quarta-feira, março 24, 2021

Confusões caucasianas


Portugal ganhou há pouco em futebol, com uma triste exibição, face ao Azerbaijão. Ter um bom guarda-redes é outra segurança. E o guardião azeri era excelente.

Lembrei-me então de um episódio passado, na sua capital, Baku, onde, em 2012.

O SMS, recebido da minha jovem "oficial de ligação" (pertencente ao "ask me team", aposto nas costas das respetivas t-shirts, que com imensa simpatia nos assistia) era bem claro: "You are requested to a meeting at 4 pm with the Minister of Agriculture of Azerbaijan". Seguia-se um endereço em Baku, escrito em azeri.

Olhei para o relógio e faltava menos de uma hora. Deixei a reunião em que participava e, com um carro e um condutor arrancados à organização, que só entendia a língua local, zarpei para o encontro.

Pelo caminho, fiquei a matutar no que poderia dizer ao ilustre anfitrião. Seria alguma coisa de natureza bilateral, aproveitando a minha passagem por Baku?

O meu ministro, que era então Paulo Portas, tinha passado por ali há alguns meses. Teria ficado algo pendente? Algum "protocolo de cooperação" por cumprir?

Porque nunca gostei de "brincar em serviço", e embora a embaixada portuguesa competente neste país fosse a que estava situada em Ancara e o Fórum em que eu participava nada tivesse de bilateral, antes de sair de Paris (onde era embaixador, cumulativamente, nesse ano, com a Unesco, qualidade em que estava em Baku), eu tinha pedido ao MNE um papel sobre o relacionamento Azerbaijão-Portugal. "À cause des mouches", como costumava dizer um amigo "versado" em francês. Estudara-o e, como mandam as regras, deixara-o prudentemente em Paris. Mas não me recordava de nele se falar de agricultura. Ou seria a minha memória?

A agricultura não é propriamente o meu "forte", mas, porque a diplomacia se transforma, quando as coisas assim o exigem, numa nobre arte do desenrascanço elegante, fui preparando algumas ideias para a conversa com o governante azeri, à medida que o meu condutor furava pelo tráfego infernal da cidade, ungido do dever, e dos fantásticos direitos rodoviários correspondentes, de transportar uma personalidade estrangeira ao seu governante.

Lembrei-me de que talvez viesse à baila a questão da próxima revisão da PAC e a onda protecionista que se avizinha, com o alibi da "segurança alimentar" europeia. Ou seriam as nossas experiências nacionais, em especial em matéria de extensão rural, que mobilizavam a curiosidade de Baku? Ou talvez pudesse surgir na conversa algum "memorando" de colaboração entre universidades (interesseiramente, lembrei-me da “minha” UTAD). Logo se veria! Tomaria nota do que me fosse dito e informaria Lisboa (e a nossa gente em Ancara, claro).

Cheguei já sobre a hora à porta do imenso edifício do ministério. Um engravatado funcionário esperava-me, com olhar ansioso. Apressados, subimos por um elevador, depois seguimos por um longo corredor, até entrar numa sala de reuniões.

Para minha imensa surpresa, por lá estava o grupo de colegas, embaixadores junto da UNESCO, que comigo tinham vindo desde Paris.

Todos tinham saído das suas reuniões da mesma forma apressada que eu. Mas eles sabiam que o encontro que estava prestes a começar era, não com o ministro azeri da Agricultura mas, muito naturalmente, com o ministro da ... Cultura. Com o qual discutimos temáticas que se prendiam com as nossas tarefas na UNESCO. Claro!

Take-away boémio




O meu primeiro gin tónico no British Bar foi em 1965!

Hoje, estava em modelo "take-away", com copo de papel. Melhores dias virão!

terça-feira, março 23, 2021

Guantanamo

É curioso o facto de ninguém falar da situação obscena em que vivem os prisioneiros em Guantanamo, ali detidos desde os tempos da administração George W. Bush, sem qualquer julgamento. Passaram, entretanto, as administrações Obama e Trump. Ninguém se indigna?

Universidade Autónoma de Lisboa

 



Meta volante


Hoje, lá para as nove e tal, isto é, por esta hora, metia-se o braço no janeluco que um dia passou a ser de alumínio lacado de branco, e, sabendo há muito da poda, abria-se, pelo lado de dentro, a fechadura do “Procópio”. Fiz isso anos a fio.

Ao fundo, logo em frente, o Nuno, o Nuno Brederode Santos, que tinha jantado na “Mãe de Água”, estava sentado no banco alto da esquerda, com os braços cruzados sobre o balcão, debruçado sobre uma pequena televisão que a “sedona” Alice tinha um dia inventado para o espaço. Nós chegávamos e ele, invariavelmente, dizia: “Já temos quorum. Passamos à mesa”.

E lá íamos nós, dois metros à esquerda, tomar assento na “Dois”, o pouso que por ali marcou a nossa geração. O Luís trazia-lhe o “refill” e o habitual para nós. Encostando-se para trás, numa coreografia que lhe era comum, como que a espreguiçar o início da noite que ia ser longa, o Nuno, que tinha acabo de ver as notícias, no dia de hoje, quase pela certa, iria dizer: “Este PPD está pela hora da morte! Já viste que há um candidato autárquico do Rio, lá na Padânia, que tem nome de ciclista?”

O grande arquiteto

“O teu avô era da Maçonaria”, dizia-me o meu pai, na minha juventude, lá por Vila Real. Imagino que o fizesse em voz baixa, por forma a não inquietar o meu outro avô, com quem vivíamos, pai da minha mãe, pessoa conservadora e que imagino seria pouco dado a apreciar esses caminhos de secretismo cívico. O meu avô mação tinha morrido no início dos anos 20, era o meu pai ainda uma criança, e estas nossas conversas tinham lugar nos anos 60.

Como o meu pai e o seu sogro se davam muito bem, não obstante o meu pai ser “das esquerdas”, como se dizia nessa ala da família, a boa educação e a solução para um são entendimento entre os dois passaram sempre, ao que creio, pela fuga a temáticas politicamente polémicas. E resultou muito bem, pelo que vi.

Nenhuma das duas heranças dos meus avós me tocou. Nem fui nunca para a Maçonaria, assunto que sempre abordei com risonha curiosidade, nem me deixei alguma vez catequizar por uma leitura benévola de algumas caraterísticas do Estado Novo, que o meu avô materno discretamente cultivava.

Como sempre dei por mim com um favorecimento tendencial das causas minoritárias, a Maçonaria, que sabia diabolizada e perseguida pelo Estado Novo, e que ainda por cima estava ligada a essa memória distante do meu avô paterno, acabava por merecer-me alguma simpatia, desde a juventude. Devo confessar, contudo, que os seus ritos me pareceram sempre um tanto bizarros e em nenhuma circunstância tive a menor tentação de aderir ao reino do “grande arquiteto universal”. Verdade seja que também nunca ninguém me convidou para tal, talvez porque resultasse expectável a minha reação.

Serve isto para dizer que, nada tendo a ver com tais obediências filosóficas, acho insensato e anti-democrático que se pretenda sujeitar à transparência e escrutínio público a eventual pertença a essas confissões. Ninguém tem o direito de perguntar ao outro a sua religião, o seu clube preferido, as suas inclinações no voto ou a sua orientação sexual. Se vamos por aí - e já se percebeu que este ataque tem uma agenda política clara, parte dela passando pela luta interna no PSD - arriscamos a transformar-nos numa sociedade pidesca, coscuvilheira e intrusiva. Como se diz em inglês, “mind your business” que, por cá, se traduz popularmente por “trata da tua vida e não chateies os outros!”

segunda-feira, março 22, 2021

Os livros regressaram!


As livrarias estão abertas! Não costumo pronunciar-me sobre a pandemia - porque não sou “achista” sobre assuntos em que outros sabem seguramente mais do que eu - mas, por uma vez sem exemplo, quero dizer que me tenho sentido bem menos seguro em outras lojas do que nas livrarias. Mas, enfim, manda quem deve mandar! E eles é que sabem, não sou eu.

A verdade é que fui, pela segunda vez, à “Ler”, no Jardim da Parada, em Campo de Ourique, desde que esta excelente casa pôde reabrir. Com os devidos cuidados de segurança e o ambiente agradável e a atenção que é habitual naquela casa. Nas bancadas, há algumas novidades, mas parece que outras estarão aí “à bica”. Ainda bem! A edição é uma indústria do bem. 

Toponímia curiosa


A senhora da pintura não merece, mas o nome desta célebre rua de Alcântara já lá estava antes dela.

Já agora, no mesmo quarteirão, vende-se o melhor pão de Lisboa, o “Pão de Gleba”. Passo por lá todas as semanas...

sábado, março 20, 2021

Secreto?


Gerou-se por aí uma polémica sobre um relatório de 1976, relativo a sevícias praticadas em detenções de natureza política feitas no período revolucionário.

Circulam mesmo na internet textos dactilografados, como que a pretender dar um caráter clandestino a esse documento, que alguns qualificam de “secreto”.

Pois bem! Só na minha biblioteca tenho duas versões impressas e que foram divulgadas, com toda a publicitação e transparência, desse documento. Uma delas da Imprensa Nacional/Casa da Moeda. São “secretas”?


Contudo, como dizem os juristas, a doutrina divide-se sobre esta matéria. Por isso, foi publicada pelo professor Orlando de Carvalho uma obra crítica deste relatório.


E existe ainda um outro trabalho que analisa o relatório. Só lendo tudo se percebe tudo. E nada é secreto!


Aliás, sejamos claros! Secretos, nos tempos que correm, só os de porco...

Pai

Ontem foi dia do pai. Não sou pai e o meu já se foi há muito, pelo que nada tenho a comemorar. Lembrei-me, entretanto: na minha infância e juventude, não se comemorava o dia do pai. Havia o dia da mãe, que era em 8 de dezembro, antes de ter migrado de dia, sabe-se lá porquê. Mas “dia do pai” era coisa desconhecida e sempre me cheirou a manobra comercial. Mas acho muito bem que, quem queira, o comemore, se isso lhe dá prazer. Contudo, apressem-se!, antes que isso seja proibido pela nova linguagem “inclusiva” que, para evitar discriminações, pretende anular referências ao género da paternidade. Essas novas regras estão aí a chegar, em força. Por isso, com uma imensa ironia, aviso disto “todas e todos”, como a novilíngua parece obrigar.

Um homem solidário


Do nosso terraço, naquele final dos anos cinquenta do século passado, lá por Vila Real, via-se, ao longe, uma moradia branca a que eu ouvia chamar “a casa de saúde do doutor Otílio”. Que me conste, felizmente, nunca ninguém da família teve necessidade de lá ir parar. 

“É ali que opera, todos os meses, vindo de Coimbra, o Bissaya”, também escutava, desde sempre, num registo que traduzia alguma admiração. Alguém vir, de fora, para operar doentes em Vila Real, naquela época, devia ser obra. E só com o tempo é que vim a saber que “o Bissaya”, Bissaya Barreto, era então um confidente muito próximo de Salazar.

Curiosamente, o dr. Otílio era conhecido como um declaradoopositor do ditador. Porém, não obstante as discordâncias políticas que os separavam, sabia-se que os dois médicos eram bastante amigos. Como grande amigo de Otílio Figueiredo era também o meu tio Humberto de Carvalho, que, ao tempo, na cidade, era uma proeminente personalidade da “situação”.

A primeira imagem que tenho da figura de Otílio Figueiredo é a de alguém que se passeava por Vila Real, muito esticado, cabeça levantada, com uma larga cabeleira, um “cabelo à poeta”, como então se dizia. Tinha um fácies grave, como à época era de bom tom ser afivelado pelos cavalheiros com peso na urbe. Embora sem nunca o ter conhecido pessoalmente, recordo que tinha dele uma ideia simpática, ao vê-lo com a sua bigodaça de estilo.

Ouvia dizer que, para além da profissão, escrevia literatura, coisa comum a médicos e a alguns advogados, um jeito muitas vezes trazido de Coimbra. Na minha família, unanimemente, “o Otílio” era visto como “um homem de bem”, politicamente “muito direito” (o que, na boca do meu pai, era altamente elogioso) e “muito boa pessoa”, como sempre ouvia dizer, ao meu tio e seu grande amigo.

Otílio Figueiredo, como se disse, era uma personalidade destacada do “reviralho” local. E a sua família também. Lá por casa, comentava-se: “Os filhos do Otílio têm ideias avançadas!”, um qualificativo que, à época, dizia tudo. Um dia, imagino, ter-se-á registado o rumor (que, afinal, era uma certeza) de que um dos filhos do médico oposicionista, o Eurico, tinha ido para o estrangeiro, para fugir à Pide. 

Tinha pouco mais de 20 anos, quando conheci pessoalmente Otílio Figueiredo. Num final de tarde de agosto de 1969, o meu amigo António Leite, numa mesa da Gomes, disse-me ter tido lugar, poucos dias antes, na sala de “explicações” da sua avó, a professora dona Dirceia, uma reunião preparatória da criação de uma lista oposicionista, para concorrer às eleições legislativas de outubro desse ano. O meu nome fora então mencionado para ser convidado a juntar-me ao grupo, tendo ele ficado encarregado de me contactar.

Eu era então um estudante universitário em férias. Meses antes, tinha tido o meu banho de iniciação política: a eleição da lista associativa de que eu fazia parte, numa posição modesta, tinha sido “não homologada” pelo governo (não por minha causa, claro!). Depois disso, em Lisboa, tinha andado envolvido em algumas movimentações políticas, embora sem grande significado. Sem partido, eu era então um radical, numa aprendizagem acelerada do marxismo. 

Ironicamente, tinha acabado de passar férias em França com o meu tio Humberto de Carvalho, o tal homem local do regime.

Antigo presidente da Câmara Municipal, esse meu tio tinha, nos últimos anos, regressado à sua vida de engenheiro. Porém, nesse ano de 1969, não tinha resistido ao apelo da “primavera marcelista” e preparava-se para ser o cabeça de lista da União Nacional ao ato eleitoral que se aproximava. Tinha-me falado nisso, em confidência, numa conversa em Biarritz, durante as férias. Ainda antes, e para poder acompanhá-lo, e porque eu estava na idade “da tropa”, tínhamos ido ver o governador civil, Torcato de Magalhães, que, sob a fiança da sua palavra, ordenou ao secretário do Governo Civil, o meu amigo José Aguilar, para emitir o documento que ia permitir a minha viagem.

Não obstante esse facto, decidi aceitar o convite transmitido pelo António Leite. Numa noite, no carro de Délio Machado, fui com ele à casa de Otílio Figueiredo.

Com grande simpatia, explicou-me o propósito da Comissão Democrática Eleitoral: ser uma frente unitária, que congregasse todos os oposicionistas locais. Não o disse, mas eu entendi: do “reviralhismo” republicano tradicional, aos (poucos) comunistas que por ali havia, passando naturalmente por figuras próximas do grupo de Mário Soares, como era o próprio Délio Machado. E, somando a tudo isso, havia um velho amigo, a figura do João Bouquet, a grande alma organizativa da CDE. Ou melhor, da CDEVR, porque a sigla pretendia ser uma marca distintiva das CDE de Lisboa, Porto e Braga, bem mais radicais. O João era então, entre nós, um homem difícil de qualificar politicamente: era simplesmente a alegria revolucionária em pessoa.

Começou nessa noite uma bela aventura, sob a liderança de Otílio Figueiredo. Poucos dias depois, com ele e com Délio Machado, fiz parte do trio que foi fazer entrega ao Governador Civil da lista oposicionista do distrito, que tinha Otílio à cabeça. Ainda estou a ver a cara de espanto de Torcato de Magalhães, ao deparar comigo - a mesma pessoa que, menos de dois meses antes, ali tinha vindo com o líder da União Nacional pedir um passaporte... Nunca tive por ingénuo o gesto de Otílio Figueiredo e de Délio Machado ao convocarem-me para esta cena. E sempre registei o “fair play” do meu tio, ao aceitar, com naturalidade, que eu tivesse decidido ir por um caminho político diferente do seu.

Otílio Figueiredo era um líder incontestado, mesmo a nível distrital. Paciente, bem humorado, aturava algumas ideias mais “avançadas” que eu propunha, e que traduzia em textos enviados para a imprensa em nome da CDEVR, textos que, as mais das vezes, nos dias seguintes ao envio para publicação, víamos selvaticamente cortados pela censura.

As reuniões, naquele andar de topo do prédio da Gomes, eram sempre momentos políticos interessantes.

Para a pequena história divertida, ficou uma cena com um velho “reviralhista”, que acumulava com o facto de ser um insuportável chato, a quem Otílio, já exasperado, pediu, a certa altura: “Olha lá! Não te importavas de ir ali ao Bragança comprar meia folha de papel selado?”. Perguntado, após a saída do homem, se estava a pensar fazer algum requerimento, fez um gesto de cansaço: “Nada disso! É que eu já o não conseguia aturar. E assim ganhamos uns minutos de sossego!”

Foram muitos os episódios que vivemos juntos, nessas semanas intensas e excitantes.

Numa noite, a decisão de nos associarmos, ou não, a uma posição coletiva da Oposição, a nível nacional, na resposta a um telefonema de Lisboa, de Mário Sottomayor Cardia, obrigou a uma reunião de emergência, em casa de Otílio.

No auge da discussão - na qual ele procurava ser a bissetriz entre duas alas, sobre a questão colonial, representadas pelo meu radicalismo e pela moderação de Délio Machado - tive um ataque de riso, sem o poder explicar: é que o bizarro e inenarrável pijama às riscas de Otílio de Figueiredo, que se tinha levantado da cama para moderar a decisão, me pareceu, num determinado momento, não “rimar” com a gravidade do tema. Não sei como me contive, por entre as gargalhadas que travava.

Desse belo tempo de 1969, recordo, finalmente, aquela que terá sido a minha única, se bem que educada e respeitosa, altercação com Otílio Figueiredo.

Foi nas horas subsequentes ao comício oposicionista no Teatro Avenida. Furibundo com o facto de um dos membros da nossa lista eleitoral, no seu discurso, ter afirmado que “o Ultramar deve continuar a ser português”, apresentei a minha demissão e recusei-me a integrar a delegação da CDEVR a uma reunião da Oposição a nível nacional, que teria lugar horas depois.

Otílio Figueiredo achou despropositada a minha reação, e disse-mo. Eu afirmei, com ênfase, que contestar a posição anti-colonial era uma linha vermelha a que eu não podia associar-me. Demiti-me, assim, da CDEVR, a poucas horas da votação.

A nossa oposição vila-realense não teve um resultado brilhante. Nenhum dos nossos candidatos foi eleito. Nada que nos surpreendesse muito. Assim ocorreria também em todo o país, onde, como em todos os arremedos de eleições que a ditadura encenava, a oposição não iria conseguir eleger ninguém.

Porque a política local era, então, algo de muito peculiar, deixo registado que, semanas depois do ato eleitoral, organizado pelo Rotary Clube, teve lugar um jantar de homenagem conjunta a Otílio Figueiredo, o líder oposicionista derrotado, e ao meu tio Humberto de Carvalho, líder da lista eleita e futuro deputado.Dois amigos que nunca deixaram de se abraçar, até ao fim das suas vidas.

No meu caso, a vida iria afastar-me bastante da cidade. E, por algum tempo, só casualmente voltei a cruzar-me com Otílio Figueiredo, com o qual mantinha um registo de mútua simpatia e amigo apreço.

Imediatamente após o 25 de Abril, integrei, com o meu pai, uma manifestação junto ao regimento de Infantaria 13, de apoio à indicação de Otílio Figueiredo para Governador Civil de Vila Real. Não viria a sê-lo, porque a relação de forças partidárias na região começava a ser desfavorável àquilo que ele representava em termos de ideias.

Depois, por muito tempo, o “Setentrião”, a sua livraria no Cabo da Bila, passou a ser uma das minhas regulares “capelinhas” de romagem, nas visitas que fazia a Vila Real.

Otílio era de uma grande simpatia e generosidade para comigo, visivelmente atento ao meu percurso profissional, refletindo sempre comigo sobre os tempos da política nacional, a que percebi estar sempre muito atento, embora não raramente dela refletisse algum desencanto.

Tenho saudade desse cidadão de exceção que foi Otílio Figueiredo. Foi uma figura distinta de profissional médico, um intelectual de mérito, um grande democrata e, acima de tudo, um homem solidário que soube estar à altura dos desafios dos tempos que lhe coube viver.

(Texto que publiquei no “In Memoriam de Otílio Figueiredo”, que acaba de ser editado pelo Grémio Literário de Vila Real)

sexta-feira, março 19, 2021

Qualificação (2)


Desta vez é criatividade lexical nordestina que se mostra, a pretexto de Jair Bolsonaro.

Montarroio


A Sampaio Bruno foi, por muitos anos, uma rua marcante na Baixa do Porto. Começa num entroncamento atravessado por uma das ruas mais nobres da urbe, a Sá da Bandeira, para o qual convergiam duas artérias que já foram muito estimáveis referências gastronómicas: a rua do Bonjardim e a Travessa dos Congregados. Começando no banco que foi Pinto de Magalhães e na Casa da Sorte, termina numa bela tabacaria, com basta imprensa internacional, tendo à frente o café Embaixador.

Hoje, por ali, numa cidade fechada e triste pela pandemia, deparou-se-me esta imagem. 

A casa que se vê do lado direito foi, a certa altura, um ponto de modernidade no Porto. Era ali o Montarroio, um dos primeiros locais a servirem café de máquina, com as famosas “La Cimbali”, que ficaram no nome do “cimbalino”. Nesse tempo, há mais de meio século, o snack-bar (a própria expressão traduzia novidade) Montarroio tinha uma zona de comércio e bebida de cafés ao nível da rua e, numa cave a que se acedia por uma escada muito estreita, tinha um balcão onde se serviam refeições leves. Era um local simpático e chegou a ser bastante “in”.

Nos dias de hoje, é o que se vê. E, infelizmente, vê-se bastante disto por esta zona do centro do Porto. Melhores dias virão!

In Memoriam de Otílio Figueiredo

 


Trabalhar o futuro


Vai para uma década, estive envolvido num exercício para a definição do novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional. Uma vintena de personalidades, empossadas pelo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, sob a coordenação de Luís Fontoura, produziram, ao longo de alguns meses, um extenso e muito detalhado trabalho.

Ele havia sido antecedido pela elaboração de diversos documentos temáticos, preparados no âmbito do Instituto de Defesa Nacional, que ajudaram a estruturar a nossa reflexão.

Após a entrega ao governo do nosso trabalho, o poder político extraiu dele o que entendeu e publicou-o, sob a sua responsabilidade, em Diário da República. Como é da natureza destas coisas, nem tudo aquilo que havíamos recomendado foi seguido, mas a legitimidade política existe, precisamente, para poder ser exercida no domínio das escolhas a fazer.

Pela parte do grupo, bem heterogéneo e diversificado, que havia estado envolvido no trabalho, houve a consciência de que tínhamos contribuído, da melhor forma que nos fora possível, para essa tarefa de interesse nacional, sem outra retribuição que não fosse o gosto de tentar sermos úteis ao país.

Os Estados têm obrigação de produzir uma reflexão regular sobre os principais eixos em que, com realismo e responsabilidade, assentará o futuro coletivo.

Desejavelmente, essa análise deve ser produto de um largo consenso, envolvendo atores oriundos de setores diversos de pensamento. Essa é uma regra básica para evitar o risco de que a reflexão redunde numa visão sectária, rebatível por perspetivas opostas, assim desvalorizando o que tiver sido produzido.

Nenhum texto desta natureza resiste ao desgaste do tempo e, muito em especial, às alterações de conjuntura, em particular daquelas nas quais o próprio Estado não consiga ter um papel determinante.

Para uma entidade internacional como é Portugal, um país com uma larga inserção externa - bastante maior do que a de muitos Estados com a sua dimensão - mas com limitados meios para poder garantir eficácia à sua voz, o principal esforço neste tipo de exercícios é começar por definir os valores que entendamos dever preservar, numa leitura atualizada da nossa soberania.

Daí decorre a definição dos factores e riscos que, num horizonte razoável, possam surgir como limitativos ou condicionantes do património de interesses a preservar. A isso se agrega, como lógico corolário, a definição de linhas orientadoras que devem ser observadas pelas políticas públicas nacionais, por forma a garantir a aplicação ótima dos recursos.

Este tipo de trabalhos processa-se sempre entre dois riscos: o de ser limitado por um pensamento conservador, que dê por adquiridos e imutáveis alguns paradigmas, e o da irresponsabilidade imaginativa, descolada da realidade, fruto da vontade de colocar tudo em causa. Descobrir o ponto certo de equilíbrio é a chave do sucesso destes exercícios, cuja real utilidade é sempre medida pelo modo como os governos traduzem esse quadro referencial em decisões no seu dia-a-dia.

Sem pretender ser polémico, limito-me a constatar que, entre nós, a governação costuma ser muito pouco sensível a visões estratégicas que abranjam mais do que a esquina do fundo da rua por onde caminha, isto é, a próxima eleição. Quero crer que nenhum executivo esteve disposto, até hoje, a proceder a uma aferição sobre o modo como a sua ação teve ou não em consideração aquilo que tinha sido definido nos “conceitos estratégicos” que, supostamente, os deviam ter orientado.

Lembrei-me disto ontem, ao terminar a leitura de um documento divulgado, ainda esta semana, pelas autoridades britânicas, em que é feita uma reflexão sobre os desafios que se colocam ao Reino Unido nas áreas da Segurança, Defesa, Desenvolvimento e Política Externa.

É muito refrescante poder apreciar um pensamento contemporâneo sobre o destino de um país antigo, que avalia o seu futuro com ambição e otimismo. Recomendaria que aquele estudo fosse bem lido entre nós.

Mais do que “chover no molhado” sobre o presente, a nossa grande responsabilidade é conseguir preparar o futuro. Nem que seja por mero egoísmo geracional: é que o futuro é o lugar onde “quem cá está” já vai passar o resto dos seus dias.

A raça na corte


Quando, em 1910, a República foi implantada em Portugal, apenas o caso óbvio da França e o modelo particular da Suíça destoavam, num mar de regimes monárquicos que submergiam a geografia política do continente.

Com o passar das décadas, os conflitos, as secessões e a emergência de radicalismos de sinal diverso marcaram o destino de muitas dessas Monarquias.

Parte delas viria a falhar no teste da sua compatibilidade com a onda de prevalência da soberania popular que foi varrendo o continente.

As Monarquias que se mantiveram enquanto tal, na sua maioria tituladas por descendentes de figuras que se tinham prestigiado como símbolos de unidade em tempos nacionais de extrema dificuldade, como foi o caso da Segunda Guerra mundial, aceitaram o compromisso de anular a sua capacidade de influenciar a gestão política dos respetivos países.

Aos reis é hoje pedido que sorriam e representem com dignidade o Estado de que são um símbolo. Quando a conjuntura os obriga a intervir pontualmente na coisa política, exige-se-lhes um imenso bom senso.

Ora o bom senso não nasce necessariamente com as pessoas - e os reis são pessoas. Viu-se isso, há pouco tempo, em Espanha, onde o antigo monarca desbaratou, por insensatez de comportamento, o capital de prestígio que tinha acumulado numa transição política tida por exemplar.

Com uma parte significativa das opiniões públicas - mais nuns países do que em outros - a colocar progressivamente em causa o princípio dinástico da chefia do Estado, os monarcas e as suas famílias vivem sob uma atenta observação. Alguns parece estarem mesmo sob uma implícita aferição pública da sua “utilidade”, numa relação custo-benefício, a qual, porque decorrente da progressiva dessacralização das suas funções, se torna, dia a dia, mais exigente.

Passado que foi, já há muito, o tempo da sua intocabilidade pela comunicação social, os soberanos e suas famílias têm de aguentar esse forte escrutínio, porque parte das sociedades democráticas não olha com bons olhos os privilégios e as mordomias, obrigando-os assim, cada vez mais, a seguirem uma vida que se assemelhe à do comum dos cidadãos.

Os gastos com as famílias reais ou similares são hoje objeto de um forte debate, sendo a sua expressão social seguida com um interesse que vai da medíocre coscuvilhice tablóide à compreensível exigência ética.

As cortes, no seu esforço de sobrevivência institucional, têm assim de ter inteligência para se adaptarem às mudanças da sociedade, às tendências da contemporaneidade. Com um grau de aceleração sem precedentes, isso envolve hoje linguagens, padrões comportamentais e a observância de uma multiplicidade de outros sinais.

O que se terá passado recentemente na corte britânica, com acusações de cedência a estereótipos racistas e discriminatórios, toca uma preocupação que atravessa o mundo, a que as novas gerações são particularmente sensíveis.

Da mais “profissional” das Monarquias europeias não era expectável um erro tão grosseiro. Mas, como diz o povo, no melhor pano cai a nódoa.

quinta-feira, março 18, 2021

Qualificação


É difícil exceder em imaginação qualificativa aquilo que esta cronista da “Folha de São Paulo” ontem escreveu sobre o presidente Bolsonaro.

Vou confessar o que nunca tinha lido: Basculho, jacodes, enxurro, infando, estrupício, broxável, capiroto, pequi roído. Mas o mais delicioso vocábulo é, sem a menor dúvida, o criativo “excrementíssimo”.

“A Arte da Guerra”


Em conversa com António Freitas de Sousa, no “Arte da Guerra”, do “Jornal Económico”, abordamos hoje em video as próximas eleições legislativas em Israel, as pressões chinesas sobre Hong-Kong e a profunda crise político-social em que está mergulhado o Líbano.

Pode ver aqui.

quarta-feira, março 17, 2021

Poluição visual

É um cruzamento, relativamente estreito, entre a rua das Praças e a rua S. João da Mata, na Lapa, em Lisboa.



Podia ser um recanto interessante de uma Lisboa de um certo tempo, com casas de época, que a vista poderia desfrutar.




Nos dias de hoje, neste pequeníssimo espaço, há esta floresta de placas rodoviárias. Contem-nas! São 14 ou 15! 




Não pode ser diferente? É mentira. Em outros países, bem mais desenvolvidos, cívicos e organizados, há bairros onde não há este inferno de latoaria, onde à entrada do bairro é dada uma indicação geral. E é tudo!






Por cá, deve haver uns especialistas que entretêm a vida com isto. E nós que aguentemos! (Faltam várias das placas nas fotos, mas não tive coragem de fotografar mais. Já havia vizinhos a espreitar pelas janelas...)

terça-feira, março 16, 2021

Óscares


Pedro Gomes Sanches explica, no Expresso, os critérios para atribuição os Óscares, a partir de 2024. Leiam:

Para ser elegível a Oscar a partir de 2024, o filme tem de cumprir dois de quatro standards. O primeiro standard é assegurar que uma das três condições seguintes é verificada. Primeira condição: o actor ou actriz principal ou um dos principais actores secundários tem de ser asiático, hispânico ou latino, negro ou afro-americano, indígena, americano nativo ou nativo do Alaska, do médio-oriente ou do norte de África, nativo do Hawai ou de uma ilha do Pacífico ou de outra raça ou etnia subrepresentada. Segunda condição: pelo menos 30% dos actores secundários têm de ser de pelo menos dois dos grupos subrepresentados; a saber: mulheres, grupos étnicos ou raciais, LGBTQ+, ou pessoas com deficiências físicas ou cognitivas ou surdos. Terceira condição: a história principal deve ser sobre um dos grupos subrepresentados (os mesmos referidos na condição anterior). O segundo standard deve cumprir uma de duas condições. A primeira é que dois dos directores de departamento (de casting, cinematografia, composição, adereços, cabeleireiro, etc.) sejam de um dos grupos subrepresentados. A segunda é que pelo menos um respeite a primeira condição do standard.

A imagem é do cartaz dos Óscares 2021.

Zero três


“E tens um carro para ti”. Esta frase, que me chegou a Oslo, em cuja embaixada de Portugal eu trabalhava, numa carta, pela mala diplomática, algures no início de 1982, alegrou-me um pouco o espírito. Era escrita por um colega da embaixada em Luanda, para onde eu acabara de ser transferido. Explicava que se tratava de um Volkswagen deixado pela “tropa” portuguesa, que eu ia ter direito de utilizar, quando chegasse ao novo posto. 

Por esses dias, eu não andava muito animado, “to say the least”, pela minha colocação em Luanda.

Três anos antes, sem ser candidato a nada e nem sequer ter sido consultado previamente, como era de regra, o ministério tinha-me enviado para Oslo, para o meu primeiro posto diplomático no estrangeiro. Ao que parecia, tinha sido essa a solução que, no Conselho do Ministério (hoje, Conselho Diplomático), órgão que determina as colocações e promoções, o meu diretor-geral, Alexandre Lencastre da Veiga, havia conseguido descortinar para evitar que eu fosse colocado em Bagdad, para onde o secretário-geral de então, Caldeira Coelho, me queria enviar. No seu entendimento, o meu perfil funcional merecia outro destino. Mas o chefe da carreira, que me “tinha no radar”, ao que deduzi por razões políticas, para utilizar uma expressão um dia ouvida a quem dele esteve próximo, teria mesmo ironizado, em conversa com o diretor-geral, com a proposta que tinha acabado de fazer para eu ir para a cidade de Saddam Hussein: “Ele parece gostar desse tipo de regimes!”

Três anos depois, era Luanda que me surgia no horizonte. Um outro diretor-geral, com o pelouro do pessoal a seu cargo, tinha-me telefonado para Oslo, inquirindo sobre se eu tinha “alguma objeção em ser colocado em Luanda”. Segundo me disse, o meu nome era um dentre quatro que o Conselho estava a considerar.

Quando ele me referiu os restantes três nomes, percebi logo que seria eu o designado: um deles tinha feito o serviço militar por lá, outro tinha crianças pequenas, outro alegava, há anos, uma doença do foro psicológico, o que já lhe tinha permitido escapar a outros postos difíceis. Com o destino marcado, pedi que fosse dito, da minha parte, ao Conselho: “Informo que não tenho interesse em ir para Luanda mas, se me mandarem, vou”. Não sei se ele o disse. E, é claro, fui. Pela pressa com que me enviaram, quase sem me deixarem completar três anos no posto nórdico, quase posso dizer que fui “para Angola, rapidamente e em força”.

A capital angolana era, então, um posto de categoria D, a mais baixa, isto é, aquilo a que os ango-saxónicos chamam um “hardship post”. Em plena guerra civil, com recolher obrigatório, quase sem lojas, com uma extrema dificuldade para se adquirirem bens alimentares, Luanda era então uma cidade muito difícil para se viver. Oslo já tinha sido um posto de categoria C, o que significava que eu começava a minha carreira a andar “pelo fundo da tabela”. Mas o que tem de ser tem muita força.
  
Se tivesse dinheiro ou alternativa, teria saído então da profissão, que parecia estar a tornar-se madrasta para mim, prenunciando um percurso futuro nada promissor. Mas, como vivia apenas do meu trabalho, a necessitar do salário ao fim do mês, com a minha mulher a prescindir da carreira dela para poder acompanhar-me, tive de aceitar. 

Ia para Luanda, aliás, arruinado financeiramente, porque a Noruega tinha sido caríssima e, mesmo com uma vida relativamente modesta, não conseguira aí poupar um tostão, ou melhor, uma coroa. Saí mesmo como uma dívida a um banco norueguês, com o meu embaixador por fiador, que paguei já só em Angola. São estes, para que constem, os salários “dourados” da diplomacia, de que às vezes a inveja fala através da imprensa.

Eu ia levar um VW Golf para Luanda, mas demoraria meses a chegar, por barco, com a minha bagagem. Ter ali um carro, desde o primeiro dia, particularmente indo morar na Avenida Marginal e tendo de ir trabalhar na parte alta da cidade, era essencial.

Mal eu sabia, contudo, que, quando chegasse a Luanda, o apartamento que me era destinado se tinha “eclipsado”, tomado pelas autoridades locais, com estranhas cumplicidades lusitanas à mistura. Iria ser então obrigado a viver, por quatro meses, num hotel próximo do limite do aceitável, para depois ter de ir ocupar, no edifício da embaixada, um minúsculo apartamento, com torneiras na parede... mas sem canos por detrás. 

Mas lá me foi apresentado o carro que me era destinado. Era um carocha preto, com um motor terrível, bancos que tinham sido de napa em tempos áureos, com um buraco do chão, por onde entravam as baratas. Sem chave nas portas, claro. As latas do carro abanavam por todo o lado, conferindo ao diplomata condutor um estatuto de duvidoso prestígio.

Era o “Zero Três”. Porquê esse nome? Porque a matrícula era MX-42-03. E eu era o nº 3 da embaixada. O carro do ministro-conselheiro, o segundo da hierarquia, era um Mercedes a cair da tripeça, com a matrícula a acabar (claro!) em 02, e o do meu colega que se seguia na linha da casa, era outro Carocha, o 04. Tudo óbvio.

Antes da chegada do meu Golf, meses depois de mim, e também ainda antes da ida da minha mulher para Luanda, o 03 iria dar-me imenso jeito, para me transportar pelas ruas de cidade e para ir para a praia, “off-season”. É que eu teimava sempre, para horror dos meus amigos angolanos, em frequentar as praias da ilha de Luanda no tempo do “cacimbo”, gozando, nos fins de semana, de uma magnífica solidão para ler e ouvir música. Para quem vinha da Noruega, o “cacimbo” ali era puro verão...

Por que é que me lembrei disto agora? Porque, há pouco, num número da revista brasileira “Piauí”, que acabo de receber como assinante que sou, relembrei que Jair Bolsonaro designa os filhos, por ordem decrescente de idades, como 02, 03 e 04.

Ao ver esta referência, senti alguma nostalgia daqueles tempos complicados de Luanda. Terra onde, afinal, acabei por ser feliz, porque a felicidade, tal como o Natal para os homens, é onde nós quisermos - e, vá lá!, onde pudermos e soubermos ser.

segunda-feira, março 15, 2021

José Paulo Fafe


Por anos, só o conhecia “de ouvido”: dizia-se, unanimente, ser um “enfant terrible”! Era uma imagem irrequieta, polémica, que me ia chegando por várias vias, sempre a contrastar, nesse registo, com a figura serena e calma do pai, um grande senhor e um imenso democrata, que deixou muito boa fama pelos claustros das Necessidades e que ainda tive o privilégio de cruzar pelo mundo. O António Silva e o Nuno Brederode, dois amigos comuns que o tempo já nos levou, iam-me, entretanto, dando dele uma imagem divertida e risonha. Eu, que o via frequentemente misturado com figuras políticas que estavam longe de ser “my cup of tea”, ia guardando o meu juízo final. Lia-lhe a escrita, trazia “no sapato” uma partida que ele me tinha feito num espécie de “Gente” com que o “Tal & Qual” de outros tempos se divertia, olhava-o sempre à distância - intermediado pelos jornais ou revistas ou pelas redes sociais. Um dia, uma aventura improvável que a pandemia deixou a meio, levou-nos, por iniciativa dele, a algumas almoçaradas e reuniões, com outros comparsas. Foi o bom e o bonito! Só a muito custo conseguíamos, por entre mil historietas e notas contemporâneas, tratar do tema que ali nos convocava. E, nesse caminho de conversa, de gargalhadas e ironias, fomo-nos dando - uma expressão de que gosto muito. Cada vez mais, num percurso de entendimento que chegou à amizade. Desses tempos saiu o convite que me fez para escrevinhar uma introdução a um dos anos de uma recolha da sua escrita no Facebook. 2015, ano do “finis Cavaco”, da Geringonça e do início da nova era socialista-marcelista, coube-me em rifa. O texto lá está, quase a abrir o “Um Homem é um Homem, um Gato é um Bicho” (2015/2020), o livro de José Paulo Fafe que a Âncora agora “deu à estampa” (gosto desta fórmula clássica). Aconselho que o leiam, com proveito, abrindo ao acaso as suas páginas, porque a graça de um produto desta natureza é ser feito de textos, umas vezes curtos outras mais longos, onde se fala de tudo e, principalmente, de mais alguma coisa.

domingo, março 14, 2021

"Lá na rua da Vitória...


"Candeeiros bem bonitos
modernos, originais,
compre-os na Rádio Vitória,
não se preocupe mais.

Lá na Rua da Vitória
quarenta e seis quarenta e oito
satisfaz-se plenamente
o cliente mais afoito.

Porque na Rádio Vitória
Embaixada do bom gosto
Quem lá vai é bem servido
e sai sempre bem disposto"


Eu decorei isto por causa da "embaixada", aposto.

O meu amigo Vidal


"Para o meu amigo, se não há mesa, inventa-se!", dizia-me, em anos idos há muito, o meu amigo Vidal, que nos apresentava pratos de inspiração galega no Muni.

Confirmado hoje ...


 ... que não fazem “take-away”!



“Observare”


Observare: investimento estrangeiro em Sines, EUA reúne com aliados asiáticos, acordo UE-Mercosul e oposição bielorrussa.

Pode ver aqui

Rapidamente e em força

Se acaso eu fosse democrata e adulto nos anos 40 e 50 do século passado, teria sido um orgulhoso colonialista.

Como o haviam sido, desde o século XIX, os republicanos, os combatentes contra a ditadura, os anti-fascistas. Ser colonialista, ser adepto da manutenção do império colonial era um desígnio nacional, patriótico. Os republicanos puseram o país a ferro e indignação porque a “pérfida Albion” nos não deixou executar o sonho do “mapa cor-de-rosa”.

Portugal teimou, depois, em ir para a Grande Guerra para defender as suas possessões ultramarinas, as suas colónias. Cunha Leal, expoente da luta contra Salazar, era um ferrenho colonialista. Norton de Matos, antigo governador-geral de Angola, pedia meças ao ditador de Santa Comba no interesse em manter a nossa África nossa.

Nos anos 50, até o movimento descolonizador ter começado a abalar as anteriores certezas da esquerda portuguesa, as colónias eram “nossas”. Repito o que disse, com total convicção: se acaso fosse democrata e adulto nos anos 40 e 50 do século passado, teria sido um orgulhoso colonialista.

A legitimidade da “posse” colonial só começou a ser posta em causa, em Portugal, pelo PCP. Honra lhe seja! Fê-lo, naturalmente, porque a opinião de quem o guiava (leia-se, Moscovo) tinha entretanto mudado. 

Já havia tido lugar, entretanto, a Conferência de Bandung. A China de Mao, ainda antes do cisma sino-soviético, já tinha cheirado “l’air du temps” e pressentido que o “terceiro-mundo”, a Tricontinental, o suposto “não-alinhamento”, eram a nova fronteira de um Norte-Sul inevitável.

Por cá, bem cedo, os maoístas afirmaram o anti-colonialismo com força e coerência. Honra a Francisco Martins Rodrigues, de quem (quase) todos eles são filhos, por muito bastardos que sejam ou mereçam ser. À parte o PCP e os maoístas, só os católicos “progressistas” os seguiram. Honra também lhes seja.

Os socialistas, presos ainda a um pensamento fora do tempo - que, deles afastados, a Ação Democrato-Social se encarregou de preservar, como num museu, até que se dissolveu no PPD -, demoraram bastante, até perceber que o vento tinha mudado e o império não tinha sentido.

Resumindo: tive a sorte temporal de já poder ser adolescente e adulto a tempo de ter uma atitude anti-colonial. Nunca defendi o “Angola é nossa”, embora saiba de cor a letra do hino, porque o debitava no Canto Coral do liceu. (Como cantava, e ainda sei, o hino da Mocidade Portuguesa - e não tenho a menor vergonha disso, diga-se!) Cada um vive o seu tempo e eu vivi o meu e não o disfarço.

E digo isto, porquê? Porque, nunca tendo sido colonialista - melhor, tendo sempre sido anti-colonialista, porque a isso me ajudou o tempo em que vivi - acho sem o menor sentido, entendendo que não leva a nada e que pode mesmo ser muito negativo para o nosso futuro, a evocação obsessiva das barbáries ocorridas nas guerras coloniais que está a emergir por aí - como a que a “Sábado” desta semana e o “Público” de hoje se dedicam.

A cada tempo corresponde um tempo, uma determinada maturação da consciência, uma certa racionalidade. Pensarmos que a nossa, a do dia que corre, é moralmente superior àquela que outros tinham no passado é mostra de uma arrogância imbecil. Por isso, nunca entendi muito bem o objetivo da auto-flagelação histórica com que alguns se comprazem, como se escavar na memória, de forma divisiva, trouxesse algum bem ao nosso futuro coletivo. O passado foi quando foi. Julgá-lo, à luz dos valores de hoje, é dar ares de possuirmos, só nós, a verdade incontestável, que se lhe sobrepõe. 

Apetece-me dizer a essa gente: coragem era ser anti-colonialiasta quando havia colónias. Sê-lo hoje, retrospetivamente, é uma arrogância saloia.

sábado, março 13, 2021

O cronista

Chama-se Alberto Gonçalves e é um dos mais badalados cronistas do jornal digital “Observador”, pago por esse órgão de comunicação social para escrever coisas como estas:

”Desde há um ano, ou seja, desde que começou esta experiência social, que faço o que me apetece, excepto quando o que me apetece colide com a submissão alheia à repressão em curso. Por exemplo, não posso ir a restaurantes se estes estiverem fechados. Mas nunca me passou pela cabeça respeitar as limitações de circulação e os horários de recolhimento, os quais de resto desconheço. No último fim-de-semana, à semelhança de boa parte dos anteriores, cruzei uns 90 municípios, sem “autorizações” escritas ou desculpas preparadas para criaturas que não têm o direito de as exigir em circunstâncias assim. Se quero “circular”, circulo. Se quero estar com amigos, estou. Se quero ficar em casa, fico – porque é a minha vontade e não porque o prof. Marcelo, o dr. Costa, a orquídea da DGS, uma dúzia de “especialistas” em fancaria estatística e um estúdio de televisão repleto de idiotas o recomendam. Se me apanharem a desobedecer, multem-me. Se me apanharem a obedecer, internem-me. Respeitar ordens implica aceitar a legitimidade das mesmas e de quem as decreta. Há muito que não respeito essa gente, e há muito que as decisões dessa gente são ilegítimas.”

O texto, no antepenúltimo parágrafo, tem a lucidez de dar uma sugestão com algum sentido.

10 sítios de que sinto falta (10)

 


... e da varanda da minha casa, em Vila Real

10 sítios de que sinto falta (9)


Restaurante Cozinha do Manel, Porto

10 sítios de que sinto falta (8)


Restaurante do Rio, em Sol Tróia, na “saison”, e Tasquinha da Arlinda, durante o resto do ano, em Darque

10 sítios de que sinto falta (7)


Pousada de São Bartolomeu, Bragança

10 sítios de que sinto falta (6)


Restaurante São Gião, Moreira de Cónegos

10 sítios de que sinto falta (5)


Miradouro de Nossa Senhora do Folguedo de Cima, Mangalhona

10 sítios de que sinto falta (4)


Restaurante Vallecula, Valhelhas

10 sítios de que sinto falta (3)


Pousada de Santa Luzia, Viana do Castelo

10 sítios de que sinto falta (2)


Restaurante Lameirão, Vila Real

10 sítios de que sinto falta (1)


Pousada de Belmonte

sexta-feira, março 12, 2021

Do meu bairro (6)

 




A fome


Acabo de ler que morreu Carlos Costa, o fundador do Trio Odemira. Desde os anos 50, o grupo musical foi muito famoso entre nós e atuava, com frequência, junto das comunidades portuguesas no mundo.

Não me admirei, por isso, em 1988, em deparar com o Trio Odemira em Kinshasa, no Zaire, onde eu tinha ido integrado numa missão chefiada, pelo jovem secretário de Estado Durão Barroso. Era, recordo-o, a primeira visita de Barroso a África. 

Numa das noites, o embaixador português no Zaire, Álvaro Guerra, oferecia um jantar a Durão Barroso e à delegação. Era uma refeição com várias mesas redondas, naquele imenso edifício da nossa embaixada que, nas vezes em que lá voltei, sempre me dava ares de um Palácio da Justiça do tempo do Estado Novo.
 
Convidados para o repasto estavam alguns dos interlocutores locais de Barroso e figuras da importante comunidade portuguesa no Zaire. Álvaro Guerra tinha perguntado se também podia juntar os integrantes do Trio Odemira, a quem queria fazer um gesto de simpatia. O secretário de Estado anuiu, claro.

A mais ansiada presença no jantar era, contudo, a de um homem poderoso do regime, o ministro das Finanças, com o qual não fora possível marcar um encontro, na agenda da visita ao país então ainda presidido por Mobutu. É que a resolução de uma determinada questão bilateral passava por ele e, por essa razão, tê-lo à mesa seria muito importante, para permitir “deixar cair uma palavra” sobre o assunto, como costumamos dizer nas Necessidades. Lembro-me de que Barroso não queria regressar a Lisboa sem ter um sinal sobre esse dossiê financeiro que muito nos interessava.

Chegada a hora, os convidados lá foram aparecendo, alguns com a costumeira imprecisão temporal africana. Porém, mais de uma hora tinha já passado e o ministro das Finanças não havia meio de aparecer.

Comecei a detectar algum desagrado em Durão Barroso, que era muito avesso a improvisos e a situações que saíam da rotina programada.

A certa altura, constatando o nervosismo crescente do nosso governante, já exausto das conversas preliminares com os seus interlocutores locais, recordo-me de que, quer o chefe de gabinete de Barroso, o meu colega António Monteiro, quer eu, termos dito ao Álvaro Guerra que seria importante passarmos à mesa. 

“Mas falta ainda o ministro das Finanças!...”, retorquia o Álvaro, cada vez mais embaraçado. Era uma pena, de facto, perdermos essa “cartada”, que ele preparara com tanto cuidado, mas tínhamos de acelerar as coisas, de uma vez por todas. O atraso do jantar começava a ser insustentável.

“Vou telefonar ao ministro!”, disse Álvaro Guerra, a certo ponto. Ora aí estava uma excedente ideia! E lá desapareceu para uma sala anexa.

Regressou cinco minutos depois. Trazia na cara algum desânimo pontuado, contudo, por um sorriso enigmático. E anunciou, a alguns de nós, que tínhamos de jantar sem o ministro das Finanças. Barroso mostrou um inicial “carão”, mas era preciso ir em frente.

Recordo que fiquei numa mesa onde também estavam os membros do Trio Odemira, entre os quais Carlos Costa, agora desaparecido, e o meu colega Manuel Lopes da Costa, que também se foi, há pouco tempo. Foi uma mesa com uma conversa extremamente animada!

No final, despachados que foram todos os convidados, restando nos salões apenas a delegação oficial portuguesa, alguém inquiriu: “E então por que diabo é que o ministro das Finanças não veio?”. 

O Álvaro Guerra, já com um amplo sorriso, lá nos contou a sua conversa telefónica com o convidado faltoso.

No contacto, tinha perguntado ao ministro se havia recebido o convite para o jantar dessa noite.

A resposta foi logo surpreendente: que sim, que tinha recebido, que sabia que era para estar com um governante português e que estava muito grato por ter sido convidado.

Desconcertado, o embaixador perguntou-lhe: “Et à quelle heure vous avez l’intention d’arriver, M. le Ministre?”. A resposta foi magistral: « Ah!, mais non, M. l’Ambassadeur, je vais pas. Ce soir j’ai pas faim… »...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...