Texto que serviu de base à intervenção que ontem fiz, durante o painel "Portugal no Mundo", durante o Congresso "A Revolução de Abril", promovida pelo Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa:
A tentação de afirmar que tudo mudou com o 25 de abril é muito forte no que toca à política externa. E isso tem uma explicação fácil: é que, contrariamente à lenta maturação de outras mudanças que ocorreram na sequência da Revolução, no plano internacional, quase de um dia para o outro, a imagem de Portugal sofreu uma forte alteração, passámos a ser olhados de uma forma diametralmente oposta à véspera. Da ditadura obsoleta, politicamente isolada, sustentáculo de uma presença colonial perdida historicamente no tempo, emergiu uma súbita esperança democrática e de libertação, feita de alegria florida nas ruas.
Até o surgimento das forças armadas a titular uma revolta democrática, apenas meio ano depois do Chile, constituiu uma novidade simpática e promissora.Vieram depois algumas dúvidas, o Ocidente tremeu com o curso político em Lisboa mas, para o bem e para o mal, visto das várias perspetivas, Portugal nunca mais foi igual sob olhar do mundo.
Como a Ucrânia nos prova nos dias de hoje, tal como Cuba o atestou nas últimas décadas, um país não pode fugir à sua geografia e tem de acomodar as suas ambições ao contexto em que está inserido. Assim aconteceu com o Portugal depois de abril.
Eu costumo afirmar que o facto de não ter surgido, na convulsão política pós-Revolução, uma séria proposta no sentido de Portugal abandonar a NATO representa como que a consciência subliminar de que o país tinha condicionantes geopolíticas a que não podia escapar. Se a leitura que Moscovo fazia deste equilíbrio marcou ou não a atitude do PCP, com Angola à mistura nesse contexto, essa é uma questão que fica para os historiadores. Os factos, porém, são incontroversos: aquela que era a principal âncora geopolítica do país desde o pós-guerra não foi posta seriamente em causa, não obstante alguns apelos radicais surgidos aqui ou ali.
Quero com isto dizer que a nossa geografia prevaleceu. Mas essa geografia também mudou. Umas vezes mudou ela própria e nós mudámos com ela, outras vezes mudou porque nós próprios fomos sujeitos dessa mudança.
A nossa geografia mudou no plano físico, com o fim das fronteiras e com os acessos rodoviários e aéreos a tornarem-nos menos periféricos. O choque de modernidade que isso teve num país até então isolado, fora das rotas de vizinhança do centro do continente, foi uma aventura silenciosa de que já ninguém tem verdadeira consciência.
A nossa geografia mudou fortemente no plano político, com a integração europeia a determinar um quadro de responsabilidades que nos alargou os horizontes e nos tornou parceiros de um projeto mais vasto, eticamente sustentado e com uma coerência global que incorporámos na nossa própria matriz de afirmação externa.
Mas mudou também na nossa atitude no quadro multilateral, "ajudados" pela aventura voluntarista por Timor, que determinou uma postura mais ativa sobre direitos humanos. E, noutra dimensão, criou-nos uma dinâmica própria em matéria de cooperação para o desenvolvimento. Por tudo isto chegámos, por três vezes e não por acaso, ao Conselho de Segurança da ONU, organizámos duas cimeiras Europa-África, temos um Alto Comissário para os Refugiados, tivémos a liderança da Aliança para as Civilizações, criámos as condições para que um português chegasse à chefia da Comissão Europeia.
Até o surgimento das forças armadas a titular uma revolta democrática, apenas meio ano depois do Chile, constituiu uma novidade simpática e promissora.Vieram depois algumas dúvidas, o Ocidente tremeu com o curso político em Lisboa mas, para o bem e para o mal, visto das várias perspetivas, Portugal nunca mais foi igual sob olhar do mundo.
Como a Ucrânia nos prova nos dias de hoje, tal como Cuba o atestou nas últimas décadas, um país não pode fugir à sua geografia e tem de acomodar as suas ambições ao contexto em que está inserido. Assim aconteceu com o Portugal depois de abril.
Eu costumo afirmar que o facto de não ter surgido, na convulsão política pós-Revolução, uma séria proposta no sentido de Portugal abandonar a NATO representa como que a consciência subliminar de que o país tinha condicionantes geopolíticas a que não podia escapar. Se a leitura que Moscovo fazia deste equilíbrio marcou ou não a atitude do PCP, com Angola à mistura nesse contexto, essa é uma questão que fica para os historiadores. Os factos, porém, são incontroversos: aquela que era a principal âncora geopolítica do país desde o pós-guerra não foi posta seriamente em causa, não obstante alguns apelos radicais surgidos aqui ou ali.
Quero com isto dizer que a nossa geografia prevaleceu. Mas essa geografia também mudou. Umas vezes mudou ela própria e nós mudámos com ela, outras vezes mudou porque nós próprios fomos sujeitos dessa mudança.
A nossa geografia mudou no plano físico, com o fim das fronteiras e com os acessos rodoviários e aéreos a tornarem-nos menos periféricos. O choque de modernidade que isso teve num país até então isolado, fora das rotas de vizinhança do centro do continente, foi uma aventura silenciosa de que já ninguém tem verdadeira consciência.
A nossa geografia mudou fortemente no plano político, com a integração europeia a determinar um quadro de responsabilidades que nos alargou os horizontes e nos tornou parceiros de um projeto mais vasto, eticamente sustentado e com uma coerência global que incorporámos na nossa própria matriz de afirmação externa.
Mas mudou também na nossa atitude no quadro multilateral, "ajudados" pela aventura voluntarista por Timor, que determinou uma postura mais ativa sobre direitos humanos. E, noutra dimensão, criou-nos uma dinâmica própria em matéria de cooperação para o desenvolvimento. Por tudo isto chegámos, por três vezes e não por acaso, ao Conselho de Segurança da ONU, organizámos duas cimeiras Europa-África, temos um Alto Comissário para os Refugiados, tivémos a liderança da Aliança para as Civilizações, criámos as condições para que um português chegasse à chefia da Comissão Europeia.
E, também no campo multilateral, soubémos exportar segurança, com intervençoes de grande mérito tituladas pelas nossas Forças Armadas envolvidas em operações de paz. Essa nossa nova "geografia de segurança", que vai para além da NATO, se apoia na Europa e tem decorrências na luta anti-terrorista, é um terreno da maior importância, um teste ao nosso sentido de responsabilidade internacional
A nossa geografia mudou também no plano humano, ao ter sido possível, a partir do 25 de abril, estabelecer um modelo de enquadramento democrático da nossa diáspora, garantindo-lhe um papel na vida política interna e procurando tomá-la um ator da nossa dimensão externa. E, mais tarde, de país emissor de fluxos migratórios, tornámo-nos recetores de imigrantes, convertemo-nos num "melting-pot" onde a Europa de leste veio encontrar as muitas Áfricas, a que se somou o Brasil mais a China. Embora alguns não saibam, isto também é política externa e devo confessar que tenho um imenso orgulho em que o Portugal de hoje seja considerado positivamente lá fora, pelo modo como acolhe os mundos que estão do outro lado desta casa, do largo de S. Domingos ao Martim Moniz e à Mouraria.
A nossa geografia também mudou muito no tocante ao nosso relacionamento bilateral externo. Mudou com a normalidade com a vizinhança imediata, de Espanha a Marrocos, com a descoberta de uma vocação mediterrânica que levou à fixação de um interessante laço com um mundo islâmico que vê em nós um interlocutor atento.
Mas essa nova geografia, que também pode ser considerada 'de afetos" conduziu, desde logo, ao estabelecimento de um quadro institucional prioritário com Estados que falam a nossa língua e com os quais tentamos reconduzir a uma cooperação aquilo que foi uma longa e traumática relação colonial. Mas, igualmente, reforçámos o nosso relacionamento com Estados e regiões com os quais vivíamos a uma distância criada pela ditadura e pelo colonialismo, do centro e leste europeus à África e bastante mais além. Foi essa nova postura que nos conduziu à normalidade do relacionamento com a China, mas também com a Indonésia e com a Índia.
Mas, como disse no início, nunca saímos do Atlântico, embora apenas na retórica tenhamos uma política nacional para esse espaço. Talvez por isso, porque o Atlântico é uma constante muito forte que nos sobredetermina, foi por aí que surgiram alguns patéticos seguidismos, que devemos tomar à conta de meros episódios sem grande significado. Mas este é um quadro que mantemos como estruturante para a preservação dos nossos interesses estratégicos. E tudo indica - mas assumo que esta é uma perspetiva pessoal - que, sem abandonar o investimento fundamental no projeto europeu em que nos empenhámos, sem descurar a CPLP e outras dimensões que derivam de laços muito particulares, como é o caso dos que nos prendem à América Latina, temos todo o interesse, como país, em saber recolocar-nos, com sentido das proporções, no centro da nova relação transatlântica que se desenha.
Termino com uma banalidade, reafirmando que, graças ao 25 de abril, somos hoje um país "orgulhosamente acompanhado". Por isso, quando um dia voltarmos a ter uma política externa, depois do interlúdio de silêncio internacional que estamos a atravessar, Portugal pode e deve, com realismo e medida ambição, continuar a aproveitar as portas que, também para o mundo, abril nos abriu.