. Várias vezes, porque o seu tempo não era o adequado, ficou na soleira do êxito.

Cavaco Silva, que não gosta dele (recordemos o mortal artigo no "Expresso" sobre a "má moeda"), nunca o chamou para ministro, tendo-o apenas escolhido como secretário de Estado, diz-se que na lógica que Lyndon Johnson aplicou um dia a John Edgar Hoover : "better to have him inside the tent pissing out than outside the tent pissing in". Durou pouco no cargo.

Uma certa imagem de "homme à femmes" colou-se-lhe à pele por muito tempo - o que sempre tive por uma das suas facetas mais simpáticas e urbanas - e tal não contribuiu para reforçar a sua imagem no plano de Estado. Pelo meio, teve sucesso como autarca, embora essas posições surgissem sempre, aos olhos de quem estava atento, como meros degraus de um percurso de uma (legítima) maior ambição política.

Com a saída de Durão Barroso para a Comissão Europeia, Santana Lopes viria a ser um inesperado primeiro-ministro, cooptado da vice-presidência do partido, sem passar pelo teste das urnas. Desde a caótica tomada de posse - discurso e trocas de governantes, à última hora - até ao momento em que, meses depois, Jorge Sampaio o despediu, sem glória, o seu governo foi feito de uma sucessão de episódios, que o país crismou para sempre como "as trapalhadas". Santana Lopes sentiu-se sempre injustiçado pelo gesto do antigo presidente, que já o tinha nomeado "à contrecoeur" e que deve ter sentido um imenso alívio ao ter tido pretextos para dele se ver livre, como decorre das suas memórias. Quer Santana Lopes aceite isso ou não, o país nunca estranhou o gesto de Sampaio.

Passos Coelho, no fim da era Sócrates, deu à escolha a Santana Lopes uma embaixada ou a provedoria da Misericórdia. Em boa hora aceitou esta última, onde consta que estava a ter um papel positivo, aí se rodeando de muitos dos seus tradicionais "compagnons de route". Entretanto, uma vez mais como comentador na imprensa e na televisão (onde já havia discutido desde futebol a política, neste caso num dueto com Sócrates), foi criando um estilo "statesmanlike", projetando um ar mais maduro e ponderado, a que associa uma simpatia natural, que muitos acham cativante. Ia-se-lhe lendo, contudo, nas palavras e nos silêncios, que a ambição política o não tinha abandonado. Não encontrou espaço para concorrer à presidência da República e terá mantido apenas a ficção de poder ser candidato a Lisboa nas últimas autárquicas. As oportunidades iam-se assim fechando (restava-lhe, talvez, tentar Belém depois de Marcelo, mas já nas calendas).

Agora, subitamente, Santana descobriu uma oportunidade para regressar à política ativa, à liderança do partido. É um "remake", é certo, mas é uma tentativa de relegitimação, para alguém que a necessitava. É mais uma "colina" no seu percurso de altos-e-baixos. É um ato, simultaneamente, de coragem (atento o previsível ciclo favorável de Costa, a perda da influência e do "dourar de imagem" que a Misericórdia lhe proporcionavam, bem como a imprevisibilidade do resultado do confronto com Rui Rio), de ambição (conseguindo, "in extremis", evitar o salto geracional que Montenegro ou Rangel significariam) e de resposta positiva a apelos de um certo PSD que é totalmente incompatível com Rui Rio. 

Santana converte-se, assim, na principal "novidade", nos meses que se seguem. E não deixa de ser muito interessante que um partido que parecia a caminho de uma salto etário (Passos Coelho fizera já parte desse caminho) se reencontre com a necessidade de optar entre duas figuras vindas de um tempo anterior. 

Quem conhece os cantos à casa social-democrata antecipa uma luta muito dura (e "muito feia", segundo alguns). Para quem está de fora, tudo indica que vão ser tempos de observação bem interessantes.

segunda-feira, outubro 09, 2017

Catalunha


A discutir a questão catalã com Jaime Nogueira Pinto, com moderação de Pedro Pinto, na TVI 24. 

Pode ver aqui

A morte e a pena


Alguém comentava por aqui, há dias, que só elogiamos os mortos. Na data de hoje, apetece-me elogiar Robert Badinter, que olha o mundo e a França do alto dos seus 91 anos.

Poucas semanas depois de ter assumido funções como embaixador em Paris, fui apresentado a Robert Badinter. Disse-lhe então do prazer que tinha em conhecê-lo pessoalmente, pelo profundo respeito que a sua figura de retidão ética me inspirava, desde há muito. E, devo confessar, não há muitas pessoas a quem eu me sentisse tentado a dizer o mesmo.

Robert Badinter foi, durante quatro anos, ministro da Justiça de François Mitterrand. Foi então o proponente da medida legislativa que, em outubro de 1981 - faz, no dia de hoje, precisamente 36 anos - apresentou a lei que iria proibir a pena de morte em França.

Tenho bem na memória a campanha de vilificação de que à época foi alvo, com acusações miseráveis, que o qualificaram como "o advogado dos assassinos".

Num tempo em que, um pouco por todo o lado, a política imediatista tende a esconder os princípios por detrás do populismo, vale a pena relembrar que Badinter soube conduzir a França para a linha da frente da defesa das liberdades - abolição dos tribunais militares, supressão do delito da homosexualidade, sujeição ao Tribunal europeu dos direitos do Homem, etc.

No seu livro de memórias, sugestivamente intitulado "Les épines et les roses", Badinter não deixa de notar que a democracia está longe de ser a reprodução mecanicista do sentimento popular: quase 2/3 dos franceses eram favoráveis à manutenção da pena de morte, no momento em que ela foi abolida.

Liderar, politicamente, é também ter a coragem de tomar medidas impopulares, quando se entende que o bem público e os avanços civilizacionais as justificam.

A França tem homens como Badinter. É com pena que se constata que, em Portugal, o país que, no século XIX, foi saudado por Vitor Hugo pelo seu pioneirismo na abolição daquela sinistra pena, ainda emergem espécimens públicos, vergonhosamente protegidos, a preconizar a retoma daquela infâmia.

Banha-da-cobra


Já aqui falei disto há meses, mas leio que anda por aí uma campanha para tentar pôr cobro à publicidade enganosa sobre produtos de saúde. Não posso estar mais de acordo! O que se lê, ouve e vê neste domínio, às vezes com a ajuda de profissionais do ramo - quase sempre de bata branca e óculos, para dar uma "de doutor" - é um imenso escândalo. Sempre me surpreendeu que as autoridades não interviessem neste assunto, de modo firme e eficaz. Trata-se da proteção do consumidor, muitas vezes do doente-consumidor, fragilizado pela sua situação pessoal e investindo na esperança. Há programas de rádio e televisão, dedicados às pessoas idosas, em que surgem anunciados produtos que parece fazerem bem a tudo... É a verdadeira banha-da-cobra! Acabar com esta sitiação é um imperativo!

domingo, outubro 08, 2017

Rogério Martins (1928-2017)

A internet separa dois tempos do mundo. Nenhuma fotografia de Rogério Martins, antigo governante dos tempos de Marcelo Caetano, surge quando "googlamos" o seu nome, o que hoje fiz, ao saber da sua morte. E, no entanto, a sua importância, para a sociedade portuguesa, foi indiscutível e marcante. 

Rogério Martins, que era engenheiro de formação, fez parte de um grupo de jovens com que o marcelismo procurou "abanar" algum marasmo em que os últimos anos da gestão de Salazar, até 1968, tinha deixado cair a administração central na área económica.

Recordo-me muito bem do impacto que teve o seu discurso, em 1970, no Colóquio de Política Industrial, na antiga FIL. Era uma linguagem nova, algo ousada, que muitos consideravam herdeira da de Ferreira Dias, que anos antes pensara a nossa indústria de forma arejada e inédita. 

Com o 25 de abril, para minha surpresa, Rogério Martins não surgiu no conjunto de nomes dessa geração política que, com naturalidade, a democracia cooptou para a nova fase da vida do país, como João Salgueiro, Xavier Pintado, Alexandre Vaz Pinto ou Nogueira de Brito, entre alguns outros. Passou a dedicar-se à atividade privada, de onde fora originário.

Rogério Martins era um europeísta, fora-o mesmo "avant la lettre". Nos anos 90, começou a escrever uma coluna em "O Independente". Dedicou-me um desses textos, a propósito de uma qualquer negociação que, ao tempo, eu conduzia em nome do país. Fê-lo com uma simpatia que me levou a escrever-lhe, tendo dele uma resposta que guardo algures. Depois, sempre sem nunca o ter visto, perdi-o de vista - passe o oxímoro.

Há meses, perguntei por ele a João Salgueiro. As notícias eram escassas, mas sabia-se estar ainda vivo. Até agora.

Serviço público

Há dias, estive envolvido num debate sobre o conceito de serviço público. Há horas, numa conversa à hora de jantar, alguém me falou de Carla Grijó, uma diplomata que trabalhou comigo em Brasília e que está agora na nossa embaixada em Rabat, em Marrocos. E, de repente, liguei as coisas.

Foi há pouco mais de 10 anos. A Carla tinha a seu cargo a secção consular da Embaixada em Brasília. Durante a tarde, veio ao meu gabinete despedir-se. Partia no dia seguinte de férias. O ano tinha sido muito intenso e bem as merecia.

No final dessa tarde de 17 de julho de 2007, passei pela embaixada de Espanha, para uma receção oferecida em honra do príncipe Filipe (hoje Filipe VI), que tinha vindo a Brasília inaugurar uma delegação do Instituto Cervantes. O assessor diplomático do futuro rei era um velho amigo e, num determinado momento, quis-me apresentar ao jovem príncipe. Nesse preciso instante, o meu telemóvel tocou. Era um amigo de S. Paulo a informar-me de que estava no aeroporto de Congonhas e que um avião de carreira tinha acabado de despenhar-se no fim da pista, com escassas hipóteses de haver sobreviventes (não haveria: morreram 199 pessoas). Quando cheguei junto do príncipe, ia já fortemente chocado com a notícia. Ele falava nesse momento com o chefe de gabinete de Lula da Silva, Gilberto Carvalho. Cumprimentei o príncipe, relatei o que acabara de ouvir e disse para o colaborador de Lula: "Gilberto, acho que é melhor você ir ver já o assunto". Gilberto Carvalho pressentiu o impacto da tragédia, saiu disparado e eu fiquei a falar com o príncipe, que também ficou consternado com a notícia.

A probabilidade de haver portugueses no avião despenhado atravessou-me logo o espírito. Sempre que um acidente de alguma dimensão ocorria no Brasil, o problema colocava-se-me. E era sempre muito difícil deslindar o assunto em prazo curto: as listas dos acidentes incluíam sempre nomes que tanto podiam ser portugueses como brasileiros. Esclarecer as coisas demorava sempre bastante mais tempo do que aquele que a pressão dos familiares das potenciais vítimas, em Portugal, aceitava como natural, no seu contacto com o setor das Comunidades Portuguesas nas Necessidades.

Logo que pude, fui para a nossa residência e liguei para um amigo brasileiro altamente colocado no Ministério da Defesa. (O setor militar, no Brasil, é responsável pela aeronáutica civil). Pedi-lhe um contacto com alguém que me pudesse dar, logo que possível, acesso à lista de passageiros. Depois, pedi ao nosso Cônsul-Geral em S. Paulo que se pusesse simultaneamente em campo (já tinha entretanto iniciado diligências). Mal desliguei destes contactos, comecei a receber chamadas de Lisboa, do MNE a pessoas que tinham obtido o meu número e que, desesperadamente, tentavam saber se familares ou amigos que estavam incontactáveis por acaso não estariam no avião acidentado. E, claro, da imprensa choviam também chamadas. A todos fui respondendo.

Num certo momento, chegou-me um telefonema da nossa embaixada, cujos serviços tinham encerrado há várias horas. Era a Carla Grijó. Estava a trabalhar na chancelaria. Disse-me ter já contactado a companhia aérea, as empresa da aeronáutica civil e a que gere os aeroportos, bem como a "permanência" do ministério brasileiro das Relações Exteriores. Durante as horas seguintes, provavelmente durante a madrugada, esperava ir tendo notícias e, quando houvesse certezas sobre a existência de portugueses a bordo, transmitir-mas-ia. Perguntei à Carla: "mas você não partia de férias amanhã de manhã?". Tenho presente a resposta que recebi. "Esqueça isso, embaixador, já adiei as férias. Temos de resolver isto primeiro".

A noite ia ser longa. Havia um português entre as vítimas. E iria ter uma conversa, que guardo para sempre, com a mãe dessa pessoa. 

Às vezes, quando ouço críticas à disponibilidade dos diplomatas em situações de crise, lembro-me deste episódio. Em particular do profissionalismo da Carla Grijó.

sábado, outubro 07, 2017

A Catalunha entre nós

Há meia dúzia de meses, entre nós, a questão catalã não era conversa fora dos círculos especializados. Mobilizar a abertura para o tema, junto do público ou mesmo da academia, era uma tarefa complexa, a que pacientemente se ia dedicando, num esforço de notável empenhamento, esse grande "embaixador" informal da Catalunha em Portugal que dá pelo nome de Ramon Font.

Não posso precisar a data, mas foi algures em 2015 que recebi uma chamada telefónica de um amigo inglês. Tinha acabado de chegar a Lisboa e queria almoçar comigo. Durante o repasto, explicou-me que fazia parte de uma empresa de lóbi, paga por entidades catalãs, que preparava a independência da região. Ironizei, perguntando por que não tinham sido contratados pelos escoceses. Imagino que tenha desviado a conversa. Esse amigo voltaria a Lisboa, meses mais tarde. O seu trabalho continuava: medir o "sentimento" internacional sobre o processo pró-independentista catalão era o seu caderno de encargos. 

Recordo-me muito bem do que lhe disse. Por um lado, que não esperasse - nunca! - uma postura de qualquer governo português favorável ao secessionismo catalão. Lisboa, dependendo do "mood" que conjunturalmente prevalecesse na chefia da sua diplomacia, oscilaria entre uma postura favorável ao unionismo madrileno e uma espécie de "neutralidade colaborante" com o governo espanhol. Nada mais. 

Coisa diferente, porém, seria o sentimento da opinião pública. A meu ver, se e quando a questão acaso viesse a agudizar-se, estava seguro de que iria emergir em Portugal um sentimento popular de simpatia pela causa catalã: por uma atitude sincera face a uma vontade de auto-determinação, somada a um endémico anti-espanholismo (melhor, uma tradicional síndrome anti-Castela). 

Não me enganei. Emocionalmente, a causa catalã ganhou muitos adeptos entre nós, nas últimas semanas. E, nos dias de hoje, criou-se na opinião pública portuguesa, mesmo em parte da que não despreza a legitimidade de uma Espanha democraticamente unida, uma avaliação negativa do modo como se processou a tentativa de boicote físico do processo referendário e, igualmente, do tempo e do modo da posterior reação de Filipe VI. 

Dependendo embora da evolução do processo no terreno, e não contando com efeitos de eventuais futuros erros independentistas, fica a sensação de que a posição oficial espanhola tem mais condições de poder vir a degradar-se no juízo popular português do que a causa independentista. Contudo, isso não não deve afetar a preservação da postura do executivo de Lisboa, pelo que não é de excluir que esta se possa vir a tornar crescentemente impopular no país. Mas, repito, antevejo que a atitude oficial de Lisboa continue a ser sempre a mesma, até ao fim, qualquer que venha a ser esse fim.

(Artigo no “Público” hoje)

sexta-feira, outubro 06, 2017

O sol

Chamada telefónica de S. Bento: “O senhor primeiro-ministro pede para passar por cá, ainda hoje, com urgência, por favor”. Saiu à pressa do Ministério. No carro, calou logo o início da conversa do motorista sobre o trânsito (agora que o Medina foi eleito, o homem já se permitia dizer mal) e pôs-se a imaginar o que lhe ia ser dito: a compreensão para a necessidade de um “refrescamento” no ministério, o início de um “novo ciclo”, depois das autárquicas, a caminho das legislativas, a lembrança das “condições particularmente difíceis” em que o “excelente trabalho” foi executado, o “profundo agradecimento” que lhe era devido mas, também, o “inevitável desgaste”, a imprensa, os lóbis. Telefonou ao cônjuge: “Olha! seja o que deus quiser!”. É isso, afinal as coisas não são para sempre, a experiência até fora interessante, mas talvez fosse mesmo a hora de regressar à base de onde partira. Era preciso serenidade, não mostrar agaste, muito menos desilusão. Era preciso, afinal, saber “sair bem”. No fundo, caramba!, quantas vezes já pensara que isto iria, mais dia menos dias, acontecer. Talvez fosse mesmo melhor assim, partir num momento “alto” do governo”, bem preferível a um tempo de crise, marcado pelo acossamento mediático. Pensando bem, o cansaço já se acumulava, desde há tempos. De certo modo, ia ser uma “libertação”. Lembrou a metáfora do “pássaro a sair da gaiola”, de Soares, quando foi “despedido” por Eanes. A ideia, por um segundo, trouxe-lhe um “blue”: feitas as contas, o que lhe ia acontecer era uma espécie de “despedimento”! No cimo da escadaria, em cujas paredes ainda andavam a colocar os últimos quadros que os tipos da Cultura trouxeram de Serralves, procurou, num segundo, interpretar o leve sorriso da Sãozinha, mas ela, esfíngica, apenas lhe abriu a porta da salinha, com um “olá, como vai?”. Da Rita, barómetro seguro do sentido das coisas da casa, nem rasto. Já o David, que cruzara no páteo, lhe parecera algo estranho, quase translúcido. “Vamo-nos sentar”, disse o primeiro-ministro. “Achei que era bom falarmos pessoalmente sobre a viagem da semana que vem. Vão ser muitos quilómetros em dois dias. Afinal, que encontros é que vamos ter? Temos de os preparar muito bem”. Entendia, finalmente e com alívio, a razão da convocatória. E, a partir daí, a voz do chefe do governo pareceu-lhe como que a esvair-se pela sala, orquestrada com uma melopeia de fundo, num harmonia de violinos. Do sofá azul, já num recosto quase lânguido, espraiou o olhar para fora, pela janela, em direção à calçada. O sol brilhava. Caramba, como a vida é bela!

O Porto e o poder



Salazar não gostava do Porto. Nos lugares cimeiros da governação da ditadura, durante várias décadas, os portuenses não chegam aos dedos de uma mão. Seria o republicanismo remanescente do 31 de janeiro que o irritava? Ou o fechamento quase maçónico das famílias, a impenetrável discrição dos clãs do "Portuense", o jeito reivindicativo do empresariado que o encanitava?

Sá Carneiro conseguiu trazer o Porto para a ribalta da democracia. Com ele, a cidade voltou a ter um "share" de poder em Lisboa, o qual, no entanto, se foi esvaindo ao longo do cavaquismo, que progressivamente se confinou a algum tecnocratismo lisboeta, às vezes universitário, outras com um toque de “social” Lapa-Linha, complementado pelos fiéis de aparelho, muitos de extração provinciana. Antes, o soarismo só havia feito “os mínimos" na promoção do Porto. Depois, PS (Guterres e Sócrates) e PSD (Barroso e Passos) também não foram muito mais longe. Fica mesmo a ideia de que, quando se forma um governo, à esquerda ou à direita, chega um momento em que alguém faz pergunta: "e do Porto, quem é que se põe?". Parece não haver consciência de se estar perante um fator de deslegitimação: a importância relativa do Porto, em termos económicos, culturais ou societais justificaria uma muito maior presença de figuras da cidade nos lugares de topo do poder nacional. O fenómeno Rui Moreira, a meu ver, é uma direta consequência desse sentimento de injustiça.

A tese é discutível, e é só minha: na política portuguesa, em regra, só têm sucesso pleno as figuras do Porto que, de tanto andarem por Lisboa, já são vistas como "quase lisboetas". Alguém que traga o "letreiro"'do Porto colado à imagem, por muito competente que possa ser, sofre, não raramente, de uma rejeição, expressa ou subliminar, nos corredores lisboetas, agravada pela falta de um "networking" capaz na capital (e, às vezes, também, por erros próprios, claro). Querem exemplos flagrantes? À esquerda, Fernando Gomes, à direita, Miguel Cadilhe. E alguém duvida que figuras com a dimensão e a competência de Valente de Oliveira ou Silva Peneda, de um lado, ou de Elisa Ferreira ou Teixeira dos Santos, do outro, não teriam tido já outro percurso, à escala nacional, se não trouxessem consigo o rótulo portuense?

Tudo o que escrevi teve como objetivo olhar, prospetivamente, para a sorte que pode vir a ter uma liderança do PSD titulada por Rui Rio ou Paulo Rangel. Sem querer parecer Cassandra, sou de opinião de que a imagem do Porto que está gravada no perfil dessas figuras pode vir a limitar o seu êxito nas ambições nacionais que visivelmente alimentam. Cá estaremos para ver.

quinta-feira, outubro 05, 2017

Coincidências

Há pouco, coloquei por aqui a imagem do menu de um frustrado jantar que o rei dom Manuel ("segundo e último", como diz um amigo jacobino) deveria ter tido no dia 5 de outubro de 1910, na Quinta da Raposeira, em Vila Real. Herdei do meu pai esse precioso documento, que lhe foi oferecido por alguém. 

A Revolução Republicana havia nascido na véspera, em Lisboa, embora, aqui por Vila Real, os conjurados se tivessem já reunido no dia 3 de outubro de 1910, no n° 44 da rua Avelino Patena. 

Por ocasião dos 100 anos da República, foi aí colocada uma placa comemorativa e foi-me pedido, pelo município, que evocasse, numa sessão no meio da rua, a herança republicana. Assim fiz, aproveitando para notar algo que ninguém sabia (nem tinha de saber): é que seria nessa mesma casa que eu iria nascer, algumas décadas depois...

Mas há mais um coincidência. Fui hoje almoçar a um novo restaurante, na rua Teixeira de Sousa, em Vila Real. Isso fez-me lembrar a razão pela qual o rei dom Manuel tinha decidido vir a Trás-os-Montes, antes da República lhe ter estragado os planos e enviado, via Ericeira, para a Inglaterra, onde morreria 25 anos depois.

O rei veio ao Norte para inaugurar o Hotel Palace, no Vidago. Quem era o proprietário do novo hotel? O primeiro-ministro de então, Teixeira de Sousa! 

Podemos imaginar o escândalo que seria, nos dias de hoje, um chefe de Estado ir inaugurar um hotel propriedade de um primeiro-ministro em exercício! Seria mesmo caso para uma revolução ou, num registo menor, para um post indignado de algum auto-proclamado justiceiro.

Viva a nossa República!

O povo saiu à rua, o rei não jantou e a República ficou para sempre.



Palestina

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