Ontem, um certo opinador cujo nome não importa para o que aqui me traz, referia na sua coluna que, para uma geração que hoje tem menos de 50 anos, é praticamente irrelevante a memória da ditadura portuguesa, período em não fez a sua vida, pelo que não identifica minimamente com a luta pela liberdade quantos, revindicando-se das diversas formas de socialismo, durante esse período combateram o Estado Novo. O dito escriba, talvez porque sabia isso chocante para parte significativa da memória coletiva, não foi ao ponto de desprezar expressamente o 25 de abril, mas andou lá por perto.
No texto, o autor justifica ser de direita (diz também ser liberal, mas isso é irrelevante para o que importa) pelo facto da imagem que criou da luta pela liberdade estar precisamente associada ao combate contra a esquerda, contra o socialismo e contra o comunismo, seja no plano internacional, seja no quadro interno, nomeadamente naquilo em que este teria procurado contribuir para a passagem da "África portuguesa" (sic) para esse campo.
Quem é de esquerda tenderá a olhar com alguma sobranceria para esta análise. Mas julgo que faz mal, porque, no seu simplismo maniqueu, ela ajuda a explicar grande parte da atitude de uma certa geração que por aí anda e que, sendo embora fortemente minoritária, tem vindo a ganhar espaço nos media, inicialmente impulsionada pelas redes sociais, e é hoje muito adubada pela doutrina das escolas económicas do "pensamento único" de algumas universidades de sucesso.
Da mesma forma que, numa sociedade como a francesa, já não passa pela cabeça de alguém de esquerda utilizar o fantasma do colaboracionismo ou de Vichy para contestar as ideias da direita democrática, a geração que "fez" o 25 de abril e que se revê em alguns dos valores da esquerda tem rapidamente que saber descobrir um novo discurso para fazer frente à direita. Apodá-la de "fascista", como às vezes por aí se ouve, é de um simplismo ineficaz e redutor. O Estado Novo já lá vai e é pateta pensar que alguém que tem vinte e tal anos ainda se vai emocionar com o Tarrafal ou a "estátua", entre dois "shots" nos bares de Santos ou da Galeria de Paris.
O combate contra a direita pode e deve fazer-se no terreno das ideias, centrado nas políticas de hoje, mas, essencialmente, só pode ter sucesso se tiver eficácia concreta na vida das pessoas. A esquerda, para conservar o poder e justificar democraticamente a razão por que pode exercê-lo, deve conseguir compatibilizar uma forma de vida que seja confortável para largas faixas da população, que se sentem à vontade e gostam de usufruir do modelo da sociedade de mercado que é hoje o "template" comum da Europa, e que marca inexoravelmente o seu quotidiano e os seus legítimos hábitos de consumo e lazer, com uma gestão eficaz da economia, da qual seja possível extrair recursos fiscais que permitam suportar políticas públicas que reforcem a "safety net" social e promovam oportunidades para todos.
A esquerda só será vitoriosa se conseguir tornar as pessoas felizes, o que passa por conseguir mostrar que as suas políticas são as mais capazes de democratizar o bem-estar, para recriar um ambiente de solidariedade intergeracional assumido como valor ético, para tornar a luta contra a desigualdades um imperativo da consciência coletiva, para gerar uma sociedade onde o quadro social de nascença não seja uma determinante imutável para o resto da vida. A esquerda, se quer derrotar a direita, no campo democrático que é o deste país e da Europa em que estamos, deve conseguir afirmara-se, simultaneamente, como a mais eficaz promotora e criadora de riqueza coletiva e como a força paladina da igualdade de oportunidades, o que tem como contraponto saber conviver com o mérito e o sucesso individual, sem alimentar um discurso de inveja e tensão interclassista. Se o não conseguir fazer, a direita regressará rapidamente ao poder.