sexta-feira, janeiro 02, 2015

O presidente

2015 será o último ano de Cavaco Silva como presidente da República. Não julgo que venhamos a ter quaisquer surpresas no tocante ao seu comportamento institucional, nestes meses que dele nos restam em Belém. A sua mensagem de ano novo assim o indica.

Todos os presidentes da República inaugurada com a Constituição de 1976 encaminharam os seus segundos mandatos na tentativa de deixarem uma marca própria. Independentemente das suas agendas políticas pessoais, do esquiço de auto-retrato para a História que todos procuraram deixar pendurado nas paredes de Belém, cada um, a seu modo, contribuiu claramente para a estabilização do regime e para o reforço da matriz funcional do cargo, deste semi-presidencialismo atípico que os nossos constituintes desenharam, com uma ambiguidade muito à portuguesa.

Cavaco Silva terminará a sua década de uma forma muito diferente. O seu segundo mandato foi uma incrível sucessão de "trapalhadas" - e estou a ser diplomaticamente eufemista ao escrever isto. Poder-se-á dizer que não foi ajudado pela crise financeira, mas o que o país já reteve, para sempre, é que o chefe de Estado teoricamente mais bem preparado para transmitir segurança a uma sociedade em quebra de confiança económica demonstrou, muito simplesmente, uma flagrante incapacidade para ser útil a Portugal. 

Quero com isto dizer uma coisa muito clara: a meu ver, Aníbal Cavaco Silva, pelo modo como geriu a função presidencial, pela maneira como se deixou enlear no que, agora iniludivelmente, se evidencia como uma subserviência à maioria que governa o país, deu sólidos argumentos a quantos entendem, como há semanas Pedro Bacelar de Vasconcelos defendeu, que, de futuro, deverá ser revista a Constituição por forma a ser o parlamento a escolher o chefe de Estado, como hoje acontece na Grécia, em Itália ou mesmo na Alemanha. Com efeito, Cavaco Silva, com o seu comportamento enquanto Presidente, mostrou que pode não fazer sentido continuar a eleger alguém por sufrágio direto, quando essa personalidade, em lugar de utilizar essa forte legitimidade para se colocar acima das forças políticas e representar o sentimento profundo do país, se torna num instrumento dócil das maiorias de turno, preocupado apenas em garantir uma saída airosa para o seu pé-de-página na História pátria. Embora defensor do sistema atual, creio que haveria vantagem em que o assunto fosse abertamente discutido, quanto mais não seja para evitar que o exemplo do atual presidente venha a contaminar a imagem futura da função presidencial.

Um dia, ao tempo em que era primeiro-ministro, Cavaco Silva teve a deselegância institucional de dizer que era preciso "ajudar o dr. Mário Soares a acabar o seu mandato (presidencial) com dignidade". Com sincera pena, como cidadão que acredita que o prestígio das instituições e dos seus titulares é um bem público precioso, temo que Cavaco Silva tenha arruinado já as hipóteses de ver aplicada a frase a si próprio.

quinta-feira, janeiro 01, 2015

"Dois, três, muitos Vietnam"


David Dinis, diretor do "Observador" desafiou onze pessoas para escreverem a propósito de eventos sobre os quais, em 2015, passarão algumas décadas. Coube-me lembrar o início da guerra do Vietnam, sobre o qual transcorrem 60 anos. Nesse curto texto, fiz um paralelo connosco nesse tempo:

"Em 1955, há precisamente 60 anos, no auge da Guerra Fria, começava o conflito do Vietnam. Portugal entrava nesse mesmo ano para a ONU, onde, de imediato, mergulhou no crescente calvário da defesa da sua política colonial. A guerra do Vietnam terminaria 20 anos depois, em 1975, com o Viet Cong a entrar em Saigão e a ridicularizar a América. Nesse mesmo ano, já com a Revolução de abril a todo o vapor, todas as colónias portuguesas se tornavam independentes.Voltemos a 1955.

A esquerda portuguesa, incluindo o PCP, estava então longe de ter um discurso anti-colonialista. Ele só surgiria depois da maturação das consequências da Conferência de Bandung e da formação da Tricontinental. Recorde-se que Norton de Matos e Cunha Leal, próceres da oposição a Salazar, foram orgulhosos “colonialistas”.

O início da experiência cubana, o aproveitamento hábil por Moscovo do movimento dos “não-alinhados” e a revolta angolana em 1961 conduziram à evolução do discurso da oposição à ditadura quanto às colónias. Entre nós, a simpatia pela luta do povo vietnamita viria a crescer em simultâneo com o espalhar da consciência anti-colonial. Marcou algumas universidades e meios intelectuais, tendo o anti-americanismo como forte sub-ideologia federadora. Os ventos do maio francês de 1968 fizeram o resto.

Pouco antes, Guevara defendera que eclodissem pelo mundo “dois, três, muitos Vietnam”. A História tirou-lhe entretanto a vida e viria mais tarde a trocar-lhe as voltas. O então Terceiro Mundo não se tornou comunista e até o “farol” soviético deixou de brilhar. A estupidez americana e a teimosia de Fidel suspenderam Cuba no tempo. O Vietnam vive unificado pelo capitalismo mais desenfreado. E as nossas antigas colónias são o que são."

Bom Ano !


quarta-feira, dezembro 31, 2014

A outra cidade

Estas épocas do ano levam-nos muitas vezes aos cemitérios. É uma forma de lembrar os que já foram e alimentar o sonho, impossível e virtual, de os termos connosco neste tempo ritualmente festivo. Nessas romagens, tenho sempre o cuidado de procurar não cultivar a tristeza, tentando avivar apenas os tempos alegres passados com as pessoas próximas que tenho espalhadas por aqueles espaços. Curiosamente, e no que me toca, não costumo sair deprimido dos cemitérios, depois dessas visitas ao passado. "Tu não te deixas apanhar muito pela nostalgia", disse-me uma pessoa, convencida que o faço por defesa. E, se calhar, tem razão.

Há dias, em Vila Real, dei um volta pelo cemitério de Santa Iria, o cemitério "novo", há muito criado para complementar o "velho" de S. Dinis, cujos limites de crescimento já nem recordo quando foram atingidos. Nunca tinha feito esta visita com muita atenção: em regra, dos cemitérios sai-se rapidamente e o frio da época estimula a isso. Com um belo sol de inverno, decidi passear pelo cemitério "novo". Foi então muito curioso reencontrar por ali imensas figuras da minha infância e juventude, comerciantes de cujas caras me lembrava à porta de lojas, caras que cruzei, por décadas, pelas ruas, cavalheiros e senhoras cujo nome muitas vezes desconhecia mas que, por dever de educação, sempre cumprimentava, quando, em pequeno, passeava com os meus pais. E quantos outros, menos "notáveis", estarão perdidos por tantas campas rasas sem nome! É a vantagem de se "ser" de uma cidade que já foi pequena, onde todos nos conhecíamos, quando de lá saí há 50 anos. O cemitério "novo" tem quase a idade da minha memória de Vila Real. Assim, por lá cruzei agora amigos que partiram cedo, descobri pessoas de cuja existência já nem me lembrava (e de cuja morte me não tinha sequer apercebido), pude relacionar parentescos e ligações familiares. Ah! e também apreciei a forma estética como os que por cá ficaram quiseram que os seus familiares ficassem consagrados nas pedras - uns sóbrios, outros agigantados face à imagem em vida. Foi um passeio muito interessante, por essa que é outra minha cidade.

terça-feira, dezembro 30, 2014

Fundação Mário Soares

Um jornal traz hoje, com ares de "escândalo", que o BES era um dos financiadores, através de mecenato, da Fundação Mário Soares. 

Esta informação, ao contrário do efeito pretendido, só atenua a má imagem que a gestão do BES havia deixado em mim e no país. Com efeito, utilizar a lei do mecenato para apoiar uma instituição com uma obra notável como aquela que a FMS tem levado a cabo, na promoção de importantes valores culturais e histórico-políticos, só contribui para relevar o sentido de responsabilidade social que terá orientado a política de mecenato do banco.

segunda-feira, dezembro 29, 2014

Suspeições

Não faço parte dos meus muitos iluminados compatriotas que dão por verdades definitivas as suspeitas sobre figuras públicas e por óbvios culpados os mais badalados investigados. "À la limite", para essa gente, o processo e o julgamento mais não são do um mero pro forma, destinado a quantificar a pena, uma tarefa que apenas tem como objetivo confirmar aquilo que o seu "bom senso" ou a vox populi já condenou.

Vem isto a propósito do caso dos submarinos. Um artigo de Manuel Carvalho no "Público" de ontem, recomenda ao Dr. Paulo Portas que saia da cena política, por virtude das suspeitas que se lhe terão colado à pele naquele processo. O jornalista em causa é extremamente qualificado, mas aquilo que hoje escreve situa-se, a meu ver, nesse limiar muito perigoso entre o "toda a gente sabe!" e a condenação no pelourinho populista. Não é um artigo digno, nem de Manuel Carvalho nem do "Público".

O caso dos submarinos é uma vergonha para a Justiça portuguesa, prova a sua imensa incompetência e expõe o país e as suas instituições ao ridículo internacional. Um processo que, na Alemanha, levou à relativamente rápida condenação de várias pessoas por provada corrupção, de que terão beneficiado incertos em Portugal, morre aqui na praia, por atrasos e prescrição, que acabam por ser um afrontoso insulto aos contribuintes, que desembolsaram as verbas que pagaram os submarinos, as luvas corruptas e todas as comissões a que tudo deu direito - parte das quais aterrou, equitativamente, nos bolsos de cada um dos ramos da família Espírito Santo, como ninguém hoje contesta.

Porém, o facto de nada ter sido provado, com o relator do despacho de arquivamento a deleitar-se com subtilezas estilísticas que fazem a delícia dos exegetas dessas pérolas de Pilatos, não autoriza ninguém a converter um suspeito público (ou mediático) em culpado. Pode haver - e eu julgo que há - muito boas razões para que o Dr. Paulo Portas seja afastado da titularidade do exercício das funções político-institucionais que exerce. Mas isso faz-se com um papelinho em que se coloca uma cruz, se dobra em quatro e se deita numa caixa. Até lá, dar por culpado o então ministro da Defesa ou quem quer que seja, só porque a Justiça se revelou incapaz e a voz pública o reclama é um ato impróprio da uma imprensa que se quer livre. A dignidade e o bom nome das pessoas não pode estar à mercê das insinuações e do diz-que-disse. A Justiça não funcionou? Regenere-se a Justiça!

Pergaminhos

Há dias, procurando na internet dados sobre uma determinada pessoa, fui conduzido, num cruzamento de dados, a uma estranha autobiografia de um antigo colega da carreira diplomática, com quem aliás julgo que nunca me cruzei. Essa figura viria a ter um final de carreira algo atribulado, a contas com a Justiça, que não lhe terá perdoado o facto de ter colocado no mercado alguns passaportes que tinha a seu cargo e que acabaram por surgir nas mãos de cidadãos estrangeiros, que lhos terão comprado por avultadas quantias. O diplomata em questão foi devidamente condenado e passou algum tempo na prisão. Foi uma das escassas manchas de uma profissão honrada que, em geral, é constituída por pessoas de bem, com elevado sentido de serviço público. Por isso, o seu nome é, simultaneamente, para lembrar tristemente entre nós e para esquecer em público, como farei aqui.

Falo disso hoje apenas para notar uma das perversidades da internet: quem ler o texto auto-elogioso assinado por aquele meu ex-colega, e não conhecer o vergonhoso final profissional que teve, é levado a pensar estar perante um funcionário qualificado, com uma carreira merecedora de encómios, tanto mais que ele recheia o texto de prosápias em que ninguém da profissão o reconhece. E, naturalmente, essa tal figura, que nem sequer sei se ainda é viva, não diz uma linha sobre o período negro da sua vida, embora gaste laudas a alindar o seu estatuto nobiliárquico. 

Este é um dos graves problemas do mundo informático: poder servir de veículo fácil à mentira e às fantasias. 

domingo, dezembro 28, 2014

Padecimentos

Quatro dos seis médicos que deveriam estar nas urgências do Hospital Amadora-Sintra, na véspera de Natal, faltaram ao serviço, com baixa médica. 

Quero aqui deixar uma nota de simpatia para esses distintos profissionais, que imagino terão ficado fortemente incomodados ao saberem que a sua ausência levou a atrasos no atendimento de cerca de 20 horas, mas, principalmente, pelo facto dos seus padecimentos físicos (embora eu não exclua de todo os psíquicos) lhes terem, com toda a certeza, arruinado as merecidas Consoadas. 

Não sei se a lei permite, mas gostaria de saber os nomes dos atentos e devotados colegas que lhes passaram os atestados para as baixas. 

Ah! E já agora, faço votos que não tenham uma recaída no dia 31 de dezembro. É que um azar nunca vem só!

A pressa da vida

Um dia consegui juntá-los a uma mesa da Gomes, na ingénua crença de que, por tê-los a ambos como amigos, haveriam de se dar bem. Erro crasso. O José cedo arvorou a machista arrogância vilarrealense e sentiu-se deslocado no registo intelectual das referências em que a conversa descaía. Logo que pôde, abalou para a zona do balcão mais próxima da máquina de cortar fiambre, posto de observação onde há décadas se sentia confortável. Ao que me lembra, o Sérgio nem lhe havia passado cartão, absorvido que estava no chamamento constante de conhecidos, saltitante no seu gesticular frenético, sublinhado pela voz anasalada que enchia a sala.

Há mais de quinze anos, pelo Natal, desapareceu tragicamente o Sérgio Moutinho. Neste último Natal fomos, uns poucos, despedir-nos do José Araújo, traído pelo coração agitado. Deixámo-lo em Santa Iria, perto do Sérgio. Que mais havia de comum entre ambos, à parte a circunstância – irrelevante para o leitor – de serem ambos meus amigos ? A pressa da vida.

O Sérgio era um furacão em pessoa, a ousadia chocante no comportamento e na palavra, a incessante procura da afectividade, sem baias nem temores. Na minha memória, não consigo ter dele um retrato estático, vejo-o no movimento de um filme, a chegar ou a partir, sem tempo para paragens, sem paciência para ouvir o irrelevante e o tonto, fosse ele ideia ou pessoa. Tinha a pressa do mundo, a vertigem de viver intensamente, no fio da navalha – como a navalha que haveria de matá-lo numa noite trágica na Anatólia. 

O José Araújo parecia ser o seu oposto. Pousava pelas esquinas da vida com um fácies vincado e grave, onde às vezes aparecia um esgar equívoco, sempre apoiado na frase curta e no gesto cortante. Mas quem o conhecia sabia que naquela cabeça, com o cabelo branco a subir sobre a samarra, vivia um adolescente à procura incessante de um segundo futuro, que ele sentia cada vez mais atolado nas complicações do presente. A vida do José foi a da viagem adiada, a tentativa de fuga a uma rotina que teimava em lhe atar as mãos, a mitificação de mundos ideais onde, chegado que fosse, tudo seria fácil, tudo correria a preceito para a realização dos seus sonhos, uma espécie de Pasárgada, logo ele que nunca lera Manuel Bandeira. 

Embora muito diferentes, com ambos eu tendia a cometer o erro pateta de os tentar trazer à minha leitura da realidade, fazendo o elogio da serenidade, pregando a necessidade de ponderação e dizendo-lhes para pararem um pouco para pensar. O Sérgio achava-me, cada vez mais, um burguês acomodado. O José desconcertava-me, dando-me sempre razão de forma irónica, intimamente ciente que eu jamais o compreenderia.

A minha última discussão com o Sérgio foi sobre o seu - para mim, excessivo - empenhamento em favor da causa curda, questão que, para alguns, poderá não ter sido alheia à sua morte violenta na Turquia. Recordo-me de o ter alertado para os erros profissionais em que poderia estar a incorrer, pedi-lhe a calma e a moderação que eu, no fundo, sabia que ele nunca iria ter. Ria-se de mim e dos meus cuidados, como ele sabia fazê-lo, sem qualquer acrimónia, na certeza de que a nossa amizade era intocável.

O José falou-me, há meses, no seu projecto de ida para o Brasil. Era o renascer da sua ambição de criar um museu de automóveis antigos, ideia que sempre me pareceu desenhar de forma irrealista, como tantas outras iniciativas que eu lhe ouvira no nosso passado de longa convivência. Tentei mostrar-lhe os riscos de uma deslocação sem preparação cuidada, dos imponderáveis de um negócio sem apoios sólidos. Reagiu com impaciente complacência, com um “pois, mas assim ninguém chega a sítio nenhum!”. Agora, dizem-me, tinha já viagem marcada e afirmara tencionar procurar-me, quando chegasse ao Brasil.

Hoje pergunto-me, simplesmente: que direito temos nós de tentar atrasar a pressa dos sonhos que fazem as vidas? 

(Publicado no “Notícias de Vila Real” em 28.12.04)

O tialecto

Tenho umas amigas e uns amigos que vivem encafuados no "politicamente correto" do léxico social LL (Lapa-Linha), para o qual alguém descobriu há uns anos a fabulosa designação de "tialecto". Encanito vivamente com esses vícios de casta e passo o tempo a trocar-lhes as voltas. E faço isso, muitas vezes, de propósito. Deteto-lhes no olhar o desapontamento (será a pena?) por eu teimar em não os acompanhar nessa maneira "bem", isto é, não "possidónia" (eles nunca dizem "pirosa") de dizer as coisas. Outros devem pensar lá para com eles: um embaixador a falar assim... foi no que deu aquela coisa do 25 de abril! (ou "o sinistro vinte e cinco do quatro", como referia sempre um amigo desaparecido, a quem a data nunca entusiasmara).

Nesse mundo, não se diz "prendas" mas sempre "presentes", foge-se ao satânico "vermelho" (que "finamente" se pronuncia "vermâlho", tal como "joâlho" ou "espâlho", mas talvez abram uma justificada exceção para "Coelho") e diz-se "encarnado", uma "mala" ou uma "bolsa" de mão é sempre e só uma "carteira", nunca se vai a uma "tourada" mas frequentam-se "corridas (de touros)", jamais uma bola é batida num "campo de ténis" mas sempre num "court", nada se pendura numa "cruzeta" mas tudo num "cabide", não se vai ao "quarto de banho" mas à "casa de banho", não se comemora um "aniversário" mas os "anos", como não se vai a um "funeral" mas a um "enterro", não se habita uma "vivenda" ou mesmo uma "moradia" mas sempre uma "casa", não se tem um cisco no "olho" mas sim na "vista", uma "piquena" (nunca, jamais!, uma "pequena") não põe batom nos "lábios" mas sempre na "boca", nada é "negro" mas apenas "preto", não se anda de "automóvel" mas de "carro", ninguém se despede com um "tchau" mas com um "adeus", não se põe "pomada" nos sapatos mas "graxa", não se diz "a minha mãe" mas sempre e só "a mãe", não se ouve música na "rádio" mas sim na "telefonia", vai-se à "discoteca" mas à "boîte" só às escondidas, ninguém se "aleija" só se "magoa", não se veste um "robe" mas um "roupão", para lavar as mãos é foleiro falar em "sabonete" mas não em "sabão", nunca se referem os "cortinados" mas só as "cortinas", uma cor nunca é "lilás" ou "violeta" mas simplesmente "roxo" e só um "brega" pronuncia "sanita" em lugar de (e apenas quando necessário) "retrete". 

"Tá ver?! É fácil!", explicam elas, com aquela rouquidão que, por um mistério traqueio-social (há quem diga que pode ser efeito dos gelados do Santini), algumas "piquenas bem" adquirem, logo a seguir a Paço d'Arcos - a doutrina divide-se, mas eu defendo, há anos, que é no Alto da Barra que começa a verdadeira fronteira, que se reproduz até uma linha muito irregular, que vai da Malveira da Serra ao Vassoureiro.

Quem se descair e deixar cair, num chá na Garrett do Estoril, um desses impronunciáveis termos, e assim não cumprir esta espécie de "acordo ortográfico social", passa a ser olhado como alguém fora da tribo, sujeito a uma exclusão fria do grupo. Como quem, como eu, teima sempre em dar às "piquenas" dois beijinhos. Na Bélgica e na Polónia dou mesmo três...

(Nota: a bibliografia recomendada para este tema, diz quem sabe, são as obras completas de Margarida Rebelo Pinto, que a Gallimard, por pura "caturreira", ainda não colocou na "Pléiade")

sábado, dezembro 27, 2014

Molinhos

Na minha infância, em Viana do Castelo, na noite de Consoada em casa da minha avó paterna, as prendas eram quase sempre muito práticas: meias, camisolas, pijamas e outras peças de roupa. Lembro-me bem do desapontamento que sentia quando olhava o papel de embrulho e notava que era do "Eugénio Pinheiro", uma loja de roupa na rua da Picota. No dia seguinte, viajava-se para Vila Real, onde estavam os meus avós e tios maternos e "vingava-me": aí, as opções, em matéria de presentes, eram bem mais lúdicas e quase sempre eram apenas brinquedos.

Há dias, ouvi um lamento curioso de uma criança que se queixava à mãe de que só lhe davam "presentes molinhos". Como eu a compreendi...

Balanços


Durante vários anos, fui um ávido consumidor dos "balanços" que são feitos pela comunicação social, nos finais de ano. Partia do princípio que isso me ajudava a recuperar informação que, por uma qualquer razão, me havia escapado durante os doze meses precedentes. Lia assim com atenção os trabalhos de síntese dos jornais e revistas, e cuidava em não perder as compilações televisivas - sobre política, personalidades, cinema, arte, livros ou música. Nos "bons tempos", cheguei a guardar em pastas, como fanático da recolha informativa que sempre assumi ser, alguns desses sumários escritos de factos e eventos.

Não consigo datar o momento em que "deixei cair", por manifesta falta de interesse, esse tipo de informação. Só sei que, nos dias de hoje, nem sequer passo os olhos por esses apanhados de factos e notícias que a comunicação social anualmente ainda não dispensa, embora me pareça que com um entusiasmo cada vez mais reduzido. No meu caso, essas páginas e esses programas televisivos ignoro-os em absoluto. Nem sequer tenho curiosidade em tentar interpretar os critérios seguidos, quase sempre identificadores de opções editoriais subliminares, em que seria instrutivo reconhecer.

Dou-me conta que o mesmo me ocorre com os anuários. A partir de inícios dos anos 60, adquiria com regularidade o "World Almanac and Book of Facts", um calhamaço americano, vendido então a preço muito acessível (lembro-me que custava menos de dois dólares) onde constava tudo, desde fichas de países a todo o tipo de records, bem como listagens das coisas mais inconcebíveis. Com algumas pontuais "recaídas", deixei-me disso nos anos 80 mas, quase em sequência, passei a adquirir, sem falha, os magníficos "Yearbook" da "Encyclopaedia Britannica", volumes caros mas do melhor que já vi editado. Porém, também estes, a partir de certa altura, deixaram de me interessar e jazem hoje sem a menor consulta, ocupando largo espaço (tal como as dezenas de volumes da própria "Britannica", somados aos ainda mais numerosos livros da "Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira" e suas atualizações) nas minhas estantes. 

A que se deverá este desinteresse por estes mananciais de informação? Pode haver outras explicações plausíveis, derivadas de qualquer alteração de prioridades, que me estejam a falhar. Porém, a simples conclusão pessoal a que cheguei é que a razão essencial dessa minha mudança de atitude só tem um nome: Google.

sexta-feira, dezembro 26, 2014

Adriano de Carvalho

Naquele tempo, antes de Schengen, chegados a Lisboa de avião, tínhamos de preencher aqueles irritantes papelinhos de entrada, com identificação pessoal e número do passaporte. Eu vivia ainda no encantamento "maçarico" de ter um passaporte diplomático (azul, de carneira, com os dados insertos à mão, com a letra magnífica de uma senhora do Protocolo). Antes da aterragem na Portela, comecei a preencher a ficha. O cavalheiro ao meu lado, com quem viajara desde Genebra, acompanhado de um imensa família, nessa véspera de Natal de 1977 (eu vinha da Líbia), dedicava-se à mesma tarefa e tinha um passaporte idêntico. Olhámos um para o outro e apresentámo-nos: ele era o embaixador Adriano de Carvalho, nosso representante permanente junto das Organizações Internacionais, em Genebra.

Adriano de Carvalho era um nome consagrado na carreira. Especialista em questões multilaterais, tinha um historial de grande negociador. Três anos depois, voltaria a encontrá-lo em Oslo, quando por ali foi por questões da EFTA, a acompanhar o ministro português do Comércio. Tinha uma figura avantajada, um ar impositivo mas cordial, um à-vontade e uma autoridade profissional com que dominava claramente a delegação portuguesa. Ao que às vezes recordo, por uma imagem que guardo da ocasião, tinha o vício da fotografia. 

Passaram-se muitos anos. Cheguei a Brasília em 2005. Adriano de Carvalho saíra do cargo de embaixador no Brasil quase 20 anos antes. E, no entanto, não obstante muitos qualificados colegas que lhe sucederam e me haviam antecedido nesse posto, ele era, de longe, aquele de que mais pessoas ainda falavam, que havia deixado uma marca de qualidade e prestígio associado ao nome de Portugal. Fora, aliás, o primeiro do escasso número de portugueses a quem a Universidade de Brasília tinha atribuído um doutoramento "honoris causa". Quando saí daquele posto, tive um grande gosto em oferecer-lhe um livro que aí publiquei sobre os meus quatro anos no Brasil, que me agradeceu com grande amabilidade.

Leio agora, pelos jornais, que o embaixador Adriano de Carvalho faleceu, neste Natal. Ficará na história do Ministério dos Negócios estrangeiros como um grande servidor público, frontal, exigente, mas de extrema competência. Fazem falta ao serviço diplomático português muitas figuras do seu calibre. À sua família, deixo uma mensagem de grande respeito e pesar. 

A propósito de Brasília

Já tive esta discussão mil vezes.

De novo, há dias, ouvi a alguém: "Não gosto de Brasília. Não gosto daquela ideia orwelliana que Niemeyer tem do urbanismo, de organizar a cidade em espaços estanques, querendo "controlar" a dinâmica humana. Aquilo é uma forma de estalinismo, é produto do facto de Niemeyer ser comunista, de ter um espírito de "engenheiro social". Niemeyer pode ser genial, mas não consegue ultrapassar, por vício ideológico, o racionalismo extremado que o levou a desenhar uma distribuição dos espaços que é contrária à natureza. Olhando para as "asas" de Brasília, nota-se que aquilo é produto de alguém que, como Niemeyer, não tem nenhum amor à liberdade, que usa a autoridade do seu risco para impor um modo de distribuição das pessoas pelos espaços. Volto a dizer: Niemeyer é um grande arquiteto, mas tem a alma de um ditador social."

Quantas vezes já ouvi isto, dito de forma mais ou menos sofisticada. E, no entanto, Oscar Niemeyer, o tal arquiteto genial, não teve, contrariamente à mitologia popular, nenhuma influência no desenho espacial da capital brasileira.

Chamava-se Lúcio Costa o também genial arquiteto que "inventou" Brasília, que desenhou o "Plano Piloto" da cidade, vencedor do concurso aberto para o modelo da nova capital. Coube a Niemeyer, que tinha sido seu aluno, desenhar os edifícios que são a imagem de marca da cidade (a catedral, os ministérios, o congresso, o palácio do Planalto, o palácio da Alvorada e tantos outros), "plantando-os" nos espaços que Lúcio Costa definiu. Pode hoje dizer-se que a projeção das obras de Niemeyer acabou por abafar, no plano internacional, o papel de Lúcio Costa. Mas o seu a seu dono! E, já agora, se é possível encontrar uma raíz teórica no traço organizativo da cidade, ele está no urbanismo funcionalista de Le Corbusier e na "carta de Atenas". E, para esta escola arquitetónica, contribuíram muitas influências, sendo que o racionalismo socialista é apenas uma delas.

Mas esta é uma discussão perdida, como já concluí.

(Deixo uma fotografia de Lúcio Costa. Pode ser que contribua para que o seu desconhecimento diminua, pelo menos junto dos meus amigos.)

quinta-feira, dezembro 25, 2014

O sinaleiro e o Natal


O Porto decidiu agora, como animação sazonal, colocar um sinaleiro junto à ponte D. Luiz. 

Sempre fui um fã dos "cabeças de giz", cuja avaliação dos fluxos de trânsito será sempre muito mais racional do que a de qualquer semáforo. Contudo, entendo bem que, nos dias de hoje, não se possa "desperdiçar", com regularidade, a utilização de polícias nessas tarefas. Mas acho importante, porque fazem parte da iconografia das cidades, não esquecer figuras como o sinaleiro Inácio, por alguma razão conhecido como o "bailarino", que encantava a cidade de Lisboa com a sua coreografia.

Ainda antes da 2ª guerra mundial, o Automóvel Clube de Portugal lançou, com apoio de algumas empresas, uma campanha nacional intitulada "Natal do Sinaleiro", que se tornou muito popular nos anos 50 e 60, com o apoio do "Diário de Notícias" e de "O Século". Tratava-se de mobilizar a afetividade pública face a esses agentes da ordem rodoviária. Os automobilistas eram estimulados a deixarem prendas junto dos seus sinaleiros favoritos. As ofertas chegavam a ser porcos, cabritos, sacos de batatas, garrafões de vinho, azeite, diversos outros produtos alimentares e até dinheiro!

Fica aqui uma foto desses outros tempos, no Cais do Sodré.

quarta-feira, dezembro 24, 2014

Boas festas !


A bica de 24


O local ainda existe, em Vila Real, mas tem hoje outro nome. Na altura, era o Café Imperial, no Cabo da Bila (leia-se com "bê"). Era um espaço sem nenhuma graça. Na minha juventude, nunca a nenhum de nós passava pela cabeça frequentar o Imperial. Era "longe", o ambiente era inconfortável e, acima de tudo, tinha um dono sempre com cara de poucos amigos, o Lima. Constava que, de quando em vez, tinha altercações com clientes, que chegavam a extremos físicos violentos. Note-se que o tal Lima, na sua rudeza, era simultaneamente um verdadeiro génio da estética: desenhava a primor as passadeiras de flores que se faziam pela Páscoa, numa rua vizinha, e foi o responsável por um mítico Cortejo Luminoso, que a cidade organizou no início dos anos 60.

Mas nem por isso o Imperial deixava de ser uma "no go area". Com uma única exceção, em todo o ano: no dia 24 de dezembro. Nessa noite, o Lima, que se dizia que era comunista, fazia questão de manter o café aberto, para quem se aventurasse a uma bica profissional depois da Consoada. Por muitos anos, foi o único café aberto na cidade. Para ele convergia, nessa noite, uma fauna heteróclita - de solitários friorentos, de esquerdalhos assumidos, de irreverentes empedernidos e de quem mais calhasse. No meu caso e de gente da minha geração, a sortida era apenas uma benévola manifestação de rebeldia. O Lima olhava-nos a todos, irónico, ciente da excecionalidade oportunista da visita de todo aquele pessoal, que ali desaguava, única e exclusivamente por falta de opção para a bica, a qual, na ocasião, se pedia "com cheirinho" de bagaço, para afastar as constipações. Ah! e lembro-me que o café era péssimo! No gelo do ambiente (o Lima não usava aquecimento), sobressaíam pelas mesas samarras e cachecóis, por entre nuvens de fumo de tabaco, que enchiam o Imperial nessa sua singular noite de glória. O Lima vingava-se, fechando às 11 e meia, o que deixava desasados por meia hora os episódicos clientes que tinham ainda a intenção de ir à Missa do Galo, um pouco mais acima, a S. Pedro. O que ele se deveria divertir, ao vê-los, a "encher" a meia hora, batendo as botas para aquecer, pelo desamparo frígido do Cabo da Bila (com "bê").

Num dos anos, numa noite de 24 de dezembro, o Imperial fechou. O Lima desapareceu. Não tínhamos para onde ir! Surgiu a informação de que, para os lados da estação, estava "uma coisa aberta". Lá fomos nós, pela ventania da ponte, beber uma bica à longínqua rua da Madame Brouillard, cujo nome rimava a preceito com a noite. Nos anos seguintes, os locais "hereges" foram mudando e nós, já motorizados, podíamos procurar alternativas nas redondezas. Num Natal "trágico", em que a cidade mais parecia o Kolditz, tivemos de ir até Escariz para encontrar "uma coisa aberta" - uma tasca atulhada de bêbados, de um emigrante regressado da Itália. Noutro, surgiu uma "venda" imunda com café, em Abambres. Depois, com o tempo, Vila Real foi-se dessacralizando. Por dois ou três anos, a noite de Consoada terminava num tal "Alibabá", um espaço recente, com uma dona de belos olhos e um café aceitável. 

Hoje, tudo mudou, para bem melhor. Nestes dias 24 de dezembro, aqui por Vila Real, é um regabofe: já só falta ver o Afonso, na Pastelaria Gomes, a servir bicas com "cristas de galo"...

terça-feira, dezembro 23, 2014

A um amigo

Este post é dedicado a um amigo com o qual, ao longo do último ano, pensei várias vezes ir almoçar mas nunca o fiz, a quem, em mais de uma ocasião, pensei telefonar e acabei por não o fazer, junto de cuja casa passei num sábado à tarde e não toquei à porta, para irmos tomar um café e charlar um pouco. Um amigo que, entretanto, soube que esteve adoentado mas que acabei por não contactar, a quem sucederam alguns problemas familiares mas a quem eu, convencido de que não lhe poderia ser útil, acabei por não dizer nada. Ah! e a quem me esqueci de telefonar no aniversário.

Não vou dizer aqui o nome desse amigo - ou dessa amiga - que deve estar um pouco desiludido comigo. Tem muitos nomes esse amigo ou essa amiga. Só eles sabem quem são. Para eles e para elas, aqui fica a minha lembrança amiga neste Natal.

Pousadas

O vento das privatizações sopra a todo o vapor. Faltam escassos meses para o termo do mandato deste executivo, mas a vontade de “passar a patacos” tudo o que cheire a público parece fazer parte do caderno de encargos de quem ainda dirige este país.

Fala-se agora, com renovada insistência, na privatização integral das Pousadas de Portugal. Declarações oficiais mostram essa disponibilidade de alienar o capital das Pousadas que ainda estava em mãos públicas.

As Pousadas foram uma criação do Estado, em 1940. Desde então, foram criadas 59 unidades, das quais só restam 35, uma delas no Brasil. (Escrevo com a “autoridade” afetiva de quem pernoitou em 49 dessas unidades). As Pousadas destinavam-se a fomentar o turismo e o conhecimento de zonas mais remotas do país. Tiveram, durante muito tempo, preços “políticos” baixos, chegando a haver a regra de não se poder pernoitar mais de três noites seguidas na mesma unidade. O Estado desenhou e construiu os edifícios, ou adaptou com elevados custos monumentos históricos, e manteve sempre as Pousadas – criadas à imagem dos Paradores espanhóis – como propriedade pública. Inicialmente, era a própria Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais que equipava as Pousadas, recheando-as com obras de arte onde se gastou muito dinheiro dos contribuintes e que constituem hoje um riquíssimo património, que se espera esteja bem inventariado e preservado.

Depois de uma experiência de gestão através de uma empresa pública, foi decidido abrir as Pousadas a um concessionário privado, por um período limitado de tempo. Neste entretanto, desde a concessão, como evoluíram as Pousadas? O serviço piorou em muitas unidades, que sofreram drásticos cortes no pessoal e, o que é bem mais grave, foram encerradas ou “franchisadas" unidades clássicas da rede, edifícios de elevado valor arquitetónico, algumas das primeiras unidades criadas logo após 1940. Por virtude destes encerramentos, foram retiradas algumas unidades hoteleiras importantes a certas zonas do país e, com essa alienação, perdeu-se para sempre um património de grande valor simbólico e sentimental.

Não terá sido por acaso que, à época, foi feita uma concessão não uma alienação da rede. É porque as Pousadas cumprem também um serviço público, elas não são uma mera cadeia de hotéis. Algumas Pousadas podiam ser menos rentáveis do que as outras, mas esse era o preço que o concessionário teria de suportar por ter herdado uma marca de prestígio e uma rede fabulosa de edifícios públicos, de onde retira fortes lucros. Essa era também a contrapartida para que novas e ainda mais rentáveis Pousadas pudessem continuar a ser instaladas em outros espaços e edifícios públicos, como se diz agora que vai ocorrer no Palácio Foz.

As Pousadas fazem parte da nossa memória patrimonial. Não se pode pedir a um concessionário que com elas perca dinheiro, mas o Estado tem a obrigação de garantir que os bens públicos – patrimoniais e morais – são objeto de uma gestão equilibrada que salvaguarde sempre o interesse coletivo.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

Maurice Duverger


Acabo de ter conhecimento de que morreu Maurice Duverger, aos 97 anos. Confesso que não tinha ideia de que ainda fosse vivo. 

Consagrado constitucionalista francês, os seus trabalhos sobre os partidos políticos e a V República, bem como os seus manuais académicos dedicados à ciência política e direito constitucional, educaram várias gerações. Duverger tinha o grande mérito da clareza de escrita, que não afetava o seu elevado rigor conceptual. Teve uma considerável influência em Portugal, nos anos 70, ao tempo em que o debate constitucional português estava no auge. Mas também sempre teve por cá os seus detratores.

Por razões académicas e políticas, Duverger foi um autor que li bastante. Tenho ainda imensa coisa escrita por ele e, há meses, ao arrumar livros para seguirem para o meu espólio na Biblioteca de Vila Real, deparei com o 2º volume do seu clássico "Institutions politiques et droit constitutionnel", editado pela PUF na famosa "Thémis", dedicado ao sistema político francês. E lembrei-me do instante em que o comprei (tenho uma forte memória da compra dos meus livros).

Um dos meus hábitos, nas tardes lisboetas de muitos sábados, entre 1969 e 1973, era visitar a "Livrelco", uma cooperativa livreira universitária situada num 1º andar de uma transversal à avenida da República. Tal como já acontecera no Porto, com a congénere "Unicepe", eu era sócio da "Livrelco", o que me permitia adquirir livros com algum desconto. Por lá passava com alguma regularidade, à cata das novidades, portuguesas ou estrangeiras, que estivessem ao alcance da minha bolsa de então.

Numa dessas tardes, embora o preço fosse elevado, decidi-me a comprar o 2º volume da obra de Duverger que antes referi. A evolução do sistema político francês era um assunto que sempre me fascinara e achei que ganharia muito em ler o que o politólogo escrevera sobre ele. 

Descia eu as escadas da "Livrelco", talvez com a intenção de me ir sentar a apreciar o livro na esplanada da "Granfina", ali próxima, quando me cruzei com um colega e amigo, que subia para a livraria. Falámos brevemente e mostrei-lhe, orgulhoso, a minha aquisição, aliás bem cara. Detetei alguma preocupação na sua cara. Perguntou-me se havia por lá mais algum exemplar do volume. Disse-lhe que tinha a ideia de que era exemplar único. O fácies dele cerrou-se ainda mais. "Que chatice!", disse. "Porquê?". inquiri. Olhando para os lados, não fosse alguém ouvir, confessou-me: "É que, na semana passada, "saquei" de cá o primeiro volume; hoje, vinha "sacar" esse..."

Não sei se foram apenas os "saques" que fizeram a "Livrelco" entrar numa crise, um ou dois anos depois, obrigando a uma intervenção das Associações de Estudantes, que ocuparam os respetivos corpos gerentes. Fiz parte dessa lista e achei imensa graça ao facto daquele meu amigo, também apaixonado pela obra de Duverger, mas cujas obras adquiria por "saque", integrar o ... Conselho Fiscal!    

segunda-feira, dezembro 22, 2014

Jardim


Está a chegar ao fim a era madeirense de Alberto João Jardim. Para alguns com alívio, para outros com nostalgia.

O Portugal democrático teve de conviver com este notório fenómeno político, sempre imprevisível e incontrolável, gestor eficaz de uma permanente chantagem face ao poder lisboeta, que "toureou" (a palavra é a que acho mais adequada) com maestria, mesmo que ele fosse da sua própria cor política, num jogo ultra-autonomista que flirtou q.b. com o separatismo, sempre que achou adequado manejar esse fantasma. Jardim construiu na Madeira um modelo de governo com traços sul-americanos: keynesiano na fórmula, autoritário no procedimento, com o serviço público nas mãos da política, frequente desrespeito pelos direitos democráticos dos adversários, muitas vezes no limiar do estrito cumprimento dos cânones jurídicos mínimos. Lisboa acobardou-se sempre perante a Madeira, como que considerando o seu bizarro regime como politicamente inimputável. Tendo como finalidade absolvidora a obra que ia fazendo, deu espaço para que prosperassem à sua volta, com laivos de ascensão nepotista, "to say the least", figuras de baixo jaez, seus fiéis escudeiros e executores. Sejamos claros: não foi politicamente saudável aquilo que se passou na Madeira nas últimas quatro décadas.

A Madeira de hoje, depois de Jardim, não se compara à que ele herdou? Claro que não, mas este tipo de juízo é sempre ilusório, porque nunca poderemos medir o que teria acontecido se outro tivesse sido o modelo de governo da ilha, se a Madeira tivesse sido servida por um líder de diferente natureza, por exemplo, similar àqueles que dirigiram, também com eficácia e menos conflitualidade, os Açores.

Agora que a minha experiência política e diplomática faz já parte do passado, posso revelar que, no plano pessoal, estabeleci, de há muito, uma relação de grande cordialidade com Alberto João Jardim. Esse entendimento foi iniciado nos tempos europeus, nomeadamente na nossa "guerra" comum em defesa dos direitos particulares das "regiões ultraperiféricas", um dossiê a que me dediquei com grande afinco, durante alguns anos. O facto de Portugal ter sido o principal e reconhecido responsável, em 1997, na negociação do Tratado de Amesterdão, pela criação da primeira base jurídica em tratados europeus que viria a permitir a mobilização orçamental para aquele tipo de territórios valeu-me fortes louvores pessoais de Jardim, que também contou com o nosso forte empenhamento nos esforços necessários para obter as verbas necessárias à extensão do aeroporto da Madeira. Ao longo dos anos, da parte de Alberto João Jardim, só recebi atenções e manifestações de simpatia, o que não me coibiu nunca de manter uma visão muito crítica sobre o modo como politicamente dirigiu a Madeira.

Um simples episódio pode ajudar a compreender a nossa relação. Um dia, eu combinara com Alberto João Jardim juntar, num almoço em Bruxelas, os membros portugueses ao Comité das Regiões que, por uma qualquer razão, ele à época coordenava. A data foi fixada com grande antecedência, mas eu tivera de me deslocar à Irlanda na véspera, onde fora obrigado a pernoitar. Assim, saí de Dublin bem cedo e, via Londres, consegui chegar a Bruxelas ao final da manhã. Entrei no restaurante combinado (creio que era o "Au Vieux Saint Martin", no Petit Sablon), com mais de meia hora de atraso face à chegada dos meus convidados. Alberto João Jardim permitiu-se deixar cair uma nota irónica sobre esse meu atraso. Encaixei e, com o decorrer do almoço, fiz menção ao percurso que fizera nessa manhã. Notei que, num instante, ele se apercebeu do esforço que eu tivera de fazer para cumprir aquilo a que com ele me comprometera e me disse, sinceramente penitenciado: "Peço-lhe imensa desculpa, não tinha entendido o trabalho que teve para poder estar aqui agora" E mais surpreendido ficou ainda quando lhe revelei que, logo que acabado o almoço, estaria um automóvel à minha espera que me iria levar à Alemanha, a Petersberg, onde nessa noite eu acompanharia António Guterres a uma reunião europeia que se anunciava decisiva. Jardim "acordou" para o que ouvia: "Mas, então, veio a Bruxelas apenas para estar neste almoço de trabalho connosco?" Ao confirmar-lhe que sim, o presidente do governo regional da Madeira terá finalmente entendido que o "sinistro" governo socialista do "continente" tinha, afinal, um sentido de Estado bem maior do que ele pudera supor.

Não sei o que Alberto João Jardim vai fazer da sua vida, depois de sair da Quinta Vigia. Com a maior sinceridade, desejo-lhe todas as felicidades pessoais e que goze uma boa reforma, muito embora esse conceito jogue menos bem com um homem como ele.

domingo, dezembro 21, 2014

Marcelo "par lui-même"


Ouvir o comentador Marcelo Rebelo de Sousa pronunciar-se sobre a possível candidatura do político Marcelo Rebelo de Sousa às eleições presidenciais é uma das originalidades da vida nacional. Há minutos, ao assistir a mais um episódio da saga "Marcelo comenta Marcelo", lembrei-me de uma historieta que aqui já contei um dia e que hoje me apetece recordar.

Uma tarde, em Paris, Eduardo Lourenço apresentava uma conferência de Marcelo na delegação da Fundação Gulbenkian. E saiu-lhe esta tirada lapidar: "O Marcelo é uma figura que, desde há vários anos, está como que numa janela a fazer comentários sobre o país que passa na rua, lá em baixo, E, por vezes, nessa mesma rua passa também o próprio Marcelo Rebelo de Sousa, sobre o qual, com naturalidade, ele também se pronuncia".  

Trieste


Estou a escrever, para uma revista, um texto sobre Trieste, uma cidade, hoje italiana, cujo destino histórico sempre me fascinou. Encontrei, há pouco, uma fotografia de 1885, onde figura já a Piazza d'Unità d'Italia, que domina o porto sobre o Adriático. Achei curioso publicá-la.

A torre


Ontem, ao passar no eixo norte-sul, olhei para a desprezada torre de controlo de tráfico da estação ferroviária de Campolide. 

Suja, perdida no meio de viadutos e das instalações modernas da estação, desapareceu a imponência daquele belo e simples edifício modernista desenhado por Cottinelli Telmo no início dos anos 40. Há pequenas jóias arquitetónicas perdidas pelo país.

A gaveta

Já passaram quase dezoito anos. Jorge Sampaio reuniu num restaurante de Cascais um pequeno grupo que, durante os meses que antecederam a sua eleição para a Presidência da República, havia com ele discutido, com alguma regularidade, as grandes temáticas internacionais e de política externa. 

Mais de um ano antes, no final de 1994, por sugestão do António Franco, o então presidente do município de Lisboa havia-me chamado uma noite a sua casa e pediu-me que o ajudasse à estruturação de um grupo para promover essa reflexão. Ainda faltavam alguns meses para que ele anunciasse publicamente a sua candidatura. Devo dizer que estranhei o convite, porque sabia Jorge Sampaio altamente conhecedor dos temas internacionais, pelo que não via o valor acrescentado de uma qualquer ajuda da minha parte. Mas ele insistia, achava importante atualizar-se sobre todos as grandes questões e pretendia, ao longo dos meses até ao sufrágio, informar-se em detalhe e esclarecer dúvidas que lhe surgissem. Lembro-me bem de algo que então me disse: "Mas há uma coisa muito importante: não quero nenhum papel oficial, nenhum documento do MNE! Quero apenas trocar ideias com quem pensa habitualmente estas coisas". (Uns meses mais tarde, quando fui a casa de José Lamego para falar com António Guterres sobre a Europa, ouvi-o dizer uma frase basicamente idêntica. As pessoas com sentido de Estado comportam-se assim). Sugeri que, antes do início do trabalho do grupo a constituir, fosse elaborado um dossiê sobre algumas temáticas mais específicas, com textos a serem preparados por diversas personalidades, muitas delas alheias ao MNE ou afastadas do ministério, altamente conhecedoras dessas matérias, que enumerei. Sampaio viria a pedir pessoalmente a cada uma delas a sua contribuição, a qual deu origem a um trabalho muito interessante. Dei-lhe uma lista nominativa para o grupo de debate, que acabou por ser constituído por Luís Castro Mendes, José Freitas Ferraz, Carlos Gaspar, José Filipe Moraes Cabral e eu próprio. Jorge Sampaio também formularia o convite a cada um.

O grupo reunia, às vezes em minha casa, num "brainstorming" muito interessante e enriquecedor para todos nós, que aprendíamos uns com os outros. Num sábado, deu-se um episódio curioso. À hora de almoço, ao abrir a porta no andar onde na altura vivia, a empregada da casa em frente disse-me: "Hoje de manhã, esteve aí à sua procura o senhor presidente da Câmara". Eu não tinha ouvido nada! Jorge Sampaio tinha combinado connosco encontrar-se nesse sábado em minha casa. Mas era à noite! O que é que o levara a ir lá de manhã cedo? Telefonei-lhe e deslindámos a confusão. A reunião era "às nove horas". Sampaio presumira que era "da manhã"...

Com a minha entrada para o governo, uns meses antes da sua eleição e posse, deixei de poder assegurar a presença regular nesses debates. Porém, o novo Presidente não esqueceu a minha anterior colaboração e teve a amabilidade de me integrar no jantar que ofereceu ao seu "team" de política externa. Mais do que isso: fui eu quem foi encarregado de fazer o agradecimento em nome do grupo, nesse jantar, a escassos dias da posse. Disse da alegria imensa que era para todos nós irmos ter em Belém um homem da qualidade política, cívica e, principalmente, humana de Jorge Sampaio. No final, a título pessoal, fiz-lhe um pedido. Era relacionado com os móveis do Palácio de Belém. Imaginava que devessem ser uma imensidão, mas havia uma coisa que eu lhe solicitava que fizesse: que abrisse todas as gavetas dos móveis do Palácio. Alguns dos presentes no jantar, que incluía esposas, olharam para mim com espanto. Que estranho pedido! Sampaio também se mostrava perplexo. Eu esclareci. Depois de Mário Soares abandonar o Palácio, numa daquelas gavetas, deveria ter ficado algo que ali nos unia. Não fora Soares quem afirmara que metera "o socialismo na gaveta"?

Sampaio não deve ter tido ensejo de aceder ao meu pedido. Aliás, o tempo deu para percebermos que ele deixara de ter sentido: Mário Soares levou com ele o socialismo e, como se tem ouvido da sua boca, nunca mais o largou...

sábado, dezembro 20, 2014

"Olhar o mundo"

Um negócio da China

Era um tipo grande, cordial. Eu tinha acabado de estacionar o carro, numa vaga milagrosa, numa das Avenidas Novas. Cruzou-se comigo quando atravessava a rua, na tarde de quinta-feira, lançando-me um amável "Boas Festas, embaixador!". O facto de o não ter identificado não garantia que o não pudesse ter conhecido algures. Mas a cara, de facto, não me dizia nada. Retorqui, agradecendo e retribuindo os votos. Já quase o tinha esquecido quando, do outro lado da rua, ouvi: "Embaixador! Tenho uma prenda para si!". Era ele. Voltou a atravessar a rua na minha direção e, enquanto se encaminhava para um carro que estava próximo do meu, perguntou: "Que número calça?". Perplexo e um pouco contrariado lá lhe disse. ("Será de alguma empresa, como quem me terei cruzado numa feira ou numa embaixada", pensei para comigo. "Se calhar, são sapatos! Só me faltava mais esta!"). Ele abriu a mala do carro e tirou um saco de plástico transparente com meias de diversas cores (não eram feias, mas algumas das cores nunca as usaria). Continuava a falar, não se calava, agora sobre a qualidade do produto, sobre a quantidade de algodão, sobre o facto daquelas meias não terem costura. Confirmou: "É mesmo a sua medida! Que sorte!". Um pouco aturdido, coloquei a saca de meias sobre o banco do carro e balbuciei um agradecimento, cumprimentando-o. Fui-me afastando pelo passeio adiante. Sentia uma sensação estranha, de algum incómodo, indefinível. Curiosamente, como se fosse na mesma direção, ele ia-me acompanhando pela faixa de rodagem, com os carros estacionados de permeio, continuando a dizer coisas sobre as meias, sobre as fábricas, nem sei bem o quê. Algumas pessoas com quem nos cruzávamos deviam estranhar aquele monólogo em voz alta, comigo calado e morto por me ver livre do homem. Por instantes, ele dava ares de que ia afastar-se, mas logo depois aproximava-se, como que ziguezagueando, no seu andar largo e algo desengonçado. Já estávamos aí a uns vinte metros do meu carro quando ele perguntou: "Sabe quanto estão a pedir por aquelas meias nas lojas? Diga um número?". Eu sabia lá! Eu nem sabia quantas meias o saco tinha (eram dez pares). Ele sabia: "Oitenta euros! Imagine! Bom, para um produto daquela qualidade, também se justifica...". E continuou a acompanhar-me, agora juntando-se a mim no passeio. "Para o meu amigo, são só vinte euros, claro! Tenho imensa consideração por si, como sabe!" Eu sabia é que tinha acabado de cair no conto do vigário. Pensei para comigo, com a auto-absolvição dos tolos: "É Natal. Isto até teve graça!" Não teve, eu sentia-me pateta, mas incapaz de rumar ao carro já distante e devolver o saco das meias ao homem. Parei, abri a carteira e tirei uma nota de vinte euros. Agarrada a ela veio uma nota de cinco. Ele estava atento e, generoso, com um sorriso, advertiu: "Atenção! Esses cinco euros não são meus!" Fui à vida. Quando regressei, meia hora depois, vi-o ao longe encostado a uma parede, a olhar a sombra. Entrei no carro, olhei as meias. Era chinesas. Medida "40-46". Era mesmo a "minha" medida, claro!

(Dedico esta historieta ao meu amigo Gulherme Sanches, que esta manhã se queixava de hoje não ter nada de novo no blogue para ler. )

sexta-feira, dezembro 19, 2014

A ilha grisalha


Somos ainda umas largas dezenas. Mas, hoje à noite, seremos bem menos do que gostaríamos de ser. Há anos, foi-se o Raul (Solnado). Antes, tinha sido o Jorge Fagundes. Este ano foi bem triste: há meses, saiu de cena o Zé Medeiros (Ferreira) e, há semanas, o "Kiko" Castro Neves. Mas estaremos, com todos eles "ao nosso lado", como dizia o Lopes-Graça, em mais um Jantar da Mesa Dois do Procópio, que teimo em organizar. Em alguns anos, por razões várias, tal não foi possível.

Começámos estes repastos - este será o oitavo - precisamente há uma década, em 2004, na "Marítima de Xabregas". Mudámo-nos depois, por dois anos, para o saudoso "Manel", no Parque Mayer. Também por outras duas vezes, juntámo-nos no magnífico "Vírgula", onde o Pedro Rodrigues dava então cartas gastronómicas a Lisboa. Por uma vez, talvez porque os engenheiros estivessem então na moda, asilámos no restaurante da respetiva Ordem. E, finalmente, passámos uma noite pelo "Jardim do Tabaco". Cabe-me sempre a sina de descobrir um lugar que, cumulativamente, comporte quase oitenta pessoas, onde se coma bem, sempre barato, se possa fumar e haja estacionamento fácil. Imaginem a trabalheira!

Hoje à noite, o lugar do jantar não pode divulgado, para evitar a chegada maciça das televisões, o atraso do fecho dos jornais, a praga dos paparazzi, as reportagens "live" das rádios. A CNN ameaçava mesmo entrar em direto, a Sky pediu satélite e até a Al Jazeera se mostrou interessada, pensando estar perante um "remake" da cena dos árabes no Tavares. Não! Não divulgaremos por ora o local do jantar, porque queremos umas horas sossegadas. O mundo saberá a seu tempo onde a "Dois" hoje se reúne.

Para os menos iniciados, deixo aqui o capítulo que, sobre a "Dois" nos anos 90, escrevi para o livro editado sobre o Procópio:

"Nos anos 90, que a Alice me pediu para recordar, o Procópio transpirou o Portugal que então mudava.

A sua Mesa Dois começou por ser a janela nocturna para o “phasing-out” político que se ia adivinhando pelo país, sublinhado nas crónicas do Nuno Brederode, posto a cores nos desenhos do António. Foi a sede constante de uma crítica irónica, arquivo oral do anedotário cáustico que sempre acompanha os tempos moribundos. Para alguns, foi uma trincheira de um exílio político sem sair de casa, sofrido entre dois JB’s, de conspirações mornas com a imprensa e do alimentar de amanhãs que, afinal, se iram cantaram mansamente, de gravata e fato escuro, numa tarde cálida na Ajuda.

Chegada essa hora do socialismo vangélico, parte da Dois foi cooptada, com naturalidade geracional, para o novo poder e suas adjacências. Outra parte, não despicienda, seguiu, com idêntica naturalidade, o sampaísmo até Belém, na dobradinha que a esquerda conseguiu ao virar do quinquénio, dando corpo a um sonho antigo.

Na segunda metade da década, a Dois continuou um fervilhar de ironia e de heterodoxia. Se o novo poder contava ter nela uma complacente cumplicidade, enganou-se redondamente. A Dois confirmou o seu tropismo anarca: “Hay gobierno ? Soy contra!”. As orelhas do guterrismo saíam bem vermelhas das noites procopianas, com alguns dos presentes a terem de aguentar a crítica sonora, a assistirem, impotentes, à enxurrada de pancadaria num governo que tinham como seu. Nada que o “fair-play” não tenha ajudado a suportar, com grande garbo, diga-se desde já.

A história da Mesa Dois não esgotou, nesse tempo, a vida no Procópio. Aliás, parte da Mesa esteve-se sempre muito nas tintas para a política, mandava uns bitaites, contava umas historietas e limitava-se a beber copos, intervalados por aquela espécie de esferovite que a Alice sempre fez passar por pipocas. Foi um tempo em que, por selecção natural, foram abandonando o Procópio alguns espécimens mais chatos, quase sempre por motivação etílica. O bar tornou-se sereno, talvez até sereno demais.

Ao final das tardes, canastrões com ar clandestino e empresarial faziam a folha a secretárias à cata de promoção, sempre recolhidos na mesa à esquerda de quem entra. Em algumas noites, grupos heteróclitos de duvidosa extracção chegavam em bandos, sem pés de veludo, e pediam duas Cocas para oito. Ao bar e à maldita televisão colavam-se alguns pretensos machões, que se entretinham a rodar a sala com o olhar concupiscente, consumindo uma mísera imperial. Nas mesas dos cantos, arrulhavam casais, por horas perdidas, à volta de duas garrafas de Pedras. Os tempos não eram fáceis para a máquina registadora.

No balcão e no apoio gentil às mesas, perdeu-se nesse período o estimável Juvenal, para cujo Pedro V se continua a rumar nos Agostos, quando a Alice empurra os fiéis para a vilegiatura forçada. Passou-se depois por aquela que ficou conhecida como a fase Manpower de recrutamento, com o “Bósnio” e o “Croata” como expoentes desse auge de flexibilidade do mercado de trabalho. Até que, em boa hora, chegou o Luís, emigrado do Ertilas, sossegando para sempre a sala e as hostes com o seu sorriso, simpatia e grande profissionalismo.

Mas, afinal, perguntar-se-á, o que vem a ser essa Mesa Dois de que tanto se fala? A Dois, leitor amigo, é o lugar geométrico do Procópio, identificada por um papelinho que diz “Reservado”, para onde ciclicamente conflui uma fauna de mescla pouco provável, que junta juristas com publicitários, artistas com diplomatas, gestores com cineastas, médicos com doentes da bola, jornalistas com académicos, para além doutras actividades que a prudência aconselharia a não citar, como é o caso dos políticos e dos engenheiros.

A Dois tem uma centralidade lateral (não há contradição nenhuma) que lhe confere a vantagem de uma confortável visão estratégica, que se alarga da porta de entrada ao “primeiro andar” vizinho, passando por todo o bar, dando a melhor possibilidade teórica de “catch the eye” do Luís, para o “refill” dos copos. Os seus bancos têm protuberâncias que seguem estritos critérios ortopédicos, internacionalmente recomendados para a zona sublombar. Sem falha, são mandados reformar pela Alice num ano bissexto sorteado cada vinténio, e acomodam, sobre aquele veludo acetinado, escolhido com esmero nos saldos da Feira de Carcavelos, não mais que cinco clientes. Para além deste número, o convívio cumulativo dos supranumerários obriga a um inevitável empernanço, que a prática demonstra ter já hoje escasso valor como estímulo lúbrico na comunidade de frequentadores.

A partir das noites de glória dos fins-de-semana desse tempo dos anos 90, o espaço vital da Dois foi-se alargando, os banquinhos amontoavam-se, o “primeiro andar” adjacente era às vezes tomado, a mesa do “tête-à-tête” do piano frequentemente anexada. Foi o tempo em que apareceram pela Dois belezas tropicais a alegrar o ambiente e o Jójó, por aí estiveram belas amigas de conhecidos que, tragicamente, desapareceram com a rapidez com que arribaram. Ah! e havia ainda cinema mudo, de que hoje resta o écran, não se sabe bem para quê.

Também por essa época, eram distribuídos com regularidade, na festa estival, os famosos Prémios Procópio, sob critérios de justiça que, pelo menos num caso, o autor destas linhas não tem razões para pôr em causa. Sabe-se hoje que malévolas reticências à democraticidade do júri que atribuía tais galardões eram completamente infundadas, dado que a Alice cuidava em seguir à risca um modelo há muito consagrado nas instituições do Burundi, recomendado por uma embaixadora que com ela toma chá.

Com a década no fim, a Mesa Dois, e nós com ela, ficou mais velha, talvez um pouco mais sábia e mais serena. Mas ficou-lhe, para sempre, o culto da ironia, da amizade, da solidariedade. Hoje, a Dois é uma ilha grisalha num Procópio que parece estar recuperado para a juventude, para a conversa alta, para a alegria saudável das noites. Até a Sedonalice anda mais contente, não é?"

quinta-feira, dezembro 18, 2014

A hora de Cuba?

O anúncio de um início de reaproximação entre Cuba e os Estados Unidos é um interessante sinal de distensão entre dois países cujo conflito é uma das mais duradouras heranças da Guerra Fria. 

Washington nunca aceitou o derrube da sinistra ditadura de Baptista, um títere que se mantinha na lógica da "doutrina Monroe" e que havia transformado a ilha num prostíbulo e num casino, dando um sólido argumento para a revolta titulada por Fidel de Castro. Os refugiados cubanos nos Estados Unidos condicionaram, a partir daí, a atitude americana, tornando a normalização das relações dependente de um "regime change" que nunca veio a verificar-se.

Castro e os seus guerrilheiros, saídos da Sierra Maestra depois de uma saga político-militar que entusiasmou o romantismo de uma certa esquerda à escala global, cometeram o grave erro de reagir às recorrentes provocações americanas através de uma crescente dependência da União Soviética. A aventura da colocação de mísseis russos na ilha, em 1962, levou a um embargo americano que ainda hoje se mantém. 

De regime libertador, a Cuba de Castro transformou-se num "exportador" de revoluções pelo mundo, aliás sem grande sucesso. Os "dois, três, muitos Vietnam" da retórica de Che Guevara (que, se fosse vivo, teria visto naquilo que o Vietnam se transformou) acabou por ser um imenso fracasso. Pressentido como executor de um "ousourcing" ditado por Moscovo, que durante décadas pagou as faturas de uma economia abafada pelo embargo, o regime de Fidel de Castro, que identificava a menor dissidência interna com uma traição pró-yankee, acabou por se converter num dos atores centrais da Guerra Fria.

No plano interno, Cuba é uma ditadura intolerante e repressiva. Jogou sempre com o sentimento de anti-americanismo como fator atenuador da leitura que o mundo podia fazer das condições em que o seu povo vive, passando as culpas do regime para as consequências do embargo - de facto, uma medida datada e sem sentido, unilateralmente imposta por Washington e que, bem vistas as coisas, acabou por facilitar fortemente o prolongamento do regime castrista. Cuba é hoje uma sociedade triste, vivendo numa penúria imensamente injusta para a felicidade possível das gerações que sofreram a sua tragédia geopolítica.

Muita água correrá ainda sob as pontes até que as coisas se normalizem entre Washington e Havana. Dos dois lados, os obstáculos à reconciliação são muito grandes e são expectáveis acidentes de percurso. De qualquer forma, a iniciativa papal que levou a este início de diálogo só pode ser saudada.

Vitor Crespo



Foi-se mais um homem de abril. Naquela madrugada, quando Vitor Crespo se apresentou, impecavelmente uniformizado com a "farda nº 1", no "posto de comando" do Movimento das Forças Armadas, no regimento de Engenharia na Pontinha, em representação da Armada, Otelo perguntou-lhe ironicamente se ele ia "para algum casamento"... Crespo foi dos oficiais de mais alta patente a participar na condução das operações militares do 25 de abril.

Era um homem sereno, mas muito determinado. Logo após regressar de Moçambique, onde teve um exigente mandato como Alto-Comissário, nos momentos tensos de 1974/75, Vitor Crespo apresentou-se numa reunião do Conselho da Revolução, órgão do qual não fazia parte, e ... sentou-se à mesa. Ninguém teve coragem de lhe recusar o seu legítimo lugar nesse órgão.

Poucas pessoas se recordarão que, em 1975, ele foi Ministro da Cooperação do VI governo provisório. O Ministério dos Negócios Estrangeiros, logo após a minha entrada, destacou-me nesse ministério, por quase quase dez meses.

Um dia de fevereiro de 1976, fui chamado ao ministro Vitor Crespo, que estava acompanhado pelo secretário de Estado da Cooperação, Gomes Mota. Ambos me explicaram que, tendo os professores cooperantes portugueses em S. Tomé entrado em greve, por verem goradas algumas expectativas que lhe tinham sido criadas pelas autoridades santomenses antes da sua partida, eu ia ser enviado àquele país recém-independente para pôr termo ao conflito. O ministro disse-me que eu tinha "carta branca" para resolver o assunto com as autoridades locais. De facto, chegado a S. Tomé (via Paris e Libreville, naquela que era a minha primeira viagem a África), ao ser recebido no aeroporto pelo meu colega João da Rocha Páris, fui por este informado que o embaixador português, Amândio Pinto, estava furioso, porque tinha recebido do Ministério da Cooperação uma comunicação para "se colocar à minha disposição" com vista às diligências que eu estava encarregado de fazer. Foi preciso muita "diplomacia" para explicar ao embaixador que o jovem "adido de embaixada" que eu era, e há menos de meio ano, não tinha a menor pretensão de o "chefiar" e que, pelo contrário, estava ali para o coadjuvar na resolução do problema (que logo se resolveu, diga-se).

Há uns anos, num almoço na Associação 25 de abril, com Vasco Lourenço, Costa Neves e Martins Guerreiro, lembrei este episódio a Vitor Crespo. Naturalmente que não se recordava, porque ele tinha sido relevante apenas para mim.

Vitor Crespo tinha uma figura elegante, similar ao estereótipo de um coronel inglês do tempo das Índias. Era um homem com muito humor, embora discreto. De uma inatacável solidez ética, era reconhecido pelos seus pares como uma referência de seriedade e de grande profissionalismo.

Hoje, quinta-feira, a partir das 17 horas, prestar-lhe-emos homenagem na Basílica da Estrela.

Imprensa estrangeira

O jornalistas estrangeiros que operam em Portugal decidiram atribuir a Carlos do Carmo o seu prémio anual. É mais um justo galardão para "the voice" do fado. Foi na terça-feira à noite, na bela sala do arquivo da Câmara Municipal de Lisboa, onde estive por um simpático convite dos organizadores, onde de há muito conto bons amigos.
 
Os profissionais da imprensa estrangeira que operam em Portugal e que tanto ajudam o nosso país a ser conhecido pelo mundo, contribuindo para dar conta das nossas preocupações e interesses, estão muito inquietos com os rumores de que podem ser afastados das instalações onde, desde há décadas, operam, no Palácio Foz. Também eles vivem na dúvida sobre as condições em que poderão vir a trabalhar no futuro. É que chegam-lhes rumores de que o Palácio Foz vai passar a Pousada de Portugal... totalmente privatizada, claro!

quarta-feira, dezembro 17, 2014

Pescas

O facto de se ouvirem as notícias na rádio, sem as confirmar por escrito, leva a equívocos. Deixei aqui, esta manhã, uma análise aos resultados para Portugal das conclusões do último Conselho de Ministros da Agricultura e Pescas que verifico agora que não corresponde à realidade dos factos. Dou a mão à palmatória e à palmeta.

Uma praça a cores



Por uma mera coincidência, passei ao final da tarde de ontem pela Praça do Comércio, por ocasião da projeção do "video mapping" "Desejo de Natal". É um espetáculo belíssimo, com um colorido muito bem conseguido e adaptado ao espaço, sendo excelentemente musicado. Dura 15 minutos, às 19.00, 20.00 e 21.00, e estará em exibição até 23 de dezembro. Ah! Aparentemente é para crianças, mas tive grande prazer em assistir...


terça-feira, dezembro 16, 2014

A tristeza da Bertrand

Há dias, falei aqui da livraria Férin, na "baixa" lisboeta. É uma das poucas que nessa zona resta de um tempo glorioso de espaços livreiros, que, perto da Trindade, começavam nos alfarrabistas e na "Opinião", e, pelo Chiado, se prolongavam pela "Diário de Notícias", pela "Moraes", pela "Sá da Costa", acabando, na rua do Carmo, na "Portugal" e na "Ulisses".
 
No meio de tudo isso, ficou sempre a "Bertrand", que se diz criada em 1732, tida como a mais antiga livraria do mundo. Sabia bem passar pelas suas diversas salas, espiolhar as estantes, cruzar os "habitués". Teve períodos péssimos em matéria de atendimento e conhecimento livreiro. De há uns anos para cá, reencontrara-se e reconvertera-se numa boa livraria. E estabilizara em matéria de "geografia", isto é, sabia-se onde encontrar o que nos interessava.
 
Passei por lá ontem. Uma estranha "renovada", como dizem os brasileiros, esvaziou-a agora de livros (!), fez desaparecer dezenas de metros de estantes e simplificou a sua oferta a um nível de verdadeira indigência. A "Bertrand" está irreconhecível, com um soalho flutuante medíocre e um ambiente incaraterístico, parecendo apostada em acolher apenas turistas, à cata da Lisboa "típica". Por este andar, além do inevitável "Livro do Desassossego", ainda acaba a vender pasteis de nata e miniaturas de elétricos. Prometi a mim mesmo: à Bertrand da Garrett não volto tão cedo!

BOAS FESTAS!

  A todos quantos por aqui passam deixo os meus votos de Festas Felizes.  Que a vida lhes sorria e seja, tanto quanto possível, aquilo que i...