sexta-feira, setembro 16, 2016

De Kiev


Vim à Ucrânia, pela primeira vez, há muitos anos, ao tempo em que era parte da União Soviética. Viajando numa baratucha excursão norueguesa, passei uma semana na Crimeia, nas praias do mar Negro, com a curiosidade acrescida de poder sentir, com os meus próprios olhos, o ambiente do palácio de Livadia, onde, em 1945, muito do destino que o mundo de hoje ainda anda a viver foi desenhado pelas conversas entre Stalin, Churchill e Roosevelt. Sem autorização para sair da cidade mais do que alguns poucos quilómetros, quase sem ter acesso a lojas e com escassos pontos turísticos acessíveis, pouco havia para fazer nessa estranha vilegiatura, numa cidade que já fora deslumbrante e que então sofria de uma decadência sem graça.

Uma tarde, passeando em Ialta, à beira-mar, com ar de uma oriental Riviera datada, demo-nos conta, de repente, de que imensas mulheres que connosco se cruzavam usavam sapatos vermelhos, todos do mesmo tipo. Eram dezenas, sem exagero, umas a seguir às outras. Quase por acaso, fomos dar a um grande armazém, o qual, como era de regra na URSS, muito pouco tinha à venda (ainda me arrisco a ser contraditado neste blogue por algum nostágico, que por lá tenha andado de férias pagas pelo "Komsomol"). Entrámos, escapando a uma fila de mulheres que, de forma paciente, se formava escada acima, não se percebia muito bem para quê. O mistério desfez-se, minutos depois: eram os sapatos vermelhos que "estavam a sair", expressão que, poucos anos mais tarde, muito ouviria em Luanda, nos momentos mais folgados do "socialismo esquemático" (expressão local que significava um tipo de socialismo cujo quotidiano só se podia suportar graças a "esquemas"). Nesse dia, em Ialta, como novidade, só havia à venda esses sapatos vermelhos... As belas ucranianas de hoje já não usam sapatos desses, quanto mais não seja porque muitas foram aculturadas a detestar o vermelho.

A Crimeia, e com ela Ialta, está hoje separada da Ucrânia e, "de facto", integrada na Rússia, sob protesto da comunidade internacional. A Ucrânia continua, como sempre esteve, numa trágica glória histórica, no centro das imensas e complexas regiões que são, um pouco quase por todo o lado, as fronteiras da Rússia.

15 comentários:

Isabel Seixas disse...

A Crimeia faz-me sempre lembrar Florence Nightingale, foi na assistência aos soldados nessa guerra da crimeia "1850"que Florence sistematizou o modelo da prática de enfermagem centrado no conhecimento de interajuda , reduzindo a taxa de mortalidade abruptamente através dos pressupostos da prevenção da infeção nosocomial entre outros conhecimentos cientificos que Ela implementou.

Luís Lavoura disse...

sob protesto da comunidade internacional

Designa-se nesta frase por "comunidade internacional" os EUA e os países sob a sua batuta. Os países que não estão sob a batuta dos EUA não existem, para efeitos da "comunidade internacional".

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Luis Lavoura. Diga-me a lista dos países que apoiaram a integração da Crimeia na Rússia, por favor.

Anónimo disse...

Em compensação pode dizer a lista dos que apoiaram o golpe na Ucrânia?

Aldema disse...

Obrigada pelo texto. A imagem dos sapatos vermelhos é fantástica. Tenha um belo fim de semana!

Aldema ( www.correndomundo.blogspot.com )

Luís Lavoura disse...

Francisco,
nenhum país apoiou a integração da Crimeia na Rússia, mas houve muitos países que não protestaram contra ela. Você no seu post fala de protestos contra a integração da Crimeia na Rússia, não fala de apoios.

Francisco Seixas da Costa disse...

Luis Lavoura: ficou evidente que as únicas vozes da comunidade internacional então ouvidas foram contra a integração. Por isso é legítimo concluir que essa é a "voz" da comunidade internacional

Anónimo disse...

Senhor Embaixador

Estive há poucos anos em Odessa, Ialta e Sebastopol (antes da agitação ucraniana e da anexação russa da Crimeia.
A impressão com que fiquei de pouco vale (é só a de um turista atento e interessado); não levava qualquer ideia pré concebida.
Isto dito, fiquei com a sensação que os seus habitantes (os que contactei, como é evidente) se sentiam russos.
Independentemente da posição da comunidade internacional, gostava de saber como a
população da Crimeia recebeu realmente a anexação. Não confio no que os jornalistas transmitem. É inevitavelmente fruto do seu posicionamento.

José Neto

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro José Neto. Não tenho um conhecimento da situação que me permita dar uma opinião válida. Mas as impressões que tenho ouvido coincidem com as suas.

Anónimo disse...

Boa tarde Sr Embaixador
Visto que sou um leigo nestes assuntos será que me poderia esclarecer as perguntas que coloco abaixo ?
O que é a comunidade internacional ?
É alguma organização de paises ? Se sim, quais fazem parte dela?
Quando diz "sob protesto da comunidade internacional" , foram todos os paises dessa comunidade ou foram apenas alguns ?
Agradeço antecipadamente o seu gentil esclarecimento. Agradecido.

Joaquim de Freitas disse...

Graças à diplomacia, que é a arte de evitar as guerras, sabe-se que a California, o Novo-México, o Arizona, o Nevada e o Utah, anexados pelos USA em 1848 apos a guerra americano-mexicana sao Estados americanos e que a Crimeia (28 000 km2) é um Estado russo.

Caramba e передайте мне водку !

Joaquim de Freitas disse...

Hum ! Comunidade Internacional ? Qual ? Aquela que fecha os olhos em Gaza, e na Palestina em geral ? A que fechou os olhos quando os nazis da praça Maidan derrubaram um governo eleito democraticamente?
A culpabilidade do Ocidente – para não dizer os EUA- em relação aos assuntos internacionais, como o conflito ucraniano e as tensões com o Irão, é um conceito que não é concebível para os grandes medias americanos.
O que pensam os outros países importa pouco ou nada se a sua opinião vai ao encontro da estratégia americana.
O Ocidente e todos os países ‘seguidores voilà a “comunidade internacional”! Ou melhor ainda, o governo americano e todos aqueles que estão de acordo com a sua politica.

Anónimo disse...

@Joaquim de Freitas

Exactamente. Apesar da frequência com que a expressão “comunidade internacional” é invocada, o seu significado preciso – como as suas origens – é difícil de discernir.
O termo pode ser considerado vago e é usado em diversas situações.
Pode significar, por exemplo: os países da América do Sul; os líderes europeus; os países do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas.
Mas o que me custa é ouvir tanta gente a utilizar erradamente o referido termo pensando tratar-se de alguma organização bem defenida de paises como a ONU por exemplo, como papagaios que repetem o que ouvem mas não sabem o que dizem.

Em relação a California, creio que gostara de tomar conhecimento (caso ainda não tenha) dos conteudos abaixo. Pouca gente conhece, pouca gente o sabe.

https://en.wikipedia.org/wiki/Russian_America

https://en.wikipedia.org/wiki/Russian_colonization_of_the_Americas

http://picturethis.museumca.org/timeline/early-california-pre-1769-1840s/russian-presence/info

http://www.smithsonianmag.com/people-places/when-russia-colonized-california-celebrating-200-years-of-fort-ross-880099/?no-ist

Joaquim de Freitas disse...

@ Anonimo das 17:23 :

Muito obrigado, mas já tinha lido algo sobre o assunto. Os Russos vieram bem mais tarde, depois dos Britânicos e os Franceses, e, claro, os Espanhóis.
O que desejei salientar é que as anexoes de força ou por simples pressão diplomática ou embargo, são a tradição secular americana. A comunidade internacional importa-se pouco ou nada com este imperialismo absoluto.

Anónimo disse...

A questão que o fanático comuna do Freitas faz questão de esquecer é que as anexações dos "américas" foram feitas num tempo em que não existiam os princípios libertadores do ser humano que vigoram hoje em dia. É um pormenorzinho, apenas, claro... Isto para já não falar que os "américas" até compraram algumas coisas por aí... tipo, o Alasca!

E nem é preciso dizer que o Freitas nem quer pensar em referir a anexação russa da antiga Koenigsberg (hoje Kalininegrado), ou da japonesa Sakalina, ou de partes da Polónia... Quanto a isso, chiu.........

Ucrânia

A utilização pela Rússia de um novo míssil hipersónico só foi uma surpresa porque tinha sido criada a ideia de que o passo seguinte, depois ...