Estou a escrever um prefácio para um livro sobre a guerra nos Balcãs e, num instante, veio-me à memória um episódio passado em Londres, em 16 de janeiro de 1992.
Creio que foi na Walton Street, não muito longe do Harrods. Era uma bela moradia privada, pertencente a um cavalheiro britânico, de ascendência croata, que a disponibilizara para uma receção comemorativa e que nos recebia à porta. Tratava-se da celebração do reconhecimento pelas Comunidades Europeias (na altura, a União Europeia ainda não existia) da independência da Croácia, que entrara em vigor na véspera.
A Jugoslávia estava então em pleno curso de implosão. No seio das Comunidades Europeias, e sob forte pressão política alemã, a independência unilateral da Croácia (e da Eslovénia) acabara por ser reconhecida. O caso da Eslovénia provocara menos ondas, pelo facto da sua homogeneidade étnica não estar marcada pela existência de minorias sérvias.
No caso croata, a mobilização alemã junto dos seus parceiros, titulada pelo MNE Hans-Dietrich Genscher, fazia regressar (creio que um pouco injustamente) o peso de memória da História: o colaboracionismo dos ustashis croatas com Hitler era um ferrete difícil de apagar, em especial tendo Zagreb um presidente com o perfil de Tudjman. (Um dia, José Cutileiro, enviado especial europeu para a região, referiria à sua frente que o que os croatas haviam feito à minoria sérvia na Krajina podia ser qualificada de "limpeza étnica". Tudjman ter-lhe-á retorquido: "Sempre é melhor do que genocídio, não acha?")
Eu era Encarregado de Negócios de Portugal em Londres, na ausência do embaixador. Drago Stambuk convidou-me a estar presente naquela celebração. Portugal tinha acordado no reconhecimento da Croácia mas, porque o assunto estava longe de ser totalmente pacífico na imprensa e em alguns meios políticos, contactei telefonicamente Lisboa para pedir orientação. Recordo ter recebido a instrução de Pilatos: "Veja como reagem os outros Estados membros e depois faça como entender melhor". Ao longo da minha carreira, assisti muitas vezes a gestos similares que, como se imaginará, eram uma grande "ajuda".
Mas quem era Drago Stambuk? Era um médico croata, com nacionalidade britânica, que ao longo dos anos anteriores fora uma espécie de "embaixador" informal da Croácia. Conheceramo-nos numa visita dele à nossa embaixada e tínhamos mantido a partir de então uma simpática relação pessoal. Drago procurava promover os interesses do seu país de origem e imagino que aquele dia, para ele, fosse a consagração de um sonho: a Croácia era, finalmente, um Estado com independência reconhecida por um conjunto significativo de países europeus. Drago Stambuk, que é um dos grandes poetas do seu país, é hoje embaixador da Croácia e por pouco que nos não cruzámos em posto em Brasília.
Na alegria que lhe estava subjacente, a receção em Walton Street foi bastante deprimente. À parte meia dúzia de pessoas da comunidade croata em Londres, os diplomatas estrangeiros contavam-se pelos dedos de uma só mão e o "Foreign Office" primou pela ausência, não obstante Londres se ter juntado ao consenso comunitário (diz-se que graças à promessa de Genscher a Douglas Hurd de que Bona não se oporia aos "opt out" britânicos na negociação de Maastricht). Não fomos mais de uma quinzena de pessoas naquela sala da bela residência de Walton Street. Já estive em muitas receções "falhadas", mas aquela bateu-as a todas.
Depois, foi o que se sabe: a guerra continuou. Em agosto desse mesmo ano, teria lugar, também em Londres, uma conferência internacional para tentar a paz para a ex-Jugoslávia, a que estive presente, integrado na delegação portuguesa. Tive então o ensejo de olhar, cara a cara, para a quase totalidade dos presidentes-atores daquela tragédia em curso: o sérvio Milosevic, o croata Tudjman, o muçulmano bósnio Itzetbegovic, etc, com os vários "artistas" secundários pelos corredores, entre os quais recordo bem o branco cabelo desalinhado do sérvio bósnio Karadzic. Posso ser sincero? Era tudo um grupo de "lindos meninos do coro", cada um melhor do que o outro, no conjunto responsáveis, cada um a seu modo e no seu grau, por um dos mais sangrentos períodos da história balcânica.
Ontem, num jantar em Lisboa, fiquei ao lado de uma senhora croata. Falámos um pouco de tudo isto, tanto mais que ela esteve politicamente envolvida numa certa fase do processo político do seu país. Confirmei, na conversa, algo que fui aprendendo na vida internacional: por muito que nos esforcemos, nunca conseguimos entender por completo a profundidade do sentimento nacional de um estrangeiro. Ele é produto de uma decantação da sua história, da complexidade única das relações com vizinhos ou outros, do que ficou das lições do passado, tudo isto envolvido numa pulsão emocional onde só muito remotamente espreita a racionalidade.
E agora, se me permitem, regresso ao prefácio que estou a escrever.
(A imagem mostra a belíssima ponte de Mostar, destruída durante a guerra na Bósnia, depois reconstruída)
Creio que foi na Walton Street, não muito longe do Harrods. Era uma bela moradia privada, pertencente a um cavalheiro britânico, de ascendência croata, que a disponibilizara para uma receção comemorativa e que nos recebia à porta. Tratava-se da celebração do reconhecimento pelas Comunidades Europeias (na altura, a União Europeia ainda não existia) da independência da Croácia, que entrara em vigor na véspera.
A Jugoslávia estava então em pleno curso de implosão. No seio das Comunidades Europeias, e sob forte pressão política alemã, a independência unilateral da Croácia (e da Eslovénia) acabara por ser reconhecida. O caso da Eslovénia provocara menos ondas, pelo facto da sua homogeneidade étnica não estar marcada pela existência de minorias sérvias.
No caso croata, a mobilização alemã junto dos seus parceiros, titulada pelo MNE Hans-Dietrich Genscher, fazia regressar (creio que um pouco injustamente) o peso de memória da História: o colaboracionismo dos ustashis croatas com Hitler era um ferrete difícil de apagar, em especial tendo Zagreb um presidente com o perfil de Tudjman. (Um dia, José Cutileiro, enviado especial europeu para a região, referiria à sua frente que o que os croatas haviam feito à minoria sérvia na Krajina podia ser qualificada de "limpeza étnica". Tudjman ter-lhe-á retorquido: "Sempre é melhor do que genocídio, não acha?")
Eu era Encarregado de Negócios de Portugal em Londres, na ausência do embaixador. Drago Stambuk convidou-me a estar presente naquela celebração. Portugal tinha acordado no reconhecimento da Croácia mas, porque o assunto estava longe de ser totalmente pacífico na imprensa e em alguns meios políticos, contactei telefonicamente Lisboa para pedir orientação. Recordo ter recebido a instrução de Pilatos: "Veja como reagem os outros Estados membros e depois faça como entender melhor". Ao longo da minha carreira, assisti muitas vezes a gestos similares que, como se imaginará, eram uma grande "ajuda".
Mas quem era Drago Stambuk? Era um médico croata, com nacionalidade britânica, que ao longo dos anos anteriores fora uma espécie de "embaixador" informal da Croácia. Conheceramo-nos numa visita dele à nossa embaixada e tínhamos mantido a partir de então uma simpática relação pessoal. Drago procurava promover os interesses do seu país de origem e imagino que aquele dia, para ele, fosse a consagração de um sonho: a Croácia era, finalmente, um Estado com independência reconhecida por um conjunto significativo de países europeus. Drago Stambuk, que é um dos grandes poetas do seu país, é hoje embaixador da Croácia e por pouco que nos não cruzámos em posto em Brasília.
Na alegria que lhe estava subjacente, a receção em Walton Street foi bastante deprimente. À parte meia dúzia de pessoas da comunidade croata em Londres, os diplomatas estrangeiros contavam-se pelos dedos de uma só mão e o "Foreign Office" primou pela ausência, não obstante Londres se ter juntado ao consenso comunitário (diz-se que graças à promessa de Genscher a Douglas Hurd de que Bona não se oporia aos "opt out" britânicos na negociação de Maastricht). Não fomos mais de uma quinzena de pessoas naquela sala da bela residência de Walton Street. Já estive em muitas receções "falhadas", mas aquela bateu-as a todas.
Depois, foi o que se sabe: a guerra continuou. Em agosto desse mesmo ano, teria lugar, também em Londres, uma conferência internacional para tentar a paz para a ex-Jugoslávia, a que estive presente, integrado na delegação portuguesa. Tive então o ensejo de olhar, cara a cara, para a quase totalidade dos presidentes-atores daquela tragédia em curso: o sérvio Milosevic, o croata Tudjman, o muçulmano bósnio Itzetbegovic, etc, com os vários "artistas" secundários pelos corredores, entre os quais recordo bem o branco cabelo desalinhado do sérvio bósnio Karadzic. Posso ser sincero? Era tudo um grupo de "lindos meninos do coro", cada um melhor do que o outro, no conjunto responsáveis, cada um a seu modo e no seu grau, por um dos mais sangrentos períodos da história balcânica.
Ontem, num jantar em Lisboa, fiquei ao lado de uma senhora croata. Falámos um pouco de tudo isto, tanto mais que ela esteve politicamente envolvida numa certa fase do processo político do seu país. Confirmei, na conversa, algo que fui aprendendo na vida internacional: por muito que nos esforcemos, nunca conseguimos entender por completo a profundidade do sentimento nacional de um estrangeiro. Ele é produto de uma decantação da sua história, da complexidade única das relações com vizinhos ou outros, do que ficou das lições do passado, tudo isto envolvido numa pulsão emocional onde só muito remotamente espreita a racionalidade.
E agora, se me permitem, regresso ao prefácio que estou a escrever.
(A imagem mostra a belíssima ponte de Mostar, destruída durante a guerra na Bósnia, depois reconstruída)