sábado, janeiro 25, 2020

O CDS

 

Será que o CDS perdeu, de vez, o seu lugar na sociedade política portuguesa? Depois do resultado catastrófico nas últimas eleições, a luta pela liderança, que se consumará neste fim de semana, pode, afinal, acabar num debate autofágico e autoflagelatório, que ajudará a dar cabo do que ainda resta do partido. Se assim acontecer, o novo líder que dali sair pode vir a ter uma vitória pírrica.

Pode parecer estranho que esteja aqui a preocupar-me com o CDS, mas a verdade é que se trata de um partido onde tenho alguns (e bons) amigos, cujo papel histórico no pós-25 de abril não subestimo. Não me é indiferente o futuro da direita em Portugal, porque o regime político democrático, que quero ver preservado, tem de a ter em conta, por muito que a cegueira sectária de alguma esquerda o não perceba. Por isso, o saldo do congresso do CDS interessa-me.

Se o CDS, para evitar que a direita radical se refugie no Chega, passar a mimetizar as suas causas populistas de medo e de ódio, estará condenado: os nostálgicos fascistas, os reacionários trauliteiros, preferem o original a um genérico com gente mais urbana e educada. 

Se o CDS pretende vir a ser a casa dos liberais, uma elite fina e modernaça, de camisa desapertada até ao quarto botão, pode acabar por conquistar algum do neoconservadorismo que anda pelo Twitter e por blogues residuais, bem como alguma da direita que polula na opinião do Observador e debita em certas “business schools”. Mas é claro que tudo isso, por muito barulho que faça, por muitas colunas de jornais que alimente, por muitos comentadores que promova, não enche muito mais do que um estádio de futebol. E, muito menos, o parlamento.

O CDS, que creio que há muito já percebeu que não poderá nunca titular o poder no país (quantas vezes Paulo Portas não se terá já arrependido de ter deixado a JSD?) e que só regressará ao governo como “muleta” do PSD ou em outras inimagináveis conjunturas, parece, contudo, não ter ainda entendido que, para continuar a ter um lugar minimamente relevante no espaço político, só lhe resta regressar à sua matriz ideológica original, trabalhando-a de forma contemporânea, educada, criativa, serena e dialogante. 

Para isso, o CDS não pode ser um partido “caceteiro” e ultramontano, deve largar a demagogia barata que o fez afundar nas duas últimas eleições, deixar-se de slogans demagógicos e de atitudes histéricas, e, acima de tudo, deve manter um respeito por si próprio, pela sua história, pelo que foi nos tempos em que chegou a ter um papel significativo na democracia portuguesa. E nestes não incluo os tempos da “troika”, bem entendido.

Domingo, logo se verá por onde o CDS quer ir. Ou se, afinal, não irá a parte nenhuma.

Conversas globais



 

Durante 25 minutos, estarei na TVI 24 à conversa com o jornalista Pedro Pinto, no programa “Conversas Globais”.

Falaremos da “guerra” EUA-China, da globalização, dos desafios da competitividade europeia, das oportunidades para Portugal no mercado global, etc.

O programa será transmitido na TVI 24 no domingo, dia 26 janeiro, à 01:10 e às 17:30, estando depois disponível no TVI Player.

sexta-feira, janeiro 24, 2020

Aniversários


Nos idos de 1980, colocado na embaixada em Oslo, coube-me preparar a visita de Estado de Ramalho Eanes, então presidente da República, à Noruega.

Personalizo a frase porque, durante alguns meses, estive quase “home alone” na função: o anterior embaixador, Fernando Reino, tinha sido transferido para Lisboa (onde passou a ser, precisamente, chefe da casa civil de Eanes), e o novo embaixador, Cabrita Matias, só chegaria a Oslo poucas semanas antes da chegada do presidente. Assim, por ali estive sozinho, ainda com limitada experiência diplomática, com escassíssimo apoio, numa embaixada “microscópica”, como “encarregado de negócios”, a ter de acordar com os noruegueses todos os pormenores da organização de uma visita presidencial. Mal eu sabia que, no futuro, me caberia ter de organizar outras visitas presidenciais, bem mais complexas.

O meu interlocutor no palácio real norueguês foi Magne Hagen, um militar que, à época, era chefe de gabinete do rei Olavo V. Os noruegueses cedo tinham percebido a minha relativa “solidão” nas discussões sobre os temas em análise, que iam da clássica “marchandage” das trocas de condecorações aos pormenores protocolares e à agenda de conversas. A situação era tanto mais complexa quanto, em Lisboa, havia então uma forte conflitualidade entre o presidente e o governo, comigo a receber, por vezes, instruções contraditórias, umas das Necessidades, outras de Belém. Mas os noruegueses foram sempre de uma extrema simpatia.

Um jovem colega e amigo do nosso Protocolo seria entretanto enviado de Lisboa, por uns dias, a poucas semanas do evento, para nos ajudar a fixar os últimos pormenores: chamava-se José de Bouza Serrano, viria a ser embaixador e chefe do protocolo do Estado português. Sei que ele se lembra bem desses tempos.

Como resultado do frequentes contactos profissionais que fui mantendo com Hagen, acabámos por nos transformar em bons amigos. Da parte dele, uma prova dessa amizade seria o convite, no ano seguinte, para passarmos os dias da Páscoa com a sua família, na sua “hytte”, as cabanas de madeira nas montanhas que os noruegueses gostam sempre de ter. Não é muito fácil entrar na intimidade dos nórdicos mas, uma vez franqueado esse passo, revelam-se quase sempre gente de uma imensa franqueza e generosidade.

Por que é que me lembrei disto agora? Porque amanhã é 25 de janeiro. Nesses dias de junho de 1980, durante a estada de Eanes em Oslo, num dos intervalos do programa, apresentei-lhe Magne Hagen, sublinhando o papel decisivo que ele tivera na impecável organização da visita. Eanes agradeceu-lhe e eu aproveitei para assinar a coincidência do presidente e de Hagen fazerem anos no mesmo dia, 25 de janeiro.

(Meses depois, no final de 1980, Eanes iria disputar uma tensa campanha política para a sua reeleição, marcada pela morte de Sá Carneiro, com um adversário oriundo da direita militar, Soares Carneiro, que morreu em 2014. Curiosamente, Soares Carneiro tinha nascido... a 25 de janeiro.)

António Ramalho Eanes faz amanhã 85 anos e a História contemporânea do nosso país consagra já dele uma imagem de estadista e de uma personalidade de imensa probidade, muito por cima de todas as divergências que a sua ação, em determinados momentos, possa ter suscitado em vários setores, comigo incluído. O melhor elogio que lhe posso fazer é dizer que fazem muita falta a Portugal figuras com a sua estatura e integridade política.

Magne Hagen, o meu grande amigo norueguês, teve os últimos tempos da sua vida marcados por ocorrências de saúde que lhe tornam o quotidiano bastante difícil. Ainda há poucos anos, fomos visitá-lo à sua casa em Strømmen, perto de Oslo. Amanhã, telefonar-lhe-ei para o felicitar pelos seus 82 anos.

Curiosidades da vida.


quinta-feira, janeiro 23, 2020

Discutir Trump em Lisboa



Jerusalem


Vai por França uma forte polémica pelo facto de Emannuel Macron ter tido hoje uma altercação com a polícia israelita, em Jerusalem, que pretendia impedi-lo de seguir numa determinada direção. Alguns acusam o presidente francês de ter artificialmente construído um “remake” de uma cena similar passada na mesma cidade, mas com Jacques Chirac, em 1996.

Quem sabe se Chirac não se terá inspirado num episódio ocorrido com Mário Soares, meses antes, em novembro de 1995, quando este insistiu em subir o percurso do Monte das Oliveiras, não obstante a tentativa de uns imensos “bodyguards” de óculos escuros de o impedirem de prosseguir? Soares deu dois berros em português, afastou os polícias e fez, com toda a delegação, o caminho que lhe apeteceu fazer.

Afinal, Macron não só copiou Chirac, como Chirac já tinha copiado Soares.

(Uma imagem desses dias)

quarta-feira, janeiro 22, 2020

Que raio de país este!

Há gente já com netos que nasceu depois de ter sido anunciado que o novo aeroporto de Lisboa seria na Ota. Foram estudos e mais estudos, especialistas e mais especialistas, debates intermináveis e contestações múltiplas. Um dia, a ideia da Ota acabou. Depois foi o projeto de Alcochete. A “novela” foi parecida, embora mais breve. Caiu-se, finalmente, na solução Montijo, embora por aí agora se fale também da ideia de Portela + Alverca. Não sei se me esqueci de alguma coisa mais. Quando os estudos acabam e todas as audições terminam, quando parece estar prestes a surgir uma decisão final, lá recomeça a contestação. E, como regra, os governos acobardam-se e, como nos jogos de tabuleiro, tudo regressa à primeira casa.

Que raio de país este!

Uma oportunidade perdida



A imagem deprimente que passou para a opinião pública do congresso do Livre, com o que daí parece ir resultar para a eficácia da sua ação futura no parlamento, terá arruinado, pelo menos por algum tempo, a capacidade de afirmação nacional do partido. Nunca se terá ouvido falar tanto no Livre, mas, com toda a certeza, quem o apoia dispensaria bem o modo como o partido surgiu em evidência mediática.

Em política, como dizia o outro, o que parece é. E, por muito tempo, o Livre pareceu ser um partido “unipessoal”, criado em torno de Rui Tavares, um historiador que o Bloco de Esquerda fez um dia eleger para o Parlamento Europeu, mas com quem viria a entrar em posterior conflito.

O Livre surgiu com um discurso de esquerda culta e inventiva, aberto às temáticas de modernidade, do ambiente às questões de género. Do PS, o Livre distinguia-se por assumir uma agenda um tanto radical, bem mais estatizante, contrastando com a matriz “aggiornata” da social-democracia que hoje prevalece no Rato. Do Bloco de Esquerda, além da herança conflitual do passado, separava-o um muito maior pendor europeísta.

A personalidade suave e dialogante de Rui Tavares, que conquistara, com inegável mérito, um alargado espaço comunicacional, grangeava ao Livre uma promissora simpatia em diversos setores. Mas Tavares e o partido cedo terão entendido que seria necessário algo mais para conseguir ter acesso à Assembleia da República.

A escolha, por sufrágio alargado de simpatizantes, de uma mulher negra para representar o partido no parlamento parecia ser uma “trouvaille” interessante, ao mesmo tempo carregada de simbolismo. A condição para o sucesso do empreendimento era, naturalmente, que a figura escolhida estivesse em consonância plena com a linha partidária que representava. Ora, como já se viu, as coisas não se passam assim.

A deputada acha, provavelmente com razão, que, sem ela, o Livre não teria conseguido eleger ninguém. E reivindica uma forte autonomia decisória. O partido, por seu turno, entende que a única pessoa que tem em S. Bento em seu nome deve defender a sua orientação política, o que também tem algum sentido.

Não parecendo possível um compromisso entre estas duas perspetivas, o resultado é uma imagem de confusão política muito pouco dignificante. No fundo, estamos perante uma oportunidade perdida para afirmar uma mensagem parlamentar diferente, no âmbito de uma esquerda que, um pouco por todo o mundo, vive, nos dias de hoje, numa crise de imaginação e de ideias criativas.

terça-feira, janeiro 21, 2020

Médio Oriente


Hoje, terça-feira, 21 de janeiro, pelas 14 horas, estarei no programa “Sociedade Civil”, na RTP 2, dirigido por Luís Castro, a discutir a situação no Médio Oriente com Ana Santos Pinto, Armando Marques Guedes e Francisco Caramelo.

Regina Duarte


Foi em julho de 1992. Eu vivia então em Londres e fui uns dias, em férias, a Nova Iorque. Na Broadway, estava uma peça teatral de grande sucesso, “Death and the Maiden”, para a qual tive a sorte de conseguir arranjar bilhetes. Era a história de uma mulher que encontra, em sua própria casa, trazido casualmente pelo seu marido, o homem que a tinha torturado e violado, anos antes, durante um período de ditadura política. Sem que isso fosse explicitado, tudo apontava para situar o episódio no Chile de Pinochet, tanto mais que o autor da peça era dessa nacionalidade. O elenco era de luxo: Glenn Close, Gene Hackman e Richard Dreyfuss.

Sentámo-nos no teatro e, por uma imensa coincidência, ao meu lado ficou Regina Duarte, a excelente atriz brasileira, que tinha entrado em várias novelas que tínhamos visto na televisão. Não sou muito dado a esse tipo de gestos, mas não resisti a falar-lhe, expressando a minha admiração pelo seu trabalho como atriz. Foi muito simpática.

No final da peça, Regina Duarte chorava. Fiquei com grande respeito por aquelas lágrimas. O peso insuportável das ditaduras latino-americanas de extrema direita estava ali todo, naquela sala. Percebi que uma mulher e atriz brasileira, que também tinha passado por um regime similar àquele, sentia, como ninguém, a situação que ali via retratada.

Há horas, foi anunciado que Regina Duarte aceitou ser secretária da Cultura de Jair Bolsonaro.

Às vezes, há coisas que não rimam.

segunda-feira, janeiro 20, 2020

Unidos por Trump


Muitos dão a Stalin o crédito de ser um dos “cimentos” da construção europeia. Na mesma lógica, foi Trump, cujos três anos de mandato hoje se “comemoram”, a razão que reuniu esta manhã, no Salão Nobre da Universidade de Lisboa, um conjunto de palestrantes, convidados por Eduardo Paz Ferrreira, presidente do Instituto Europeu da Faculdade de Direito, para fazerem, cada um a seu modo, o “saldo” do mandato presidente americano e as perspetivas que isso traz para o nosso futuro.

domingo, janeiro 19, 2020

Alentejo




Nunca fui um fã da paisagem alentejana, devo confessar. O campo “a sério”, para mim, tem de ter montes e vales pronunciados, penhascos, imensas subidas e descidas, coisas agrestes, rochedos. Como acontece em Trás-os-Montes, claro.

E, dito isto, o Alentejo (já Alto, é verdade) estava soberbo, como eu nunca o tinha visto, neste fim de semana que por lá passei. Talvez pela chuva recente, os verdes estavam imbatíveis, as planuras até me fizeram esquecer o meu Marão. E não sou fácil de contentar!

Justiças

Quando o processo Manuel Vicente transitou para Angola, ao abrigo dos acordos bilaterais existentes, muitos por cá afirmaram não confiar na justiça angolana. Agora que essa mesma justiça pode vir a acusar Isabel dos Santos, essa justiça, afinal, já merece confiança?

Isabel dos Santos


Um grupo de órgãos de comunicação internacional de vários países começou hoje a divulgar documentos que transmitem fortes indícios de que a conhecida fortuna de Isabel dos Santos poderá ter assentado em benefícios ilegítimos, proporcionados pelo apoio do seu pai, durante o imenso tempo em que este presidiu aos destinos de Angola.

A confirmarem-se essas suspeitas, elas apenas virão confortar a perceção, muito generalizada, naquele país e fora dele, de que tão imenso património dificilmente poderia ter crescido, da forma como cresceu, se não tivesse tido “impulsos” políticos muito fortes. A documentação que já se conhece vai, contudo, mais longe, ao adiantar elementos que, na perspetiva dos jornalistas, podem configurar, não apenas privilégios, mas igualmente a prática de delitos de diversa natureza. Essa é agora uma questão para a justiça angolana, que já tinha procedido ao arresto de muitos dos bens de Isabel dos Santos.

As últimas semanas tinham já mostrado Isabel dos Santos num esforço para contestar publicamente as ações da justiça angolana face ao seu “império” económico-financeiro. Perante o detalhe destas últimas acusações e a montanha documental avassaladora que deve vir por aí, o caso promete poder entreter-nos por muito tempo.

Na África descolonizada, o cíclico rodar dos “alcratruzes da nora”, em matéria política, criando contrastes entre os ciclos sucessivos de poder, com consequências judiciais, é quase uma regra. Mas, a acreditar nos vultuosos valores que parece estarem envolvidos neste caso particular, a questão Isabel dos Santos tem uma tal dimensão que arrisca tornar-se jm “modelo” histórico quase sem precedentes.

Olá, António!


Passaram dois anos, mas parece que foi ontem! Deixámos de ter as tuas ironias, as tuas indignações, a tua inteligência, as tuas memórias. Só não deixámos de ter saudades tuas, António.

A observar

Ontem, atravessaram uma noite eleitoral penosa. O domingo vai servir para lamber as feridas. Na segunda, entrarão na redação, mais uma vez, de orelha murcha. Tanto esforço para nada! Ainda com as olheiras mentais da ressaca, debitarão, para a rádio matutina, a sua enésima frustração. Depois, cabisbaixos, afiarão a tecla e, em tremendistas opiniões, avançarão com a tese simples, à medida do seu desgosto: assim não “vamos” lá! É que não vão mesmo! Não deve ser nada fácil regressar às trincheiras de uma guerra perdida, condenados a ficar por ali a observar...

sábado, janeiro 18, 2020

Rui Rio

Rui Rio perdeu uma oportunidade: anunciar que, se Marcelo Rebelo de Sousa decidir recandidatar-se, o apoiará. Se o fizesse, obrigaria Marcelo a agradecer-lhe e seria o primeiro a fazer esse anúncio. Mas não o fez...

PSD

... e agora, o PSD derrotado vai esperar por um mau resultado de Rio nas autárquicas e ficar à espera que Pedro Passos Coelho se disponibilize para cumprir o sebastianismo que por ali está ainda muito vivo

E nós falámos!


Liberdades

O Livre é talvez o partido português que tem mais gente a mandar bitaites sobre a sua vida interna do que todos os seus militantes e simpatizantes somados.

Tejo muito além


sexta-feira, janeiro 17, 2020

O Portugal dos cafezinhos

Sai um cafezinho, bem cheio, p’ró senhor Madureira!” “Aquele Trump, só a tiro!” “Eu cá, acho que a história do gajo do Irão está mal contada...” “E ninguém fala de Israel, que esteve por detrás daquilo tudo?” “Você absolvem os aiatolas, mas aquilo no Irão é uma ditadura!” “Está bem, está, mas se fôssemos matar todos os ditadores, nunca mais se acabava...” “Então e o Trump não andou aos beijinhos com o maluquinho da Coreia, o das bombas?!” “Os americanos é para o lado que lhes dá mais jeito. Tanto apoiam ditadores, como os perseguem.” “E o Putin? Está ali, está para ficar para sempre!” “Às tantas, se não criar mais chatices, até é bom que fique”. “Viram a entrevista da engenheira de Angola? Aquilo é que é uma santinha!” “Da Ladeira, digo eu!”. “Sorte para logo, ó Leitão! É bom ser do Belenenses, nestes dias!” “De qual Belenenses. Agora há dois, não é?” “Mau, mestre! Lá começam as provocações”.

A coreografia dos cafés, dos croissants com fiambre, da meia de leite, da torrada “em pão de forma, com manteiga só de um lado”, do pingado “ali para a senhora dona Amélia”, foi abafando a sociedade das nações em que aquele espaço se tinha transformado, por minutos, esta manhã. A conversa já ia no futebol, único tema em que, em geral, o lado de dentro do balcão se sente tentado a intervir, em tudo o resto patrão e empregados só se autorizam alguma exclamação ou contribuem com esgares de leitura não unívoca. Quando saí para a rua, a violência doméstica do Armando Gama começava a aceder ao “hit parade” dos comentários. A menina Adelaide, que chegava para o seu queque tradicional, diria alguma coisa sobre o tema?

É este o Portugal dos “cafezinhos”. Gosto imenso deste país lisboeta de bairro, de quem conhece o outro mas não muito (e, se calhar, ainda bem), dos “vizinhos” de quem não sabemos o nome mas que há anos cumprimentamos (e de quem passamos a íntimos, se cruzamos na praia ou no estrangeiro), das sorridentes cumplicidades implícitas com algumas pessoas (quase sempre, por inferência intuitiva), mas também das antipatias nunca explicadas (“não gosto da cara daquele gajo, pronto!”). Lisboa é imbatível!

O Norte Desportivo


Ontem, por razões óbvias, lembrei-me muito de “O Norte Desportivo”. Era um jornal portuense retintamente portista, num tempo - anos 50 e 60 do século passado - em que os émulos de Lisboa não assumiam claramente as suas cores afetivas, embora toda a gente soubesse que “A Bola” era maioritariamente benfiquista, que no “Record” se exultava com as vitórias do Sporting e que “O Mundo Desportivo” tinha de tudo um pouco, desde os dois rivais lisboetas ao Belenenses.

Joaquim Alves Teixeira era o diretor e, dizia- se, o grande redator de “O Norte Desportivo”, um jornal que tinha a interessante particularidade de ter uma edição ao final da tarde de domingo, que trazia os resultados das partidas. Estas tinham lugar, impreterivelmente, às três da tarde de domingo. A variedade de dias e de horas, por que, nos dias de hoje, se distribuem as jornadas futebolísticas, foi o resultado de uma deriva progressiva, muito motivada pelas transmissões televisivas.

Quem andava nessa altura pelo Porto tinha, nos domingos, a opção, mais barata, de ir saber os resultados “da bola” (como então se dizia muito) junto à porta de “O Comércio do Porto”, nos Aliados, onde, num papel afixado, estava quantificada toda a jornada, logo depois das cinco da tarde. Muitos ficavam por ali em grupo, a comentar.

Outros acabavam por descer para a Praça, esperando, junto ao Imperial, pela edição da “folha” de Alves Teixeira, que por ali chegava um pouco depois das seis, com a tinta ainda por secar, sujando as mãos dos leitores. O jornal, que nem era caro, lia-se num ápice, porque era pouco dado às “literatices” dos colegas de Lisboa.

Eram muito curiosos os relatos ali escritos sobre os jogos principais. Ao ler essas crónicas, notava-se que eram feitas pela cumulação sequencial de textos ditados pelo telefone, todos os cinco minutos, que iam sendo de imediato compostos pelos tipógrafos, para não atrasar a saída do jornal. Às vezes, as coisas acabavam por não “rimar” umas com as outras, o que tornava as crónicas algo divertidas.

Durante anos, Alves Teixeira tinha um mote regular: apelar ao regresso ao Porto de Yustrich, um disciplinador treinador brasileiro, que tinha dado algumas alegrias ao clube das Antas. Esses tinham sido também os tempos de Jaburu, um excelente jogador, também brasileiro, em quem se dizia que Yustrich batia. Era uma coisa quase certa: sempre que as cores azuis entravam em declínio num campeonato, o que então era vulgar, lá vinha ele com a ideia do retorno do treinador.

Um dia, Yustrich acabou mesmo por vir. E foi um fracasso. 

Dificilmente se é feliz duas vezes no mesmo sítio.

quinta-feira, janeiro 16, 2020

Notícias da bola


Por alguma razão, o meu nome vai surgir, nas horas mais próximas, associado por aí ao mundo do futebol, como alguns irão notar. É a vida, como dizia o outro!

Aproveitemos então o ensejo, com toda a tranquilidade, para exercitar um pouco a memória.

Gosto muito de futebol, desde que me conheço. O meu pai levava-me, em miúdo, ao campo do Calvário, onde o Sport Clube de Vila Real - o clube mais antigo de Trás-os-Montes, que, daqui a pouco, festejará o seu centenário - disputava então, em regra, a segunda divisão, antes do destino o ter feito cair, inexoravelmente, para a terceira e depois para os distritais. (Ficou famosa, por ali, uma frase lançada um dia por um adepto, muito entusiasmado mas pouco realista, quando, a dez minutos do fim de um jogo, até então teimosamente empatado, a nossa equipa marcou finalmente um golo: “Vamos à dúzia!”)

Na minha infância e juventude, as vitórias do “Sport Clube” (como se dizia em minha casa) animavam a cidade, em especial se fossem sobre o Chaves, à época o seu grande rival. Qualquer feito notório do clube era festejado com receção no Alto de Espinho, o ponto mais elevado da estrada que liga Vila Real a Amarante. Autoridades e “forças vivas” iam receber os jogadores e diretores, imagino que com cerimónia posterior nos “paços do concelho”, com direito a discursatas gongóricas.

Na cidade, os adeptos do Benfica eram dominantes. Depois, vinha o Sporting, com o Porto então num distante terceiro lugar, em matéria de fãs. Esses eram os dias em que a liderança no futebol português se decidia no “derby” de Lisboa. “A Bola” e o “Record” dominavam em vendas, com “O Norte Desportivo”, do infatigável Alves Teixeira, a defender as então muito minoritárias cores das Antas. O meu pai “levou-me” cedo para o Sporting e por aí fiquei, sempre com imenso gosto e orgulho, por muito que a posterior carreira do clube pudesse apontar noutro sentido.

Fui sempre um medíocre praticante de futebol, desde a escola primária. Tinha a “mania” que era defesa lateral direito, mas algumas experiências, ainda em Vila Real e, mais tarde, quando estudava no Porto, fizeram-me constatar a minha inabilidade. Outras jogatainas, já na tropa, confirmaram essa minha perceção. Terminei cedo a minha “carreira”...

Continuo a gostar imenso de ver futebol, um espetáculo desportivo que acho sem par. Sou, contudo, um feroz adepto de sofá, raramente de bancada. Porém, sempre que ponho em causa a minha comodidade e decido ir a um estádio, apanho um banho de alegria e de vida. Ainda estive no velho Wembley, no Parc des Princes e em algumas outras “catedrais”, mas nunca me perdoarei por ter perdido o Maracanã. Admito que é na televisão que se consegue “ler” melhor um jogo, mas não há nada melhor do que entrar no ambiente de um estádio cheio, para sentir o verdadeiro futebol!

Nos dias de hoje, o meu Sport Clube de Vila Real já não joga no campo do Calvário (na imagem, o pórtico de entrada, desenhado por um tio meu). Por muito tempo, os meus pais viviam num andar que dava sobre esse campo de futebol. De uma ampla varanda, era possível ver quase 90% (ia a escrever “do relvado”, mas era um campo pelado!) do terreno. Um dia, já há muitos anos, estando de visita a Vila Real, ia haver por ali um qualquer jogo, creio que de juniores. Ao ver sair com pompa, do balneário, a equipa de arbitragem, dei-me conta de que o árbitro era meu amigo de infância, uma pessoa que, desde sempre, ia encontrando pelas ruas da cidade. Ele olhou para a varanda, viu-me e acenámos um para o outro. Foi um mar de olhos virados para cima, para tentar perceber quem é que o “senhor árbitro” (como o jogo ainda não tinha começado, ainda era tratado com esse respeito...) estava a saudar! 

São assim as cidades pequenas, que nos trazem grandes memórias.

quarta-feira, janeiro 15, 2020

O dilema de Rio


Terá desaparecido a possibilidade de haver maiorias absolutas de um só partido no sistema político português? O futuro ao eleitor pertence mas, no plano das probabilidades, tudo assim o indica. A atomização vigente no parlamento, sendo sintoma da existência de cada vez mais votantes que se não se sentem representados pelas duas principais forças do sistema tradicional, não obsta a que estas tenham de continuar a ser as âncoras de qualquer solução, mais ou menos duradoura, de estabilidade.

O desafio para cada um desses dois partidos, em termos de apoio parlamentar potencial, mudou muito, contudo, nos últimos anos.

Os socialistas tiveram a histórica ousadia de derrubar o muro, que parecia eterno, à sua esquerda, tendo governado uma legislatura completa com o suporte parlamentar de duas forças que, no juízo definitivo de muita gente, estavam para sempre excluídas do “arco da governação” em democracia. Esses partidos não integraram o executivo, mas puderam reivindicar o resultado de algumas das suas políticas, o que os aproximou dos corredores do poder, aos olhos exteriores e na sua própria perceção. As últimas eleições revelaram que o PS terá sido o mais beneficiado com o “negócio”, razão pela qual parte dessa “esquerda da esquerda” o não quis renovar formalmente. Os socialistas, para recuperarem uma imagem mais “centrista”, não insistiram num novo entendimento formal, esperando que esses seus antigos parceiros acabem, no fim de contas, por preferi-los no governo a vê-los substituídos por forças mais à direita. Mas não é de excluir, em absoluto, que o juízo sobre as vantagens de desencadear uma crise política, provocando eleições antecipadas, possa um dia vir a ser diferente no PS e nos seus antigos aliados.

Para o PSD a questão que se coloca é a do tipo de coligações que lhe permitam o retorno ao espaço do poder. O espetro de opções à sua direita sofreu uma grande alteração, com a simultânea anulação da importância do mais moderado CDS e a emergência do mais radical Chega, o qual, tal como a Iniciativa Liberal, foi “pescar” votos ao seu eleitorado tradicional ou a um novo eleitorado que, normalmente, acabaria por se abster, votar CDS ou apoiá-lo. Qualquer aliança com esse setor dará ao PSD uma imagem clara de “viragem à direita”, precisamente num tempo em que Rui Rio anuncia o seu desejo de levar o partido mais para o centro político. Assim, ou Rui Rio se desdiz e perde a face ou se entrega a um “namoro” ao PS. A alternativa é ficar sozinho na praça.

Líbia


1976. Na longa estrada de Misrata para Tripoli, o carro em que eu seguia era conduzido por um engenheiro líbio, formado no Reino Unido. Havíamos feito um desvio para visitar as magníficas ruínas de Leptis Magna (na imagem), a majestosa cidade de colonização romana, situada a mais de uma centena de quilómetros da capital líbia. 

Íamos os dois sós. Os restantes membros da nossa delegação seguiam em outros carros. Falámos bastante, da vida e do mundo, com ele sempre a mostrar-se orgulhoso do seu país e das suas realizações. Não tinha um discurso apologético àcerca de Kadafhi, mas não se lhe notava qualquer pendor para a dissidência. À passagem pela cidade de Homs (homónima da da Síria, da mesma forma que há outra Tripoli no Líbano), a densidade de cartazes e "outdoors" com a face do líder líbio, legendados em árabe, tornava-se muito evidente. Ousei então perguntar: "Kadafhi é mesmo popular? As pessoas gostam dele?".

O meu interlocutor, cujo nome devo ter ainda em alguma parte, mas de quem nunca mais tive notícias, ficou silencioso por alguns instantes, olhando a estrada. Depois, retorquiu:

- Se gostam de Kadafhi? Gostam de quem lhes dá casas, como Kadafhi lhes dá. Gostam de quem lhes dá escolas para os filhos, como Kadafhi lhes dá. Gostam dos novos hospitais, que Kadafhi está a construir, bem como destas estradas, que antes não tínhamos. Já andou de avião dentro da Líbia, não andou? Os pobres agora viajam de avião.

De facto, as minhas duas ou três experiências nas linhas internas da Libyan Airlines tinham-me mostrado que os aviões estavam transformados numa espécie de autocarros de província, com imensos beduínos, transportando mesmo gaiolas com galinhas! Os preços deviam ser muito acessíveis.

Começava a chegar à conclusão de que o meu condutor, homem com mundo e um excelente inglês, era, afinal, um fiel apoiante do coronel Kadafhi.

- Kadafhi dá muita coisa ao povo. Paga tudo com o petróleo e há muita gente contente com ele. Você já leu o "Livro Verde"? 

Fiquei num certo embaraço. De facto, havia passado os olhos por aquela "obra", escrita num estilo delirante, de quem tinha "descoberto a pólvora" política, desenhando uma terceira via entre o comunismo e o capitalismo. Kadafhi era uma espécie de "genérico" de Nasser: abolira uma monarquia corrupta, afastara os americanos da base americana de Wheelus (por esses dias, eu estava alojado no "Beach Hotel", ao lado da antiga base, antes frequentado quase exclusivamente pelos militares dos EUA) e julgava-se fadado a ser um federador do mundo árabe. Mas estava muito longe da dimensão histórica do líder egípcio. O "Livro Verde" havia aparecido em Portugal pela mão de um jornalista já desaparecido, Cartaxo e Trindade, que cheguei a encontrar, numa outra ocasião, em Tripoli.

Sobre o "Livro Verde", eu não sabia o que dizer ao meu interlocutor. Não queria hostilizá-lo, nem parecer complacente. Devo ter dito uma coisas "redondas" sobre a "originalidade" das ideias expressas no livro. Mas também não era preciso, como verifiquei pelo que ele me disse a seguir, sempre olhando a estrada em frente:

- Kadafhi é um fanático que se acha mais inteligente que todos os outros. O povo líbio não tem grandes queixas materiais, mas não tem, nem percebe que não tem, uma coisa importante que vocês agora já têm: a liberdade. Mas se "eles" sonhassem que lhe estava a dizer isto, eu seria preso.

Calou-se. Percebi que tinha ido tão longe quanto lhe era possível. Talvez mais longe do que a prudência aconselhava. A viagem continuou, connosco em longos minutos em silêncio. Voltei a encontrar esse engenheiro líbio em algumas reuniões técnicas posteriores. Todas já há muitos anos. Nunca mais regressámos ao registo daquela nossa conversa entre Misrata e Tripoli. Que lhe terá acontecido?

terça-feira, janeiro 14, 2020

Lóbi


Estávamos na Zâmbia, a meio de uma longa viagem governamental por vários países africanos. Não faço ideia a quem, naquele caso, competia a responsabilidade pelas reservas, mas a verdade é que, chegados bastante cedo ao Hotel Intercontinental de Lusaka, idos de Harare, naquele final dos anos 80, nos demos conta de que faltavam dois quartos para a delegação portuguesa.

Arrumados os membros da delegação mais afortunados, eu e o Duarte Ivo Cruz, que ali representava a AIP (Associação Industrial Portuguesa) constatámos que, para nós, não havia quartos. Ou melhor: havia uma vaga promessa de poderem "aparecer". Para utilizar uma expressão que o então jovem chefe da delegação portuguesa viria, décadas depois, a tornar popular noutro contexto, nós podíamos dizer que sabíamos que íamos ter um quarto, só não sabíamos é quando.

A visita oficial comportava, entretanto, alguns "números", entre os quais uma visita ao presidente Kenneth Kaunda, bem como reuniões e uma multiplicidade de contactos. Intercalando tais eventos, fazíamos passagens pelo hotel onde a delegação se acolhia. Mas não toda a delegação, não! A maioria da delegação! Porque eu e o Duarte continuávamos com as nossas malas recolhidas em quartos alheios e, nesses intervalos, contactávamos, com progressivo desespero, a receção ou a direção do hotel, metíamos "cunhas" através de empresários locais e da nossa embaixada, sempre em diligências cada vez mais ansiosas, porque a noite se ia aproximando. E, perante o olhar descansado (e demasiado sorridente, parecia-nos) dos nossos colegas, que se regalavam com bebidas no bar e conversavam entre si relaxados, nós os dois andávamos, de um lado para o outro, labutando verbalmente por uma cama onde descansar a noite.

O jantar oficial nem nos caiu bem, porque, acabado este, lá voltámos nós, ansiosos, ao lóbi do hotel. E seria já depois das 11 da noite que, já numa taquicardia angustiada, finalmente, recebemos as chaves dos nossos quartos, para logo constatarmos, com forte choque, que deles haviam sido literalmente "despejadas" minutos antes duas famílias africanas, com filhos, que foram dormir sabe-se lá para onde. Mas, àquela hora da noite, devo confessar que o nosso limiar de solidariedade Norte-Sul estava já ultrapassado pela lei da sobrevivência.

Foi nessa altura, culminadas que haviam sido com as dezenas de diligências feitas, junto de imensos interlocutores, que o Duarte Ivo Cruz, que comigo brindava o mútuo "sucesso" com um merecido whisky, se saiu com uma frase que recordo até hoje: "Só agora percebi, verdadeiramente, por que razão a esta área dos hotéis se chama "lóbi". Foi isso mesmo que nós os dois andámos o dia inteiro a fazer..."

Um abraço de Bom Ano para si, caro Duarte!

segunda-feira, janeiro 13, 2020

Viva o ar condicionado!


Acabo de ler que, no Rio de Janeiro, a sensação de calor foi superior a 50 graus. E recordei uma tarde, de 2006 ou 2007, em que, por ali, de fato e gravata, tive a imprudência, no centro da cidade (o conceito de “centro da cidade”, no Rio, é um pouco estranho: o centro é geograficamente ”de lado”), de dizer ao motorista que queria visitar dois ou três “sebos” (nome brasileiro para alfarrabistas), que trazia em agenda, e que me aparecesse apenas uma hora depois.

Estava imensamente adiantado face ao momento de uma palestra que devia proferir na Associação Brasileira de Imprensa, pelo que achei que escarafunchar em prateleiras de livros antigos seria a coisa certa a fazer para ocupar o tempo. O motorista tinha-me ido buscar ao aeroporto, tendo eu sido iludido pela temperatura interior do carro. Mal saltei para fora e o vi partir, comecei a ser invadido por uma sensação de calor como nunca tinha sentido. E ali estava eu, engravatado e vestido de fato claro, no meio daquele inferno.

O primeiro “sebo” (e depois o segundo e o terceiro) não tinha ar condicionado, apenas uma ventoínha apontada à figura física dos vendedores. Era um bafo quente e húmido que se fazia sentir e me começou a invadir. Comecei a ficar progressivamente encharcado, com o suor a transferir-se para o casaco. Tirei-o, até porque as manchas de humidade já se viam do exterior, coloquei-o às costas, o que, por sua vez, passou a incomodar-me a pesquisa livresca. Dei por mim a maldizer-me da “brilhante” ideia que tivera, de ir aos sebos numa semelhante tarde.

Por um azar monumental, não tinha tomado nota do “celular” do motorista, que, com inveja, logo imaginei refastelado num qualquer “boteco”, com um geladinho “chope” à ilharga. Assim, não o podia chamar de volta, para me resgatar da insensata jornada em que me tinha metido.

O lenço com que procurava secar a cara e o pescoço assemelhava-se a uma trouxa húmida. No saltitar entre os “sebos”, ainda tentei vislumbrar um café ou um bar que tivesse as portas fechadas para a rua, onde pudesse beneficiar do frio artificial, que estava a ser minha ideia conjuntural de felicidade. Mas eram tudo coisas tropicais, ao ar livre, se bem que à sombra, com pouca gente, porque os “cariocas” sabiam como evitar uma imprudência como a minha. E, os que o faziam, andavam com escassa roupa, de bermudas e alpargatas. Só eu, feito parvo, vestido “de embaixador” (a gravata, claro, estava já num bolso), por ali me permitia andar, sob os seus olhares curiosos, fixados naquele cidadão que vestia um traje insólito para o tempo que fazia. Ainda parei num desses lugares, bebi uma cerveja, mas isso só me fez acelerar o débito de suor. Estava inapresentável!

A hora de espera do motorista demorou horas a passar. Quando, finalmente, o vi surgir, entrei disparado no carro, passei para o banco de trás, pedi-lhe para pôr o ar condicionado no máximo e, dizendo-lhe para “não estranhar”, tirei a camisa encharcada, pendurei-a nas costas do banco em frente e devo ter dado algum “espetáculo” aos (felizmente anónimos) passantes: o embaixador de Portugal no Brasil, em tronco nu, passeando-se de carro pelas ruas do Rio. Uma fotografia na imprensa portuguesa, tirada por algum turista, teria sido um gozo nacional!

Arriscando uma pneumonia, fui-me assim secando, por largos minutos, conduzido pelas ruas do Rio, até chegar a hora da cena na ABI, onde entrei com um aspeto de que guardo algures uma fotografia da cerimónia, comigo desgrenhado, com ar de quem saía de uma indizível e bizarra experiência.

Há dias assim, que se há-de fazer! Viva o ar condicionado!

domingo, janeiro 12, 2020

Royals

Há muito de gosto pelas “soap operas”, misturado com a curiosidade saloia com vida das Kardashians, no modo como se vê discutir por aí o novo “o príncipe e a americana”. O facto da “piquena” ser etnicamente diferente do resto de Buckingham dá ainda um toque modernaço ao “remake”.

Rádio

Fico furioso comigo mesmo: constato que só ouço rádio no carro. E, as mais das vezes, ouvir rádio é excelente. “Vamelaver”, como diz o nosso PM, se consigo ouvir mais rádio em 2020.

Primeira dama

Tenho uma embirração antiga com o conceito de “primeira dama”. Para além do pretensiosismo do termo, fico sempre com uma dúvida: há por ali sempre uma segunda dama?

Direitas

Os novos partidos de direita radical, surgidos nas últimas eleições, foram a pior notícia que a direita tradicional podia ter. Retiram-lhe votos que, à partida, seriam dela, potenciam uma competição que é sempre desgastante e fragmentam esse campo político.

Rua

Para fazer esquecer que o PCP se absteve no orçamento, nada melhor do que dar luz verde para que a central sindical que controla inicie um novo ciclo de greves. A política portuguesa, de tão previsível, quase que perde a graça.

Belém

Mais do que o facto de Cristina Ferreira ter aventado a possibilidade de, um dia, poder vir a concorrer à Presidência da República, assusta-me que o país discuta o assunto como se essa eleição fosse possível. Porque, como isto anda e promete andar, talvez fosse mesmo.

Racismo?

Essa agora! Será que ninguém pode criticar, mesmo com severidade, o comportamento da deputada Joacine Katar Moreira, na Assembleia da República, sem arriscar ser crismado de racista? Ou anti-feminista? Está tudo doido, é?

Bola

É ”nesta fase do campeonato” que os árbitros de futebol começam a pensar no futuro das suas carreiras. E, claro, os que se lixam sempre são os mexilhões do costume.

Gorjeta patriótica



Foi há mais de 15 anos, em Khujand, bem no norte do Tajiquistão. Não havia elevadores naquele modesto hotel, ainda tributário da era soviética. Era, no entanto, o melhor da cidade.

Eu chegara, como sempre (nunca aprendi a viajar "light"), com uma pesada mala. Quando me disseram que tinha de subir dois andares a pé, cansado como estava, depois de uma viagem longa e de um dia de trabalho relativamente intenso, "passei-me" e reclamei. 

A rececionista, com pinta de "aparatchik" da era antiga, num país onde as coisas não tinham mudado assim tanto, confrontada com o meu mal-estar, sem me dar grande confiança, disse-me para eu ir indo para o quarto, que a mala lá iria ter. 

Passados largos e irritantes minutos, bateram-me à porta. Ofegante, um homem, cuja idade tinha ultrapassado há muito os 80 anos, apresentou-se com a minha mala. 

Senti-me incomodado. Então aquele senhor idoso tinha subido as escadas, com mais de 20 quilos na mão, para evitar o meu esforço? Para além de articular vários "spasiba", entendi dever dar-lhe uma boa gorjeta, que pudesse compensar o meu complexo de culpabilidade. 

O homem mirou a nota de cinco dólares, revirou-a bem não fosse estar a ver mal e saiu, às vénias, desta vez sendo ele quem se desfez em coisas que entendi como profundos agradecimentos. 

Sabia que a gorjeta tinha sido boa, mas não tinha ideia do que ela significava, à escala local. Quando, ao jantar, contei o episódio a um diplomata holandês que vivia no país, revelando-lhe o montante da gorjeta, o comentário foi, para mim, surpreendente: "Em moeda local, o que você lhe deu deve representar mais de metade da reforma mensal do homem!"

Na manhã seguinte, ao sair do quarto, deparei com o idoso, especado em frente à porta, já preparado para transportar de novo a minha mala. Deduzi que devia estar por ali já há algum tempo. 

Com um imenso sorriso, num tom levemente interrogativo, como que a confirmar apenas o que já sabia, disse-me: "Portugaliya!?" Confirmei e lá descemos as escadas, ele ajoujado com a minha mala, comigo ao lado, descansado, apenas com uma pequena saca de pano ao ombro.

À chegada ao lóbi, recordo, como se fosse hoje, o olhar reprovador e prenhe de "righteousness" das minhas colegas de viagem, embaixadoras da Noruega e do Canadá, que condenavam, num silêncio grave, a minha atitude de vil e eurocêntrica exploração da terceira idade tajique. Como poderia explicar-lhes que estava a fazer um "favor" ao homem? Como reagiriam se lhes falasse dos cinco dólares da véspera?

À entrada para a carrinha, ainda hesitei: como a tarefa da manhã tinha sido "a descer", devia dar uma gorjeta inferior à da véspera? Mas, esmagado pela culpa, logo me decidi: voltei a dar ao homem outra nota de cinco dólares. 

Sorriram-lhes os olhos e despediu-se com um forte e efusivo cumprimento de mão, sempre repetindo, enfático: "Portugaliya! Portugaliya!".

Por 10 dólares, a imagem do nosso país subiu, nesse dia, aos píncaros, nessa remota e pequena cidade da Ásia Central.

sábado, janeiro 11, 2020

PSD

Quem quer que ganhe no PSD, ficará sempre com mais de um terço do partido a jurar vingança e a intrigar no futuro. Além disso, a sombra que a já aguardada impugnação do ato eleitoral vai criar, ofuscará o brilho do vitorioso, em especial for Rio.

Quem se lembra de William Gilman?



Há dias, numa conversa com António Borga, um nome que os portugueses conheceram na televisão, veio à baila o nome de William Gilman, que ele conhecera em Londres, ao tempo que trabalhou no serviço português da BBC.

Aqueles que têm tempo de vida para usufruirem de alguma memória deverão recordar-se de uma voz, com um português com óbvio sotaque britânico, que, de Londres, por alguns anos, nos trazia as notícias da RDP.

Antes, Gilman, tinha trabalhado para o “Record” e foi correspondente da Anop, antecessora da Lusa. Escreveu também para o semanário “País” e, creio, terminou a sua relação jornalística com Portugal como correspondente do “Diário de Notícias”, em 1996. O Estado português condecorou-o em 1993.

Gilman tinha nascido em Portugal, em 1917, filho de um homem dos serviços de “intelligence” britânicos, colocado na respetiva embaixada, e de uma cidadã portuguesa. 

“Gilly”, como era conhecido pelos amigos, era uma figura suave, com um agradável sorriso, casado com Joan, que, curiosamente, muitas vezes o acompanhava nas suas atividades profissionais. Era filha de um jornalista britânico, H. G. Greenwall, autor de um livro sobre Portugal, “Our Oldest Ally”. 

Conheci William Gilman em Londres, ainda nos anos 80 e, mais tarde, quando fui viver para o Reino Unido, tornámo-nos amigos do casal. Estivémos por mais de uma vez na sua casa em Epson, no Surrey, e comemorámos com ambos e os seus amigos o seu meio século de casamento, num clube de golfe, para o qual ele me fez convite para ser sócio. O clube era de muito difícil admissão, ele tinha conseguido uma exceção para mim e, até hoje, tenho esperança de que a minha recusa em corresponder ao seu gesto tenha sido feita com uma gentileza à altura do mesmo. É que eu nem cartas jogo...

William Gilman (na imagem, à direita, tendo à esquerda Fernando de Sousa e ao centro Gilberto Ferraz) morreu em 2001, com 83 anos. Joan sobreviveu-lhe por escassos anos.

Cooperação e política externa


Proferi na quarta-feira, dia 8 de janeiro, na abertura do Seminário anual do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, a convite do respetivo presidente, uma intervenção sobre a cooperação para o desenvolvimento em face dos desafios da política externa portuguesa. O texto pode ser lido aqui

sexta-feira, janeiro 10, 2020

"Evasões"


A revista "Evasões" publica hoje o seu nº 250.

Trata-se de uma revista semanal com uma excelente qualidade de escrita e imagem, distribuída gratuitamente com o "Jornal de Notícias", à sexta-feira, e vendida separadamente nos restantes dias, por um preço extremamente acessível.

Sou um fã da "Evasões", confesso. Em especial, por nela escrever Fernando Melo, um dos mais sabedores críticos gastronómicos da nossa praça, cujas recomendações, de restaurantes e vinhos, nunca frustraram as minhas expetativas. Mas a "Evasões" tem-me ajudado a descobrir muito mais, nas minhas peregrinações pelo país.

Por alguns anos, eu próprio escrevi na "Evasões" uma modesta crónica de "gastrófilo". Depois, um dia, pedi escusa à minha "chefe", Catarina Carvalho, responsável pela revista, e saí discretamente de cena. O tempo não me chegava para tudo. Hoje sou apenas um leitor da "Evasões". Mas atento!

Um abraço de parabéns à equipa da "Evasões"!

Trump


Era uma vez, no Irão...

Agora que o Irão regressou aos títulos, recupero aqui uma pequena história diplomática.

Em junho de 2000, durante a presidência portuguesa da União Europeia, coube-me chefiar uma missão de “diálogo político” a Teerão. Da “troika” (já as havia…) que me acompanhava, faziam parte um diretor do Quai d’Orsay (a França iria suceder-nos na presidência, dias depois) e um representante da Comissão Europeia. A delegação iraniana era chefiada por um vice-ministro dos Negócios Estrangeiros.

Sabia-se que o diálogo com as autoridades do Irão ia ser difícil. Cabia-me colocar-lhes todas as questões que a União Europeia via como polémicas, desde os direitos humanos à observância de princípios democráticos. Temas como a perseguição de opositores e os presos políticos, bem como o do tratamento de minorias e dos estrangeiros, estavam na nossa lista. Eles tinham os seus próprios agravos.

Num certo ponto da agenda, o vice-ministro iraniano acusou um Estado membro da União Europeia, que não identificou, de estar a levar a cabo “atos de espionagem”, em articulação com inimigos do país, contra a segurança do Estado iraniano. Interrompi-o e pedi-lhe para identificar o Estado em causa, dada a gravidade da acusação. Disse-me que não o faria, “para não piorar ainda mais as coisas”. Na ata, deveria ficar a acusação, nos termos genéricos em que a formulara.

Reagi: ou ele identificava o nome do país, também para efeitos da ata da sessão, ou retirava a acusação. O “diálogo político” não podia prosseguir sem uma dessas opções. Sugeri que o intervalo da reunião, que estava previsto para mais tarde, tivesse lugar de imediato.

O ambiente, naquela sala do ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, toldou-se. A delegação iraniana saiu da sala de cara fechada. Os membros da “troika” perguntavam-me se tinha medido bem o risco de dramatização que estava a fazer. Eu disse que sim, mas, interiormente, interrogava-me se o meu “bluff” iria resultar (porque era disso mesmo que se tratava).

Minutos depois, o chefe da delegação iraniana reabriu a sessão dizendo que, com vista “a facilitar os trabalhos”, propunha que, da ata, não constassem as referências que antes tinha feito sobre o “tal” Estado membro europeu.

Desde o início, todos sabíamos que a acusação iraniana se dirigia ao Reino Unido, país com o qual, de há muito, Teerão tem um particular contencioso. Ora, o vice-ministro iraniano, meu contraparte na chefia das negociações, havia-me revelado, em conversa antes da reunião, que, no final desse ano de 2000, deveria ir para Londres como embaixador (o que realmente veio a acontecer).

Ao exigir a revelação do nome do país, eu tinha tido isso em conta. Se acaso ele mencionasse o nome do Reino Unido, e ficasse na ata ter sido ele quem lançara essa atoarda não provada, o governo de Londres nunca lhe daria “agrément”.

A vida diplomática também se faz com alguns truques.

quinta-feira, janeiro 09, 2020

Não vale tudo


O presidente dos Estados Unidos da América ordenou a liquidação física, em território do Iraque, de um chefe militar do Irão. 

Os EUA não estão em guerra declarada com o Irão, embora seja evidente, desde há muito, a sua hostilidade para com o seu regime. Se olharmos para trás, verificaremos que o derrube do líder iraniano que Washington tinha como seu aliado fiel, o Xá Reza Pahlevi, em 1979, iniciou um período de ininterrupta tensão entre os dois países. A invasão da embaixada americana em Teerão, nesse mesmo ano, por entidades iranianas dependentes das respetivas autoridades, espoletou naturalmente essa tensão, que nunca mais se desvaneceu e atravessou, em maior ou menor grau, todas as posteriores administrações americanas. Os EUA, a partir de então, passaram a apoiar quem se opusesse ao Irão, como foi o caso do Iraque, na devastadora guerra entre os dois países (1980/88). 

Os evidentes e reiterados esforços do Irão para obterem a arma nuclear mereceram sempre uma forte rejeição da comunidade internacional, em especial dos EUA, do mundo ocidental em geral e dos adversários regionais de Teerão. Dentre estes, Israel (que possui armas nucleares, sem se submeter ao controlo da AIEA) é aquele que, reagindo às constantes ameaças do Irão face à sua existência como país, anunciou já poder vir a atacar as instalações nucleares iranianas, se a construção dessa bomba estiver prestes a concretizar-se (Israel fez isso contra o Iraque, pelos mesmos motivos, em 1981). Um grupo de importante de países ocidentais, incluindo os EUA (administração Obama), fez entretanto um acordo diplomático com o Irão, que previa um controlo vigiado do seu programa nuclear. Com Trump, os EUA afastaram-se desse acordo.

O Irão, não sendo um país árabe, é um Estado muçulmano que segue e promove o shiismo, uma das duas grandes obediências religiosas muçulmanas. A outra, o sunismo, tem como principal expoente a Arábia Saudita (mas também a Turquia ou a Irmandade Muçulmana do Egipto, embora com uma orientação divergente). Há países, porém, de que o Iraque é talvez o caso mais importante, onde o shiismo e o sunismo coexistem, com implicações no respetivo equilíbrio político interno, sendo o Irão regularmente acusado pelos seus adversários de promover núcleos shiitas em vários outros países, muitas vezes com fortes implicações político-militares, como acontece com o Hezzbolah, no Líbano, ou com as forças hutis, no Iémen. 

O proselitismo shiita do Irão, nas suas expressões agressivas, e a sua obsessão com a arma nuclear converteram o país num “trouble-maker” da sociedade internacional. Com um regime autoritário sob uma liderança religiosa de traços medievais, o Irão é um país que se sente acossado pela sua vizinhança, adotando com regularidade um discurso jingoísta que torna difícil a interlocução diplomática. Mais recentemente, porém, por um interesse próprio que se conjugou com outros esforços internacionais, as forças de Teerão desempenharam um papel não despiciendo na luta contra o Daesh.

Se quisermos ser honestos, teremos de reconhecer que os EUA, com a sua agressão unilateral contra o Iraque, em 2003, foram, a grande distância, os principais culpados da desregulação securitária que se vive na região do Médio Oriente. Se algumas fortes tensões já ali existiam, a invasão do Iraque, levada a cabo sob pretextos deliberadamente falsos, conduziu ao estilhaçar daquele país, com as consequências que se viram.

Ao atuarem violentamente como agora fizeram, sem o menor mandato internacional, executando uma ação de guerra, uma liquidação seletiva de um líder militar estrangeiro, à revelia das autoridades do país que os “convidou” para ajudarem à sua segurança nacional, os EUA colocam-se, com total desplante, à margem da ordem internacional, arrogando-se direitos que negam a todos os outros. Todas as razões que possam ter contra o Irão enfraquecem-se com este seu comportamento, convidando à retaliação e arriscando uma escalada. 

Os Estados de bem lutam por princípios, desde logo, seguindo-os. Essa deve ser a sua diferença.

quarta-feira, janeiro 08, 2020

As lições da General Motors


Se olharmos as relações externas de Portugal, nos últimos 70 anos, incluindo as últimas décadas da ditadura e o regime democrático, constataremos que há uma única prioridade que permaneceu inalterada na nossa agenda nacional: a importância da relação transatlântica. O empenhamento na NATO e a relevância atribuída aos EUA mantiveram-se na lista prioritária de todos os governos portugueses, mesmo os mais “esquerdistas”. Posso imaginar o “entusiasmo” com que o primeiro-ministro Vasco Gonçalves terá ido à cimeira da NATO, em 1975, mas, para o que interessa, esteve lá e, ao que consta, não fez nenhuma diatribe contra a organização. E isso não aconteceu por acaso.

A situação geopolítica do nosso país, onde a questão das Lajes teve sempre forte relevância, e, ainda antes, os imperativos ligados aos equilíbrios da Guerra Fria, fizeram com que a NATO e os EUA passassem a ser um pano de fundo constante na nossa ação externa. A ênfase desse vetor no discurso político pode ter variado com os ciclos de governo, mas o essencial nunca foi tocado.

Aquando da segunda Guerra do Golfo, em 2003, o executivo português de então levou o seu zelo seguidista a um extremo caricato, ao colar-se ao “amigo americano”, que anunciava um deliberado infringimento das regras internacionais. Lisboa usou então o mais enviesado dos argumentos: “ou estamos com os Estados Unidos ou estamos com o Iraque”. Como se uma agressão ilegal, que viria a ser fautora de centenas de milhares de mortos e de um caos regional sem precedentes, pudesse ser “absolvida” apenas porque o Estado que a praticava era um nosso amigo tradicional. 

Mais recentemente, sob a presidência de Donald Trump, os EUA vieram a revelar um inusitado desprezo pelos aliados, criaram tensões no seio da NATO, provocaram fortemente os seus parceiros europeus, desprezaram com arrogância o mundo multilateral. Romperam mesmo um tratado laboriosamente feito com o seu acordo, que prevenia as possibilidades do Irão aceder à arma nuclear, cedendo às pressões de Israel. E, para facilitar a agenda eleitoral de Trump, o governo americano coloca agora o Médio Oriente, de novo, às portas de um conflito aberto, que, no passado, já nos brindou com o Daesh.

Há uns anos, um ignoto secretário de Defesa americano consagrou uma frase para a História anedótica: “o que é bom para a General Motors, é bom para os Estados Unidos”. Hoje, não sem alguma tristeza, pergunto-me: o que é (considerado por Trump ser) bom para os Estados Unidos é necessariamente bom para os seus aliados?

segunda-feira, janeiro 06, 2020

EUA/Irão


No Jornal das Oito da TVI, a comentar a tensão entre os Estados Unidos e o Irão. Pode ver aqui.

A casa do tio Óscar



Tenho uma imensa pena pelo facto da minha capacidade de “desconstrução” das coisas ser muito limitada. 

Contrariamente a uma amiga que, ao provar qualquer prato, consegue, no instante, identificar os componentes e condimentos utilizados na sua feitura, assumo-me como um perfeito “nabo” nesse domínio. O mesmo acontece nos vinhos, onde raramente sou dotado para conseguir notar os aromas e sabores que, com aparente facilidade, os enólogos ali descobrem, comigo numa inveja real face à riqueza daquele léxico específico, que tão bem arredonda as conversas numa mesa.

Mas o meu maior lamento, devo confessar, prende-se com os cheiros das casas. Trago na minha memória olfativa alguns odores que me remetem para locais quase sempre antigos, desde casas de infância a cenas da vida, espalhadas ao longo de décadas. Sou mesmo um inveterado colecionador desses marcantes aromas domésticos.

Hoje, ao entrar para o almoço num clube lisboeta de que sou sócio, neste caso o “Círculo Eça de Queiroz”, dei comigo a reconhecer por ali o cheiro da casa do meu tio Óscar, um militar que sempre vi na reserva e que já se foi desta vida há muito. Era casado com a tia Maria, irmã da minha avó materna, e foi uma das referências das minhas lembranças afetivas, de uma infância que guardei como feliz.

A casa deles era no Porto, na Ramada Alta, num primeiro andar com uma bela vista para a Boavista (se isto não for pleonasmo), que dali se via amplamente, de uma varanda traseira. Tinha um mobiliário clássico, com muitas madeiras e livros, tudo aquilo resultando num saudável conforto burguês, num sereno e pacífico ambiente. E, a envolvê-lo, havia um cheiro muito próprio, que me ficou para sempre.

Cheirava a quê? Sei lá! Talvez a cera, talvez a madeira, talvez a algumas plantas. Não sou, em definitivo, dotado de poderes de “desconstrução”, mas também não me parece que Jacques Derrida estivesse precisamente a pensar nos cheiros, quando acabou por consagrar cientificamente o conceito. 

A única coisa que sei é que o Círculo Eça de Queiroz, ao final desta bela manhã de janeiro, onde quase por acaso me deu para vir almoçar, após uma movimentada manhã de trabalho em três locais bem distintos de Lisboa, tinha hoje o mesmo cheiro da casa do meu tio Óscar. E isto é um elogio para o meu clube, note-se.

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...