quarta-feira, agosto 20, 2025

Primakov e a NATO


"Ainda hoje de manhã, na reunião da NATO, disse ao ministro Gama que vocês organizaram uma excelente cimeira da OSCE, em Lisboa, há poucos dias. Se soubermos trabalhar à luz do que ali foi decidido, as coisas na Europa podem vir a correr muito bem". Quem me dizia mais ou menos isto, naquela noite de 11 de dezembro de 1996, era Yevgeni Primakov, ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, onde Boris Ieltsin era então presidente. Eu acabara de ser-lhe apresentado, antes do jantar. 

Primakov fora a Bruxelas convidado pelos ministros da NATO. Aproveitando a sua presença na cidade, os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia organizaram um jantar de trabalho com o seu colega russo. 

Muitos dos presentes tinham estado na reunião da NATO, nessa manhã. Não era o meu caso. Em outras tarefas em Bruxelas, como secretário de Estado, substituia no jantar Jaime Gama, que tivera de regressar a Lisboa. "Já ouvi o Primakov falar esta manhã. Acho que ele não vai dizer à União Europeia coisas diferentes das que disse na NATO. Depois conte-me", foi o que me lembro do telefonema que recebi de Jaime Gama, já do aeroporto. De facto, não disse.

Primakov, nesse jantar, em que era anfitrião o ministro irlandês dos Estrangeiros, Dick Spring, voltou a referir-se com ênfase à Cimeira da OSCE em Lisboa. Nesse tempo em que quase metade da minha vida se passava fora de Lisboa, eu falhara a reunião da OSCE em Lisboa. Nem eu desconfiava que, meia dúzia de anos depois, a OSCE se viria a cruzar comigo, durante a presidência portuguesa da organização. Não recordo, aliás, que o tema OSCE tivesse suscitado grande entusiasmo naquele jantar oficioso no edifício do Conselho. 

O tema do jantar eram as relações entre a Rússia e a União. Tudo parecia ir bem nesse domínio. O ministro russo sossegou os presentes: os alargamentos da UE que estavam em curso de preparação, embora parecessem a Moscovo "desnecessários", não era algo que a Rússia visse com grande contrariedade. Não havia entusiasmo, mas não era por aí que os problemas surgiriam. Talvez Primakov pensasse que a complexidade técnica dos processos de adesão acabaria por atrasar muito a sua concretização.

Coisa diferente, porém, era a ideia do alargamento da NATO, fez questão de frisar Primakov. Temendo que a agenda deslizasse, Dick Spring, que ali representava um país neutral e fora da NATO, tentou mudar de conversa. A NATO não era o tema. 

O britânico Malcom Rifkind, naquele seu tom pespineta que tanto desagradava a Margareth Thatcher, não lhe fez a vontade e, até ao final, para evidente desagrado de Spring, o assunto do jantar acabou por ser o alargamento da NATO. Primakov começou por dizer ser sua firme convicção que a ampliação da NATO conduziria inevitavelmente a uma nova divisão da Europa. Lembro-me da prudência do ministro alemão, Klaus Kinkel, que procurava deitar alguma água na fervura. Tenho também na memória que o francês Michel Barnier, que ali representava Hervé de Charette, no seu tom algo pomposo (mas não mais do que de Charette, que era conhecido pela sua arrogância insuportável), se embrulhou num discurso confuso e pouco claro sobre a atitude de Paris, na consabida leitura própria que o seu país nunca se dispensava de procurar ter sobre a segurança europeia. A França estava então afastada da estrutura militar integrada da NATO. 

O ministro russo, na linha de uma doutrina que Moscovo não abandonaria, embora declinada de várias formas e feitios, falou do facto da "segurança ser indivisível", isto é, não dever resultar na segurança apenas para alguns, fossem eles a NATO, a União Europeia ou mesmo a CEI (a frágil estrutura de coordenação inter-estatal pós-soviética que, sem sucesso, a Rússia procurou por algum tempo alimentar). E Primakov insistiu: na arquitetura de segurança europeia, a OSCE devia ser o ator principal. A exemplo de vários outros presentes, não me recordo de ter intervindo na conversa. 

Como me recordo desta conversa?, inquirirá o leitor. Ora essa! Não é todos os dias que se janta com um ministro dos Estrangeiros russo.

Hoje conhecemos bastante bem as diferenciadas leituras que os alargamentos da NATO acabaram por ter. A Rússia coloca-os nas "root causes" da crise que o mundo atravessa, a "nova Europa", assim crismada por Donald Rumsfeld (que, à vista de Trump, passaria hoje por um republicano apresentável), nem quer ouvir falar do assunto. E assim vai o mundo. 

Primakov era então um homem visivelmente respeitado pelos seus colegas ocidentais, quanto mais não fosse pelo seu modo urbano de tratar temas polémicos. Chegaria a primeiro-ministro. Ainda pensou candidatar-se à presidência da Rússia, mas um tal Vladimir Putin estava já uns passos à frente. Acabou por dar-se bem com ele. Morreu há uma década. O "The Guardian" fez-lhe um obituário precioso.

Sem comentários:

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... a propósito do congresso do Partido Trabalhista, num podcast do Expresso que pode ouvir aqui .