terça-feira, fevereiro 12, 2013

O Honório e Jaime Neves

Naquele tempo, não havia em Vila Real quem não conhecesse o Honório. Era uma figura um pouco bizarra, magro, de óculos redondos, vestido quase sempre de preto, com um chapéu que lhe desenhava um perfil físico que lembrava Fernando Pessoa. Tinha por profissão ser contínuo na escola do Magistério primário. Lembro-me dele escuteiro, como me recordo de o ver lançar papagaios aos domingos, aproveitando o vento da "marginal", sobre o parque florestal.

O Honório era aquilo que, com alguma crueldade, poderíamos qualificar de um "pobre diabo". Muitas vezes gozado pela rapaziada - que, pelas ruas, lhe chamava o X9 -, o Honório apareceu um dia casado, com casa em Folhadela. Numa excursão a Lisboa, ficou famosa uma coça que terá dado na mulher. 

A pobre senhora, entretanto, deixou viúvo o Honório e este envolveu-se numa questão de partilhas com os cunhados, que se arrastava pelos tribunais, sem decisão. Foi isso, pelo menos, o que um dia ele me contou. Na altura, pediu a minha ajuda, nos termos de quem achava que Lisboa era uma Vila Real "grande", onde as pessoas se encontravam com regularidade, como por lá se fazia na "esquina da Gomes" ou no "cabo da Bila":

- Quem me podia ajudar a resolver o assunto, eram vocês, lá em baixo, em Lisboa. Quando vocês se encontrarem - vós, o António Barreto, o Jaime Neves e o Albano Bessa Monteiro - bem que me podiam tratar do processo, com os conhecimentos todos que têm.

O Honório convocava aqui as pessoas "influentes" que conhecia e que andavam "lá em baixo", por Lisboa. Recordo-me de ter respondido (eu tratei-o sempre por tu, nos últimos anos ele tratava-me por "vós"), com alguma ironia, ciente da implausibilidade do cenário que ele desenhava:

- Podes ficar descansado! Se eu, um dia, eu me encontrar com o Barreto, o Neves e o Albano, garanto-te que te resolvemos o assunto.

O Albano Bessa Monteiro era (e é) um velho amigo. À época, eu não conhecia pessoalmente António Barreto. E nunca na minha vida alguma vez falei com Jaime Neves. Lá por sermos ambos vilarealenses, só pela cabeça do Honório poderia passar a ideia de que éramos amigos. 

Lembrei-me desta história, há dias, quando foi noticiada a morte de Jaime Neves.     

segunda-feira, fevereiro 11, 2013

O papa

No dia de hoje, com o anúncio da saída de cena do atual papa, senti a estranheza de quem vem de "outra freguesia": não tenho a menor opinião sobre o assunto. E, com todo o respeito que me merece quem vive intimamente a religião, não me parece que venha a ter.

domingo, fevereiro 10, 2013

As contas da Europa

Na sexta-feira, gravei na RTP Informação uma conversa com o jornalista Manuel Menezes, no seu programa "Olhar o Mundo" (*). Durante 20 minutos, falámos da Europa que temos, do lugar de Portugal nela, de crise do euro e dos desafios da atual diversidade europeia. No momento da gravação, os números do compromisso financeiro obtido no Conselho europeu da véspera ainda não eram muito claros. Agora já o são.

Sobre o assunto, sublinhei o que considerei ser uma forte incoerência da política orçamental da União face ao caso português. Com efeito, num momento em que duas instituições comunitárias (o BCE e a Comissão Europeia) estão comprometidas com o processo de ajustamento português, é verdadeiramente chocante ver aprovado um orçamento, para sete anos, desenhado como se estivessemos num tempo normal, sem se entender que, perante os elevados constrangimentos orçamentais nacionais, um esforço específico deveria ser feito ao nível do reforço dos fundos comunitários para os países sob assistência, elemento essencial para o investimento público. Esse esforço de coerência deveria ter sido realizado pela Comissão Europeia e não o foi. O (antigo) "executivo" de Bruxelas mostrou aqui toda a sua flagrante irrelevância atual no processo comunitário. Espero que o Parlamento europeu não esqueça isto, no debate que agora se seguirá. 

Mas voltemos às "perspetivas financeiras". Devo começar por dizer que me impressionou a forma ligeira, muito ao modo do país de "prós e contras" que por aí anda, como a generalidade dos comentadores televisivos dessa noite de sexta-feira analisou resultado de Bruxelas. Salvo uma ou duas exceções, as pessoas ouvidas optaram por um registo de seguidismo face à leitura oficial do resultado ou de mera oposição não fundamentada, face à importância daquilo que Portugal obteve. Os "situacionistas" deliciaram-se em laudas às vantagens obtidas na PAC (e para a CAP) para o "desenvolvimento rural" e o "reviralho" passou o tempo a atacar a falta de "ambição" europeia, assim fazendo forte oposição... a Bruxelas.  

Ora, à luz de alguma experiência que julgo ter neste domínio, entendo que não é muito difícil chegar a uma conclusão sobre se Portugal saiu ou não beneficiado deste exercício. Para tal, deixo algumas pistas sobre a forma como se devem ler os resultados.

Sendo uma evidência incontestável, o facto do orçamento global ter, pela primeira vez, diminuído, e isso representar uma falta de vontade dos "vinte e sete" para reforçar o projeto europeu, é relativamente indiferente na análise do resultado português. Como também o é a circunstância de se poder arguir com a ideia de que as coisas acabaram por ser um pouco melhores do que aquilo que era a proposta original: todos sabemos que é sempre assim... Finalmente, e do mesmo modo, o volume global de recursos que foram alocados a Portugal, com os "envelopes" laterais que sempre fazem parte destes exercícios, sendo um dado concreto a ter em conta, acaba por ser menos relevante para a análise que importa fazer - isto é, saber se Portugal ganhou ou perdeu nesta negociação. Como se pode chegar então a essa conclusão?

Julgo que é relativamente simples. Registe-se a percentagem que o volume de recursos obtidos por Portugal no anterior quadro financeiro representava no total do orçamento plurianual 2007-2013. Faça-se, depois o saldo final deste recente exercício, à luz do mesmo critério, descontado o efeito do futuro alargamento à Croácia. E compare-se. Como alguém dizia: é fazer as contas...

* Pode ver o programa aqui

sábado, fevereiro 09, 2013

Ponto Come

Anotar restaurantes é um "vício" que tenho (estava para escrever "alimento"...), desde há muito tempo. Comecei a fazer isso nos anos 80, com o meu amigo Alfredo Magalhães Coelho, criando guias para várias regiões portuguesas. Eram uma espécie de ajuda, a quem se passeava pelo país, para poder encontrar bons locais para comer, estivesse onde estivesse. No fundo, esses guias eram o resultado da busca que fazíamos para nós próprios, ajudados por opiniões tidas por fidedignas. Desses apontamentos constavam os pratos mais destacáveis em cada casa e as respetivas referências identificativas, com telefones e dias de fecho. 

Mais tarde, nas várias cidades do mundo por onde fui vivendo, ia tomando notas sobre os lugares que me tinham agradado e, com gosto, passava-as a amigos. Não eram críticas gastronómicas, porque não me reconheço minimamente competente para tal, mas simples listas de boas mesas, à luz da minha discutível opinião.

Como é sabido, o risco da produção das listas de restaurantes é imenso. Uma mudança de proprietário ou de cozinheiro pode alterar radicalmente, de um dia para o outro, o cariz de um restaurante, e nem sempre para melhor. As coisas mudam mas o que escrevemos fica, para eterno equívoco de quem lê.

Em Brasília, o meu "vício" passou a uma coisa um pouco mais séria: por sugestão do meu amigo embaixador Pedro Bório, fiz parte, durante dois anos, do júri da revista "Veja". Foi então que me dei conta de que a expressão de uma opinião sobre um restaurante, se lida e tida em consideração por muitas pessoas, pode ter sérias consequências no plano comercial e, por essa via, na vida das pessoas que trabalhavam nesses locais. Passei a ser muito mais cuidadoso nos meus comentários, tanto mais que eles eram baseadas em escassas visitas e isso reduzia seriamente a minha legitimidade para me pronunciar.

Em 2010, aceitei o desafio da revista "Sábado" para ser, sob pseudónimo e por um semestre, o "crítico mistério" da revista. Sucedi nessa tarefa a Paula Teixeira da Cruz, a Proença de Carvalho, a Ruben de Carvalho e a Miguel Esteves Cardoso. Embora residente em Paris, tive o maior gosto em levar a cabo essa tarefa. Mas foi aí também que percebi melhor as minhas sérias limitações como "crítico", a minha completa incapacidade de me colocar ao nível de um David Lopes Ramos ou de um José Quitério, figuras cimeiras na arte portuguesa da escolha restaurativa. Devo dizer que, desde então, olho para a crítica gastronómica com muito maior respeito. 

Ainda no Brasil, criei o blogue "Ponto Come", onde fui colocando algumas notas sobre restaurantes. Regressado a Portugal há poucos dias, decidi retomar a escrita desse blogue, nele inserindo curtas e despretenciosas notas sobre os locais a que me vou deslocando, na minha vida quotidiana. Quem quiser ler esses apontamentos deve ter a certeza antecipada que as opiniões que exprimo valem apenas o que valem, com toda a sua subjetividade e amadorismo. E ninguém se espante se vir desaparecer ou alterarem-se alguns dos "posts", porque eles vão naturalmente evoluindo à medida das minhas experiências, pelo que a data da última atualização deve ser sempre tida em atenção.

Reconheço, com facilidade, que em tempo de crise alguns poderão considerar algo ostentatória a revelação destas experiências gastronómicas. Concedo que isso possa ser visto assim, mas, não obstante o tempo que atravessamos, a verdade é que há, por todo este país, muitos restaurantes que necessitam de clientes para subsistirem e darem emprego a pessoas. É por essa razão que entendo ser adequado, por parte de quem vai tendo a felicidade de os poder visitar, sublinhar a qualidade do trabalho dos melhores profissionais deste importante setor económico.

Assim, e se estiverem interessados, consultem o "Ponto Come".  

sexta-feira, fevereiro 08, 2013

A dona Maria Garcia

A dona Maria Garcia era uma mulher alta e imponente, de óculos grandes, passo pesado e olhar perscrutante. Sobre a sua vida amorosa, quando jovem funcionária, corriam lendas pela casa, dizendo-se que quebrara vários corações diplomáticos. Quando a conheci, ao tempo em que eu dava os meus primeiros passos pelos corredores das Necessidades, era já uma senhora idosa, sempre com um inconfundível e impositivo perfil. 

Rigorosa e implacável nas suas funções, a dona Maria Garcia era tida como um pilar na área da administração da casa, onde coadjuvava essa outra figura mítica da carreira, o embaixador Humberto Morgado, durante quase duas décadas diretor-geral desse setor. Dizia-se que, nesse "quarto andar", nada se fazia de importante que não passasse pelo crivo da dona Maria Garcia. E, efetivamente, havia sinais claros da sua competência profissional.

Em inícios de 1979, fui colocado na nossa embaixada em Oslo. Como sempre acontece nas transferências - e, por maioria de razão, na primeira saída para o estrangeiro - há toda uma série de papelada para tratar. Eu trabalhava dois andares abaixo e, com alguma premeditação, decidi organizar todo esse expediente administrativo... à distância. Assim, pedia os formulários, preenchia o que tinha a preencher e ia mandando entregar as coisas nos diversos setores administrativos, furtando-me sempre a subir ao "quarto andar". Fui bem sucedido em todas essas diligências, até um dia.

Informaram-me, a certo passo, que tinha de me deslocar a uma repartição, para assinar um determinado documento. Uma vez mais, inventei um pretexto qualquer e mandei perguntar se podia assinar o documento no meu serviço, devolvendo-o posteriormente. Foi então que recebi uma chamada telefónica da dona Maria Garcia, com quem eu nunca tinha trocado uma palavra: "Ó doutor! Soube que pediu para que lhe enviássemos um papel para aí o assinar. O doutor não pode deslocar-se cá acima? Com certeza, não julga que vai ser o primeiro diplomata que consegue partir para o estrangeiro sem passar pelo meu gabinete...". Fiz-me "de fino" e respondi-lhe: "Senhora dona Maria Garcia. Eu tinha precisamente a intenção, após concluído todo o expediente burocrático, de passar por aí a cumprimentá-la, antes de partir para a Noruega". Do lado de lá da linha, ouvi um elucidativo: "Pois, pois..." E lá fui eu, nessa tarde, um pouco embatucado, passar pelo pequeno gabinete a partir do qual a dona Maria Garcia dominava a gestão do MNE.

Conta-se que, chegado o momento da sua aposentação, a partida da dona Maria Garcia provocou uma crise na administração da casa, tendo sido necessário, para grande gozo da senhora, solicitar-lhe que viesse ajudar benevolamente, durante algumas semanas, as pessoas que tinham ficado a substituí-la.

Poucos anos mais tarde, recordo-me de a ter vislumbrado, ainda com a imponência física que a caraterizava, a descer a Infante Santo. A dona Maria Garcia deve ter desaparecido há já bastante tempo. Era dessa nobre raça de grandes funcionários de que a administração pública portuguesa se alimentava. 

quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Ó Elvas, ó Elvas!

Em julho do ano passado, em São Petersburgo, Elvas e as suas fortalezas passaram a ser consideradas "património mundial" da UNESCO. Tenho alguma responsabilidade pessoal neste exercício, porquanto me coube convencer o Comité do Património Mundial da organização de que o processo de preparação do caso de Elvas estava suficientemente amadurecido para poder merecer a sua aprovação. Não era essa a visão das autoridades da UNESCO, mas conseguimos revertê-la.

Porque "já sei do que a casa gasta", alertei, de imediato, para a necessidade de serem colmatadas algumas deficiências evidentes na conclusão do processo de proteção, que nos tínhamos comprometido a ultrapassar. E chamei a atenção para o risco de que, se acaso tal não fosse feito, o mesmo Comité que aprovou a consagração daquele bem patrimonial poder vir a colocar Elvas como "património em risco".

Há dias, a imprensa trouxe a notícia de que o belo Forte da Graça foi saqueado. Vale a pena ler a notícia aqui. E é também instrutivo tomar nota da posição assumida pelas várias entidades envolvidas, cada uma "chutando" para a outra a responsabilidade pela situação criada. 

Resta lembrar que Portugal concorre este ano a um dos 21 lugares no Comité do Património Mundial, nomeadamente com base na experiência ganha em proteger os bens que a UNESCO consagrou no seu território...

A ordem

Fazia um certo género aquele embaixador. Nunca pedia nada diretamente, deixava no ar ideias que desejava que fossem levadas a cabo, obrigando os colaboradores a deduzirem o que realmente pretendia. Era muito raro vê-lo dar uma ordem imperativa. Se dissesse "era capaz de ser interessante mandar-se qualquer coisa a Lisboa sobre as taxas de juro", isso significava que se devia fazer, de imediato, um telegrama sobre a decisão do banco central sobre o custo do dinheiro. Se acaso os seus colaboradores não fossem suficientemente perspicazes para interpretarem estas suas ordens subliminares, o respetivo destino estava traçado. Tudo isso fazia parte da sua forma de exercer a autoridade.

Um dia, um funcionário administrativo foi chamado ao gabinete do embaixador, para tratar de uma qualquer questão. Durante esse despacho, na forma oblíqua tradicional, o embaixador comentou: "Está a começar a ficar um pouco de frio". O homem não reagiu, pelo que o diplomata foi um pouco mais explícito: "Será que os aquecimentos estão ligados?". O administrativo disse que não, que ainda não tinha chegado a "época", referindo-se à data em que, por regra, o sistema era posto em marcha. Chegado a este ponto, o embaixador, que claramente pretendia ver a sua sala aquecida, não resistiu e, já com má cara, foi explícito: "Olhe! Vá ligar o aquecimento".

O administrativo era um homem de hierarquias. Na sua perspetiva, testada ao longo de muitos anos, a pessoa que, dentro da embaixada, tinha poder para ligar o aquecimento era o chanceler, o senhor Mendes, a quem ele devia obediência direta, que se prolongava muito para além do período de funções dops embaixadores e de quem ele, desde sempre, recebia as ordens. E se essa suprema autoridade na gestão logística da embaixada não dera essa ordem, que podia ele fazer? Pelo que lhe saiu esta "pérola", para o todo poderoso embaixador, um dos homens que, na história das Necessidades, mais autoridade e influência alguma vez teve:

- Ai! isso é que não faço, senhor embaixador! Quem manda nessas coisas é o senhor Mendes. Tem de lhe pedir a ele...

quarta-feira, fevereiro 06, 2013

Entrevista

Foi na "Antena 1" que falei sobre a Europa destes dias, sobre a sua defesa, a sua política externa e as suas relações com os EUA. A propósito do debate sobre a língua portuguesa, disse o que pensava sobre as fragilidades institucionais do nosso idioma e do realismo com que devemos olhar para as suas possibilidades de futuro no campo internacional. Suscitei também algumas questões sobre o Centro Norte-Sul, que passei a dirigir e fui - muito sinceramente - otimista sobre o futuro do país.

Quem estiver interessado pode ouvir aqui.

Vieira

Às vezes, aproximamo-nos tarde de certas referências culturais. Foi o que me aconteceu com o padre António Vieira.

Alguns textos de Vieira faziam parte das "seletas" literárias através das quais, ao tempo do liceu, nos chegavam os "maiores" da nossa literatura. A forma pouco apelativa como esses extratos nos eram apresentados, a amálgama feita de autores de épocas e estilos muito diferentes e a obrigação de decorar parte dessas referências acabavam por provocar em nós uma rejeição quase automática a escritores que, se bem explicados e promovidos, poderiam facilmente suscitar o nosso jovem interesse. Com António Vieira aconteceu-me isso.

Só voltei a encontrar Vieira já na faculdade, mas apenas para uma desnecessária provocação: decidi citá-lo, para grande desagrado do professor Silva Rego, de um livro de Charles Boxer intitulado "Race relations in the Portuguese colonial empire". Chegar a Vieira através de um texto em inglês foi uma "sofisticação" ridícula. A qual, aliás, me saiu cara, porque obtive uma nota de exame bem baixa...

Em 2005, chegado ao Brasil, e aproximando-se o "ano vieirino", em que se comemorava o 4º centenário do seu nascimento, decidi ler Vieira "a sério", pela primeira vez. E tive então uma fantástica revelação. Deliciado, devorei a "História do Futuro" e outros seus textos magníficos, para além de me ter familiarizado com a vida de uma figura ímpar, que chegou a ter incursões heterodoxas pela diplomacia. Com o meu amigo padre Brandi Aleixo, um dos grandes especialistas brasileiros em Vieira, organizei algumas iniciativas sobre António Vieira ao longo desse ano de 2008, tendo lançado, através da embaixada em Brasília, um blogue sobre o "ano vieirino" que chegiou a ter apreciável sucesso.

O Brasil trata muito melhor a memória de Vieira do que nós. Por isso, agradou-me muito ter conhecimento que o Círculo de Leitores vai agora editar a obra completa de Vieira. É tempo de Portugal poder ter um completo acesso a um autor e a uma personalidade que, em si mesma, representa muito da identidade luso-brasileira.  

Anna Lindh

Ontem, durante uma reunião de trabalho no Centro Norte-Sul do Conselho de Europa, foi focada a cooperação mantida entre o Centro e a Fundação Anna Lindh, com sede em Alexandria, no Egito, dedicada a desenvolver o respeito mútuo entre as culturas de ambas as margens do Mediterrâneo. Entre o Centro e a Fundação há importantes áreas de interesse comum que já têm sido exploradas e tentaremos continuar a aprofundar.

Anna Lindh era ministra dos Negócios estrangeiros da Suécia quando, em 11 de setembro de 2003, foi barbaramente assassinada num loja, em Estocolmo, por razões nunca totalmente esclarecidas.

Entre 1998 e 2001, cruzei-me com regularidade com Anna Lindh nos Conselhos de ministros "Assuntos Gerais", onde ela era homóloga de Jaime Gama. Era uma mulher sorridente, pessoalmente muito agradável, sempre determinada nas suas posições, com uma linha de intervenção política de onde decorria um evidente sentido de solidariedade internacional. Relevar a sua memória através da Fundação que leva o seu nome é uma merecida homenagem.

A imagem mais forte que dela guardo foi a simpática despedida pública que me fez, durante o último Conselho de ministros da UE a que estive presente, em Bruxelas, em janeiro de 2001, ao tempo em que ela presidia ao Conselho. Nessa intervenção, fez uma simpática alusão ao facto de eu me sentar naquelas cadeiras desde há mais de cinco anos e disse da "inveja" que sentia por eu ir viver para Nova Iorque. Aí nos voltámos a cruzar, meses depois, pela última vez. Disse-me: "Já esqueceste Bruxelas? Nem te pergunto se estás a gostar de viver por aqui..." 

terça-feira, fevereiro 05, 2013

A mensagem

O conselheiro fuzilou, com um olhar severo, o contínuo, de nacionalidade brasileira, que assomara à porta do gabinete onde, na embaixada portuguesa num grande capital europeia, uma conversa amena se estabelecera, naquele final de tarde. 

- Quantas vezes já lhe disse, homem, que não quero que você interrompa as conversas?!

Era um hábito, muito tradicional nos grandes postos diplomáticos, nesse outro tempo em que havia tempo para tudo, os diplomatas reunirem-se, ao fim do dia, num dos gabinetes, numa amena cavaqueira, para trocarem impressões e historietas. Muitas vezes, os mais velhos debitavam informações só acessíveis a quem "bebia do fino", os mais novos apreciavam a partilha dessa experiência e isso constituía um caldo de cultura corporativa que ajudava a forjar o espírito de uma carreira.

Aquele conselheiro era um homem com tiques autoritários, um pouco auto-convencido da sua própria importância, pelo que reagira, desagradado, à intromissão do contínuo. Este, vergado pela reação do diplomata, ficara, qual Martim Moniz, prudente mas teimosamente encolhido na porta entreaberta, à espreita de uma oportunidade para debitar a mensagem que trazia.

Acabada a história, que vira quase interrompida de forma inoportuna, o conselheiro voltou-se, displicente, para o expectante contínuo, e lançou-lhe, generoso:

- Diga lá, homem! O que é que você quer?

-  Só queria dizer que a casa ao lado está pegando fogo...

segunda-feira, fevereiro 04, 2013

O peso da régua

A régua larga que o professor Pena nos aplicava nas mãos, naqueles anos 50, era bastante menos sofisticada e tinha consequências bem mais dolorosas do que o modelo que a imagem mostra. Lembrei-me disso ao ser-me perguntado, pelo telefone, pelo "Diário de Notícias", se tinha tido algum professor "marcante" ao longo da minha "carreira" académica. Foi, de facto, o mais marcante...

No resto, a entrevista (quero agradecer ao jornal ter ido buscar aos arquivos do JN uma foto que me rejuvenesce quase 15 anos) reflete um percurso académico pouco glorioso e algo acidentado. Mas foi bom lembrá-lo.

domingo, fevereiro 03, 2013

António Pinto Rodrigues

- Mas não te parece arriscado? E se o livro não se vende bem?

- Não se vende?! Tu estás é doido! Temos é que começar a pensar nas novas edições! Isto vai ser um êxito estrondoso!

A conversa era entre mim e o António Pinto Rodrigues, nesse "Verão quente" de 1975. Dizia respeito à ideia de fazermos uma "edição de autor" do livro "O Caso República", em lugar de aceitar uma proposta de uma editora, que só nos dava 10% do preço de capa. O António, o Toni, que era um intravável otimista, achava que o "êxito" era garantido e que, sendo nós responsáveis pela edição, meteríamos ao bolso uma "boa maquia".

(Para registo, diga-se que a edição foi um completo fracasso, como já aqui contei. A distribuição feita pelo Lopes do Souto foi desastrosa e o livro vendeu-se mal, "ajudado" por um tempo em que já havia um cansaço desse género de obras. Andámos muitos meses a pagar e a "reformar" letras. Tempos mais tarde, ainda tentámos fazer um outro livro, sobre a Assembleia constituinte, mas, felizmente, o realismo conteve-nos.) 

Conheci o Toni nos corredores do ISCSPU, no final dos anos 60. À época, via-o ligado a colegas pouco sensíveis às inquietações político-associativas que então me mobilizavam. A nossa relação era, assim, algo distante e até áspera. Voltamos a ver-nos no serviço militar, já em 1974, quando eu coordenava a especialidade de "Ação psicológica" e ele era um indisciplinado instruendo. Aproximámo-nos por esse tempo. A seu convite, passei a colaborar, fazendo locução para filmes, para a "Cinegra", uma empresa de cinema onde ele trabalhava. Foi por essa altura que lançámos "O Caso República". Essa aventura pelo cinema acabou entretanto, eu entrei para o MNE e o Toni foi parar a S. Tomé, como professor-cooperante. Um dia de 1976, os cooperantes entraram em greve e o MNE mandou-me a S. Tomé resolver o problema. O líder dos grevistas e meu interlocutor era... o Toni!  Ele gostou de S. Tomé e deixou por lá uma Antologia de Poesia Infantil de que guardo um exemplar dedicado.

Em S. Tomé, o Toni conheceu a suave Dee, uma americana que aí trabalhava para o PNUD. Desse encontro nasceu, já em Lisboa, a Marla, de que sou padrinho de registo (tivémos de "olear" o oficial do cartório para aceitar o pouco comum nome). Por esse tempo, o Toni trabalhava na "Liber", na área editorial. Um dia, decidiu fazer concurso para a UNIDO, a agência das Nações Unidas para o desenvolvimento industrial. Nela chegaria a lugares cimeiros, tendo sido, historicamente, um dos portugueses que ocupou cargos mais destacados em organizações internacionais. Viena passou então a ser a sua cidade, numa existência com visitas regulares a Sande, perto de Lamego, onde a sua mãe, a encantadora dona Irene, se mantinha como um dos grandes amores da sua vida. Por Viena nos encontrámos muito, nos dois anos em que por aí vivi.

Até essa altura, tinhamo-nos cruzado pelo mundo, com alguma regularidade. Uma noite, em Londres, juntei-o num jantar com o Rui Santos, um outro grande amigo já desaparecido. Foi um desastre! Ambos eram pessoas afirmativas, confrontacionais, "pegaram-se" numa interminável discussão e a noite estragou-se. É que o Toni é de ideias fortes, "definitivas" e raramente tem dúvidas. Muitas discussões tivemos nós, principalmente quando eu andava pelo governo! Mas sempre como grandes amigos.

Dos EUA, onde agora reside, chegaram hoje notícias preocupantes sobre a saúde do António, que nos deixam muito tristes. Deixo-lhe aqui um fraternal abraço, extensivo à Dee, à Marla e ao Manel. E também ao Rodrigo. Com votos de que todos possam manter a imensa coragem que a extraordinária lição de vida do António sempre lhes ensinou.      

sábado, fevereiro 02, 2013

Notícias da lavoura

Não é apenas ridícula, como certos comentadores sublinharam, a ideia de alguns deputados, amantes da "lavoura", de trazerem de volta o modelo "TV Rural", do engº Sousa Veloso, à programação da RTP. Na sua ingenuidade saloia, a iniciativa é muito mais do que isso: revela uma pulsão dirigista, a que é preciso estar bem atento. Porque, lá no fundo, revela saudades de Ramiro Valadão.

E torna-se pateticamente triste observar os autores da ideia a reagirem, defensivamente, com o argumento de que outros, se acaso estivessem no poder, fariam o mesmo ou pior. O importante é a sociedade conseguir impor mecanismos institucionais que permitam que estas derivas não possam nunca acontecer, esteja quem estiver no poder. Enquanto houver espaço para alguns as tentarem, mesmo que de forma inábil, fica claro que há razões para preocupação.

Da política

É uma interessante sensação de liberdade poder falar na comunicação social sobre a política portuguesa sem ter uma limitação opinativa por virtude das funções oficiais exercidas.

Ontem à noite, na RTP, durante cerca de uma hora, com Ana Sá Lopes e Miguel Pinheiro, no programa de Maria Flor Pedroso "Hora de fecho"*, passámos em revista a crise no seio do PS, a remodelação governamental e outros tópicos de atualidade. No final, os meus colegas de programa foram de opinião de que eu mantive um registo "ainda muito diplomático". Pudera! São muitos anos...

Convidado a salientar um tema, falei da crise do Mali e na quase vergonhosa ausência de apoio europeu à intervenção da França - um país que, naquele contexto, demonstrou um elevado sentido de responsabilidade e uma forte visão estratégica.

* o programa pode ser visto aqui

sexta-feira, fevereiro 01, 2013

Norte-Sul ou North-South?

Mês novo, vida nova. Assumi hoje funções como novo diretor executivo do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa. A sede é num belo edifício da Lapa, em Lisboa.

A equipa que comigo passa a colaborar, e com a qual já reuni, é bastante jovem, oriunda de vários países, esmagadoramente feminina e, pareceu-me, muito motivada para trabalhar pelo futuro de uma estrutura que, a meu ver, tem condições para dar um forte contributo ao trabalho do CdE. Ou muito me engano ou em Estrasburgo vão ouvir falar de nós.

Em complemento do post de ontem, não deixa de ser curioso passar a trabalhar, em Lisboa, num "ambiente" onde o inglês (e, mais residualmente, o francês) é a língua normal de trabalho.  

quinta-feira, janeiro 31, 2013

Língua portuguesa

A convite do Observatório da Língua Portuguesa, falei hoje, na Academia das Ciências, em Lisboa, sobre o estatuto da língua portuguesa nas organizações internacionais. 

Na avaliação que fiz não fui muito entusiasta quanto ao modo como o português tem vindo a consagrar-se, na prática, no âmbito das instâncias multilaterais, nomeadamente de natureza regional.  O que eu disse surpreendeu algumas pessoas, nomeadamente pela constatação de que, no seio da União Europeia, e não obstante a letra dos tratados, o recurso cada vez mais frequente a um número limitado de línguas de trabalho configura, no plano objetivo, um recuo do português nesse contexto. Expliquei também que, em outras organizações regionais, a presença do português é hoje pouco mais do que simbólica, dado que, na prática, é uma língua muito pouco utilizada. Para concluir que, na minha opinião pessoal, mesmo que tendo de contrariar o otimismo de certos discursos oficiais, o português não está hoje num curso de progressão positiva nas instâncias multilaterais. E disse mesmo isto: "porque não é uma língua de suporte efetivo de poderes à escala global", o português, "não sendo institucionalmente uma língua menor no quadro multilateral (é língua oficial ou de trabalho em 20 organizações internacionais) é, contudo, uma língua com um estatuto inferiorizado face a outras com valor simbólico idêntico".

No decurso da minha apresentação, contei uma história comigo ocorrida em 1995, no "grupo de reflexão" criado para a revisão do tratado de Maastricht. A regra era os debates terem lugar em francês e inglês. Por essa altura, a Alemanha vivia um período de afirmação da sua importância institucional e impunha a interpretação do alemão nos trabalhos, o que era dificil de recusar, por se tratar da mais falada primeira língua dentro da UE. Contudo, aproveitando a "boleia", a Espanha, que tinha a presidência do "grupo de reflexão", e a Itália, que era a nova presidência semestral da UE, colocaram discretamente as respetivas línguas entre as que poderiam ser utilizadas na reunião seguinte do "grupo", na qual, por coincidência, eu iria substituir o titular português, o professor André Gonçalves Pereira.

Mandei dizer a Bruxelas que, no que me tocava, se os representantes italiano e o espanhol tivessem interpretação, eu não dispensaria interpretação a partir do português. A resposta foi que, de momento, não havia "disponibilidade" para colocar intérpretes de português Era, naturalmente, uma falsidade. Recordo-me que telefonei aos colegas holandês e grego para tentar que se juntassem a mim no protesto, mas dei-me conta de uma estranha complacência com a "golpada" espanhola e italiana. Não desisti: informei então que, a persistir a teimosia desses dois países, quer houvesse ou não interpretação, eu falaria em português. E, para aqueles que não me compreendêssem, eu faria depois uma tradução de toda a minha intervenção (seis ou sete minutos) em francês ou inglês. Avisava, assim, que contassem com um quarto de hora de intervenção portuguesa...

O ambiente que me acolheu em Bruxelas não foi o mais simpático. O presidente espanhol do "grupo de reflexão", Carlos Westendorp, pediu para me ver e explicou que a ausência da interpretação para português era meramente "conjuntural" e que, numa próxima reunião, o assunto "se resolveria". Segundo ele, a nova presidência italiana da UE havia imposto o italiano e eu deveria compreender que a Espanha, "até porque tinha a presidência dos trabalhos", não poderia ficar numa "posição de inferioridade". Por isso, além do inglês, francês e alemão, os trabalhos teriam a possibilidade de interpretação em espanhol e em italiano. Pedia, "encarecidamente", que eu não criasse dificuldades. Recusei. E avisei: se ele ou o italiano falassem nas suas línguas, eu falaria português, traduzindo depois. Westendorp não gostou do que ouviu. E o encontro não acabou de forma muito agradável.

Recordo-me bem que me sentia numa posição de alguma dificuldade, tanto mais que estava ali como substituto do titular da representação portuguesa, a agir sem instruções (embora os meus colegas em Bruxelas o não soubessem). Mas decidi não ceder. Fomos para os trabalhos e, com agrado, notei que Westendorp os abriu em francês. Não pedi logo para falar, esperando a atitude do representante italiano, Silvio Faggiolo. Notei que este estava muito nervoso e que, quando nos cruzámos, praticamente não me falou. A certo passo, inscreveu-se para usar da palavra. Eu fi-lo de imediato, também. Quando chegou a vez da Itália, Faggiolo falou... em inglês, dispensando assim a interpretação de que dispunha. Eu fiz o mesmo, logo de seguida, falando francês ou inglês (já não me recordo bem), não recorrendo à anunciada intervenção em português, seguida de tradução. A "crise" acabara.

Diga-se, para a história - e quem, à época, estava a trabalhar em Bruxelas recordar-se-á disto -, que foi "remédio santo": nunca mais houve interpretação em espanhol ou italiano do "grupo de reflexão", nem na "conferência intergovernamental" que se lhe seguiu, por quase um ano, e que deu origem ao tratado de Amesterdão. O mesmo viria a suceder, anos mais tarde, com o tratado de Nice. Bater o pé, quando se tem razão, compensa. E não perder posição para outros é, pelo menos, uma possibilidade de ir "empatando" o jogo. E, quando se empata, não se perde...

O convite

A vida tinha-me levado, por umas semanas, à chefia interina do Protocolo de Estado. Numa conjuntura complicada, a maioria dos funcionários do serviço tivera de se ausentar para o estrangeiro e coube-me a mim, a pedido do Secretário-geral, tomar conta das coisas. Essencialmente, tratava-se de assegurar a rotina e procurar garantir que todos os dossiês pendentes iam sendo encaminhados.

(Recordo-me que me deu "uma de zelo" e que mandei recolher a montanha de papelada que pairava sobre todas as secretárias e pastas de despacho, dando andamento imediato a tudo e procurando resolver todos os problemas pendentes ou atrasados, fosse de que ordem fossem. Os funcionários administrativos do Protocolo ficaram siderados e os dois diplomatas que comigo colaboravam, Fátima Mendes e João Corte-Real, andavam divertidos e deliciados. Constou-me que alguns dos meus colegas ausentes, quando regressaram, ficaram verdadeiramente furiosos, ao depararem com tudo "limpo" e em dia...)

Uma tarde, entrou-me no gabinete um velho embaixador, há muito aposentado. Era uma homem com um sorriso constante, quase um esgar, que nos habituáramos, ao longo dos anos, a ver calcorrear os corredores da casa. O ministério era a sua verdadeira família e passear-se por lá estava-lhe na massa do sangue. Por isso, ele fazia já parte da "mobília".

Recebi-o com a atenção que lhe era devida. Era um nome célebre na casa. Estivera em grandes postos, tivera grandes responsabilidades, sobre ele circulavam inúmeras historietas, tendo sempre como pano de fundo o facto de ser um grande servidor público. Dizia-se que detestava tudo quanto dissesse respeito à cultura ("a cultura só traz chatices", seria uma sua frase célebre), que era um "charmeur" com as senhoras e de uma persistência profissional sem limites. Constava também que mantinha uma grande influência nas colocações e promoções de pessoas amigas. Os seus protegidos eram conhecidos pelos "rapazes do..." e, na realidade, era prova provada que obtinham vantagens por virtude dessa tutela. Aquele embaixador era, assim, uma verdadeira lenda.

Com toda a deferência, mandei-o sentar. "O colega deve estar com muito que fazer, não quero incomodá-lo", disse, delicado. Fui referindo que estava ali "por empréstimo", interinamente. Ele sabia vagamente quem eu era, devia ter recolhido de mim a "opinião de corredor", que é uma espécie de "label" que, com maior ou menor justiça, todos vamos criando e "afinando" ao longo dos anos de carreira, na memória coletiva. A ele era-lhe indiferente quem eu era, o seu propósito era outro.

"O colega está a tratar da visita presidencial?" Tratava-se de uma próxima deslocação de um chefe de Estado estrangeiro a Portugal. O dossiê andava por ali, mas ainda faltavam algumas semanas, seguramente já não seria eu a conduzi-lo, embora houvesse coisas que estavam já a ser feitas por nós, nesse contexto. Expliquei-lhe o estado da arte.

O velho embaixador, continuando a insistir em que não queria perturbar o meu trabalho, deixou então cair a razão da sua visita: "Eu só queria pedir ao colega um favor. É que, se possível, deixasse no processo uma nota para serem convidados, para o banquete de Estado na Ajuda, os embaixadores portugueses - os vivos, claro... - que serviram nesse país. É que, como por certo concordará, os estrangeiros estranhariam se nós lá não estivéssemos..."

Balbuciei a minha concordância de que seria "impensável" se assim não fosse e, desde logo, prontifiquei-me a deixar uma nota no processo e, mesmo, a chamar a atenção do chefe do Protocolo. O embaixador ajuizou melhor o meu ar interino e, arguto, tendo-se apercebido da fragilidade da minha influência na decisão final, acrescentou: "Fico-lhe muito grato que faça isso. Mas eu ainda passarei por cá outra vez, daqui a uns tempos...".

Quando saiu, senti tristeza pela imagem de um embaixador a mendigar um lugar numa mesa oficial. E prometi a mim mesmo lembrar-me disso, quando deixasse o serviço ativo, para nunca vir a ter a tentação de incorrer numa atitude similar. É precisamente isso o que estou a fazer agora. 

quarta-feira, janeiro 30, 2013

A entrada

Dormi lá há dias. É um belo, tradicional e renovado hotel do Norte de Portugal, com uma sala de refeições magnífica, a lembrar outros tempos, e com uma cozinha agora com o dedo do meu amigo Rui Paula, mas que ainda não experimentei.

Há cerca de dois anos, entrámos lá uma noite, para jantar, com dois casais amigos. Abancámos num extremo da sala e, minutos depois, vislumbrei-o, precisamente do outro lado. Era um colega meu, embaixador, arrulhando, com toda a evidência, imerso num "caso", numa mesa de canto, com uma senhora loira. Nada de pecaminoso, nem de invulgar. Apenas uma curiosidade. Ele "nem" nos via, ela não nos conhecia.

Veio a lista, começámos a escolher e eu, confesso!, não resisti e liguei-lhe pelo telemóvel. Identifiquei-me e ele respondeu, algo incomodado:

- Você desculpe, mas eu agora estou ocupado.

- Eu sei... Só lhe queria perguntar se me recomenda alguma entrada. Houve alguma coisa que o tivesse tentado mais?

Vi-o levantar a cabeça, escrutinando a sala. E lá me descobriu, no outro extremo, a acenar-lhe, sorridente mas convenientemente discreto.

- O abacate não estava mal, esclareceu, pedagógico, numa esforçada tentativa de manter um registo sério.

Agradeci e deixei-o na paz da senhora.

terça-feira, janeiro 29, 2013

O preto?

Certeiro e desassombrado, Ferreira Fernandes aborda hoje, na sua crónica no "Diário de Notícias", a ridícula polémica que por aí se desencadeou, por virtude de um comentário do líder da CGTP, Arménio Carlos, que teve a "ousadia" de anunciar assim o regresso da "troika": "vêm aí outra vez o três reis magos: um do BCE, outro da CE e o mais escurinho, do FMI". Algumas vestais saíram logo a terreiro com a alegação de que a referência ao "mais escurinho" era uma pura manifestação de racismo.

Confesso que tenho cada vez menos paciência para o "politicamente correto" e para o modo policiesco como alguns olham qualquer frase que, remota ou diretamente, toque um conjunto de temas que se convencionou colocar numa espécie de redoma.

Um dia, em Angola, estava numa festa no Hotel Panorama, a que tinha ido com um grande amigo angolano, Manuel Domingos Augusto, hoje membro do governo daquele país. A certa altura, chamei-lhe a atenção para uma pessoa que estava do outro lado da sala, que eu tinha a ideia de conhecer de qualquer lado. Expliquei que era "aquele tipo baixo, de casaco escuro, encostado à janela". Havia duas pessoas nessas condições, pelo que foi preciso dar outro pormenor: "o que está a fumar". Aí o Manel reagiu: "Ora bolas! É o preto? Já podias ter dito...". Era, mas eu, "travado" pelo politicamente correto, estava a hesitar dizer isso ao Manel, ele próprio bem negro. Nada como gente sem complexos para nos colocar à vontade.

Por este andar, um destes dias, ainda alguém nos vem chamar a atenção se dissermos que "a coisa aqui está preta". E não está?

"Epicur"

A vida, a profissão, os gostos, a comida, os vinhos e os restaurantes de Paris (com uma ousada nota de algumas dezenas de mesas de restauração na capital francesa) - tudo isso aparece hoje, sob a minha responsabilidade, no novo número da revista "Epicur". 

Foi o resultado de uma entrevista que dei em dezembro. Estou com muita curiosidade de ler o que vai sair dali, até porque (aqui entre nós...) já não me recordo bem do que então disse... 

segunda-feira, janeiro 28, 2013

Anos

Leio no "Público": Mikhail Baryshnikov faz hoje 65 anos. Tenho pena de nunca ter encontrado o bailarino russo, porque confesso que gostava de conhecer alguém que nasceu precisamente no mesmo ano e no mesmo dia que eu. O jornal esquece-se de mencionar que Nicolas Sarkozy e Alan Alda também são hoje aniversariantes, embora opte por recordar (e faz muito bem!) que Maitê Proença faz hoje (uns belos) 55 anos. É também um orgulho fazer anos no mesmo dia que António Arnaut, uma grande figura moral da política portuguesa. E, todos os anos, volto a encontrar-me virtualmente nesta data com Cardoso e Cunha, ex-ministro e ex-comissário europeu.

O que nos liga a quem faz anos no mesmo dia que nós? Nada de particular, mas, por qualquer razão, não deixamos de assinalar a coincidência. É que nada há de mais diferente do que entre mim e Baryshnikov: eu sou um inigualável "pé de chumbo"...

PS - Aproveito para agradecer aqui todas as simpáticas mensagens recebidas nesta data em que passo a ter acesso a descontos em teatros, museus e passes de transportes, até que alguém se decida pôr devido cobro a esses injustos privilégios milionários... 

domingo, janeiro 27, 2013

Cantores

Estávamos no belo e espaçoso jardim em volta daquela nossa embaixada, num país da África Oriental. Recordo-me de estar a beber um Pimm's, a bebida mais adequada para o cenário pós-britânico em que nos encontrávamos, nesse final de tarde, com uma temperatura deliciosa, descansando depois de muitas horas de "jeep" a atravessar um deserto, vindos de outro país, onde havíamos participado numa reunião internacional.

O embaixador português e a sua mulher, pessoas muito agradáveis e educadas, haviam insistido para que parte da delegação que acompanhava o membro do governo português ficasse instalada com ele na residência, fugindo ao ambiente inóspito do hotel.

A conversa ia boa e solta. Já não sei bem porquê, falou-se de música e, de repente, dei comigo a elaborar, de forma muito crítica, sobre as letras das canções de alguns dos mais conhecidos intérpretes da nossa praça, atacando o seu sentido "popularucho" e a sua frequente deriva para o facilitismo. O meu discurso aproximava-se, a passos largos, do inevitável "name-dropping" quando comecei a notar, na cara do meu colega António Monteiro, uns esgares um tanto estranhos, que não me pareciam derivados do sabor do Pimm's. Outro diplomata presente, o João Salgueiro, fazia-me sinais crípticos. O Manuel Lopes da Costa, sempre imperial na sua barba branca, arregalava-me os olhos. Só o membro do governo se mantinha, como o estatuto porventura exigia, numa serena e impenetrável impassibilidade. O embaixador, esse, sorria.

Foi então que a embaixatriz, delicada e inteligente, com um tato superior, atalhou: "Você tem toda a razão. Esses cantores e compositores, às vezes, vão por caminhos um tanto ridículos. Tenho avisado disso, para que procure evitar esses erros, o meu irmão, o José Cid. Acha que ele caiu nesse pecadilho?".

Escondi-me atrás da palhinha do Pimm's, porque, infelizmente, aquele imenso jardim não tinha um buraco para eu me meter...

sábado, janeiro 26, 2013

384 livros

São 384! São os livros que, pela primeira vez na minha vida, deixo para trás, aqui em Paris.

Realisticamente, eles não caberiam nas minhas estantes em Portugal e os milhares que encheram muitos caixotes, que já estão a caminho no contentor, terão de ficar num armazém, em Lisboa, até que eu consiga espaço (sei lá como!) para acomodá-los.

Até hoje, num otimismo sem sentido, mantive sempre a ideia (que sabia falsa) de que poderia vir a relar qualquer dos livros que possuía. Nesta lógica, começo a ficar preocupado comigo mesmo por "desistir" de ler estes 384 livros. Tenho de pensar melhor nisto...

sexta-feira, janeiro 25, 2013

... e Le Pen

Aquele meu conhecido, um homem encantador que vive numa "péniche" atracada a um cais do Sena, estava claramente hesitante quando me abordou. Queria ter-nos como convidados para um jantar no seu barco, onde vive rodeado de antiguidades, mas não sabia se eu aceitaria que na ocasião também estivesse o seu "ami Jean-Marie". À primeira não percebi, à segunda lá entendi que se tratava de Jean-Marie Le Pen, o líder da extrema-direita, à época ainda presidente do Front National, personalidade que, pelos seus propósitos negacionistas e outras tomadas de posição inaceitáveis, faz claramente parte das figuras "non fréquentables" para uma grande maioria dos franceses.

Le Pen é, a grande distância, dentre as personalidades do espetro político francês, a mais polémica. Confesso que tinha alguma curiosidade em conhecer, ao vivo, essa figura, com a qual, como já aqui recordei, eu próprio tivera uma "accrochage" no Parlamento Europeu, em 2000. E, ultrapassando algumas hesitações íntimas, aceitei o convite para jantar.

Há figuras que são exatamente aquilo que é a sua caricatura. Le Pen é uma delas. As suas reações em privado, a sua forma de estar e de interagir, reproduziam precisamente a imagem que eu tinha dele, recolhida das muitas aparições que lhe vira na televisão. Foi cordial para com o embaixador de um país que conhece bem e sobre cujos nacionais, sem ser entusiático, disse as coisas óbvias do "politicamente correto" francês. Contou-me das suas viagens ao Porto, como velejador, onde conheceu o "Duque" da Ribeira, de quem se teria tornado amigo. Elogiou as qualidades gastronómicas de um restaurante português da periferia de Paris, que ainda hoje é uma espécie de cantina informal do "Front National", por se situar ao lado da respetiva sede. Não me disse, mas isso eu sabia, que há uma presença de portugueses e luso-descendentes nos apoiantes do partido.

À mesa, fiquei à sua direita (tem alguma graça, ficar "à direita" de Le Pen). Dominou a conversa, com um discurso bastante crítico do então presidente Sarkozy, muito centrado na necessidade de reforço das políticas securitárias e no combate ao que considerou ser a "permissividade" na gestão dos fluxos migratórios. Os circunstantes, gente claramente conservadora, mostravam-se simpáticos perante o que ouviam. Um, dentre eles, chegou mesmo a afirmar que, pela primeira vez, encarava votar "Front National" nas próximas eleições. O ambiente não era desfavorável a Le Pen.  

Durante muito tempo, mantive-me bastante discreto na conversa, interessado que estava em olhar a  personagem. "Entre la poire et le fromage", decidi intervir. Disse que o fazia como observador estrangeiro, não comprometido com a vida política francesa. Mas que não resistia a expressar uma curiosidade. Como ele bem constatara, algumas das suas propostas políticas até eram relativamente aceites, porque, aparentemente, iam ao encontro das angústias, em matéria de segurança, uma certa França alimentava. Por essa razão - perguntei eu a Le Pen - por que razão persistia em manter, no seu discurso político, uma outra dimensão, assente em pressupostos como a desvalorização da barbárie nazi nos campos de concentração, temática com óbvias conotações antijudaicas que acabava por radicalizar a postura do "Front Nationale" e dele afastar potenciais simpatizantes?

Le Pen olhou-me, talvez surpreendido pela frontalidade da questão. Mas reagiu bem. Sem hesitações, perguntou-me: "Está a referir-se ao 'detalhe'?". Estava. Ficou famosa a frase em que Le Pen, a propósito da quantificação do número de assassinatos nazis nos campos de concentração, disse que isso não passava de um "detalhe" no contexto das mortes do segundo conflito mundial. E voltou a repetir isto. E acrescentou, por exemplo, que era muito estranho que nunca se falasse no facto das linhas de caminhos de ferro que levavam a esses campos alemães nunca tivessem sido bombardeadas pela aviação aliada (confesso que nunca ouvira isto!).

Tudo isto deu, por completo, em poucos minutos, a volta ao ambiente. As mostras de simpatia pelas políticas securitárias ou de controlo da imigração preconizadas por Le Pen dissolveram-se no ar, que se tornou pesado. O jantar terminou um tanto de forma apressada. À saída, o convidado que havia dado mostras de poder vir a votar "Front National" aproximou-se de nós e, em voz baixa, pediu desculpa por termos sido testemunhas de "algumas tomadas de posição que envergonham a França".

Como já era previsto, Jean-Marie Le Pen veio a ser substituído na liderança do "Front National", meses depois, pela sua filha, Marine Le Pen. O discurso desta abandonou, em absoluto, as questões que faziam parte do temário "maldito" do seu pai. Marine Le Pen e o "Front National" recolheram, nas eleições de 2011, uma muito razoável quota de votos e, de certo modo, começaram o processo de "naturalização" do partido na vida política francesa. Jean-Marie Le Pen, que nunca mais vi, não deve ter mudado de ideias. Em França, uma questão que ainda se coloca é saber se o "Front National" verdadeiramente rejeita a agenda do pai Le Pen ou se a sua nova postura é meramente tática. 

quinta-feira, janeiro 24, 2013

Comunistas

Acabei de escrever há pouco o prefácio para um interessante livro do professor Janela Antunes sobre a vida política portuguesa entre 1974 e 1976. É um trabalho que desejo que seja publicado em breve, porque nele muito se aprende sobre esse tempo agitado de mudança de paradigma na vida política portuguesa. O texto é acompanhado por uma riquíssima e inédita seleção de documentos diplomáticos franceses da época, que têm a curiosidade de nos pôr a ver a nossa realidade sob os olhos do Quai d'Orsay.

Um dos focos importantes do livro e da documentação que o acompanham é a ação do Partido Comunista Português. E dei por mim a pensar que foi uma delegação do PCP a primeira a visitar-me, após a minha chegada a Paris.

Nunca tive qualquer relação política pessoal com o PCP, partido onde tive e tenho vários amigos. De há muito que conservo um grande respeito pela indiscutível coragem dos comunistas portugueses na luta contra a ditadura do Estado Novo. Como muitos oposicionistas, estive, com grande gosto, ao lado deles nas "batalhas" da CDE de 1969 e, frequentemente, na luta associativa académica antes do 25 de abril.

No período subsequente ao 25 de abril, tive fortes divergências com certo tipo de atitudes e opções que o PCP tomou, nomeadamente no âmbito da política militar de então. A leitura do livro do professor Janela Antunes ajudou-me, aliás, a perceber melhor o fundo dessas divergências.

Desde então, a minha relação institucional com o PCP pautou-se sempre por uma atitude de grande respeito democrático, que, na minha perspetiva, tem de estar sempre para além das opções políticas. Tive o privilégio de ter estabelecido um relação muito cordial com figuras do PCP já desaparecidas como João Amaral, Luís Sá ou Joaquim Miranda. E recordo a supresa de Jerónimo de Sousa, o atual secretário-geral, quando, como embaixador de Portugal no Brasil, o fui cumprimentar no início de uma conferência que proferiu numa instituição do Rio de Janeiro, gesto que não me parece que seja muito comum na diplomacia portuguesa. Os comunistas, podendo cometer erros como qualquer força política, não "comem criancinhas ao pequeno almoço" e a democracia portuguesa tem tudo a ganhar em tratar com consideração e equanimidade democrática o PCP.

Mas voltemos à visita que a delegação do PCP me fez, nesse mês de março de 2009. Eram três elementos e, durante quase uma hora, mantivémos uma agradável conversa, em particular sobre a vivência política no seio da diáspora portuguesa em França. No final, um dos integrantes da missão comunista congratulou-se com o facto do pedido de audiência ter sido concedido com grande rapidez, decorridos muito poucos dias após ter sido formulado.

Com um sorriso, esclareci-os: "Eu quis que esta conversa tivesse ligar na data de hoje, que sei que ela lhes é muito grata..". Olharam uns para os outros e, nesse momento, deram-se conta que estávamos em 11 de março, data que os comunistas portugueses intimamente comemoraram como sendo a das grandes nacionalizações de 1975...   

quarta-feira, janeiro 23, 2013

Saudades do senhor Aguieira

No MNE, em matéria de embalagem dos nossos pertences, quando partimos de Lisboa ou mudamos de posto, há duas épocas distintas: o tempo do senhor Aguieira e o tempo que lhe sucedeu. 

O senhor Aguieira pertencia a uma empresa de transportes que, por um daqueles mistérios que já não vale a pena tentar esclarecer, noutros tempos ganhava, com insistente regularidade, quase todos os concursos. Muitos meses antes da viagem, ainda antes dos decretos "saírem", quando a nova colocação era apenas um rumor consistente pelos claustros das Necessidades, os diplomatas eram aproximados, pessoalmente ou por carta, pela empresa a que pertencia o senhor Aguieira, com o objetivo de pôr à disposição os respetivos serviços. 

O senhor Aguieira circulava pelos corredores do MNE, sempre de pasta na mão, como se fosse dos quadros da casa. Tinha o ar daquilo a que, em certa época, se qualificava como "um velho ministro de segunda" (sendo que "ministro" significa, no nosso jargão interno, "ministro plenipotenciário", bem entendido!). Sempre a caminho ou a sair do "quarto andar" (a área administrativa), o senhor Aguieira distribuía cumprimentos a muitos que ia encontrando, porque era estimado e apreciado genuinamente na casa. Em situações complicadas, o senhor Aguieira "desenrascava" as coisas, colocando-nos no estrangeiro, sem custo, bagagem de que só tarde nos tínhamos apercebido que necessitávamos. E, em Lisboa, guardava em armazem, por meses, pacotes que não tínhamos onde deixar. Entrar em contacto pessoal com o senhor Aguieira era uma experiência magnífica. Homem de grande cordialidade e muito educado, tinha toda a rede necessária para nos facilitar a vida. 

Na minha primeira mudança para o estrangeiro, não tínhamos a noção da importância de contactar diretamente o senhor Aguieira. A minha mulher ligou um dia para a empresa, para tratar de uma qualquer questão relacionada com esse transporte. Por minutos, a chamada andou de um lado para o outro. Até que, esclarecidos que se tratava de um diplomata, a puseram em contacto com o senhor Aguieira. A reação deste foi extraordinária: "Ó minha senhora! Porque não falou logo comigo? Andou aqui pela casa a ser tratada como "louça de Sacavém" quando, afinal, se tratava de "porcelana da Vista Alegre"!". E logo resolveu tudo. De forma inexcedível.

Quando, nessa primeira saída, os meus livros chegaram a Oslo, embrulhados dois a dois, antes de serem colocados nos caixotes de cartão, recordo os olhos dos vikings encarregados da desembalagem, surpreendidos com o esmero do empacotamento do pessoal do senhor Aguieira. 

Ontem, naquela que é a minha derradeira mudança, tive imensas saudades do pessoal do senhor Aguieira, ao observar o modo primário como por aqui se embalam os livros, sem cuidar da delicadeza de alguns. Tudo a esmo!

Não sei se o senhor Aguieira, o nosso senhor Aguieira, ainda é vivo. Espero bem que sim*. Se o for, deixo-lhe um forte abraço; se o não for, fica a expressão da minha saudade. E, conhecendo razoavelmente muitos dos meus colegas, tenho a certeza de não estar só nestes meus sentimentos. O MNE tem saudades do senhor Aguieira, podem crer.

*um comentador diz que não, infelizmente

Portugal e a UNESCO

Uma organização como a UNESCO tende a ser inundada por ofertas dos vários países, em especial por obras de arte cuja qualidade é, por vezes, muito discutível. Por essa razão, a organização possui um comité que faz uma triagem das potenciais ofertas e define aquelas que podem ser aceites.

Em 2011, esse comité apenas aprovou uma obra candidata a oferta: uma fotografia de Jorge Molder, um dos mais reputados fotógrafos de arte portugueses, oferecida por Portugal. Hoje, na despedida que fui fazer à diretora-geral da UNESCO, Irina Bukova, fiz-lhe entrega formal dessa obra.

Irina Bukova, que se vai recandidatar à direção-geral da UNESCO, é uma amiga pessoal de longa data. Tivemos responsabilidades governamentais similares e, mais tarde, fizemos parte de um "think tank" sobre política internacional que se reunia anualmente na Grécia, sob a coordenação de Georgios Papandreou - um nome que agora não está muito "na moda", mas um amigo de quem ambos gostamos muito.

Nos anos 90, em funções oficiais, Bukova esteve em Lisboa a meu convite e visitei-a em Sófia. Um dia, regressado à Bulgária numa outra visita, pedi para que ela fosse convidada a estar presente num certo ato público, por nós organizado. Foi-me chamada a atenção para o facto dela estar na oposição e isso poder ser visto como um gesto inamistoso pelo poder da época. Confirmei o convite e recordo-me que ela teve a amabilidade de se deslocar de muito longe, só para poder aceitá-lo. Depois disso, Irina foi ministra dos Negócios Estrangeiros do seu país e hoje dirige a UNESCO, funções onde sempre deu notas de grande simpatia para com Portugal. 

terça-feira, janeiro 22, 2013

"Et pourtant..."

Por ocasião da saída do seu posto, os embaixadores escrevem, em geral, aos restantes colegas estrangeiros colocados na mesma cidade ou organização, cartas de um modelo tipificado, em que, para além de anunciarem a sua partida, fazem referência às "relações, tanto oficiais como pessoais" mantidas com os colegas, que sempre "refletem as excelentes relações entre os nossos dois países e missões". Acrescenta-se mesmo que foi "um privilégio e um prazer" manter esse relacionamento.

Verdade seja que estes salamaleques, que muitas vezes nada têm a ver com a realidade das coisas, são apenas almofadas de retórica que ajudam a tentar preservar a fluidez do relacionamento entre os agentes diplomáticos, para além de todas as conjunturas políticas. Como embaixador de Portugal, país que tem uma rede muito estável de relações externas, nunca senti necessidade de ser hipócrita ao assinar estas coisas, embora o gongorismo da carta assuma, em muitos casos, um evidente exagero em termos de proximidade no relacionamento. Casos há em que nem me lembro bem da cara do colega, quanto mais da "excelência" das relações com ele mantidas. É que estamos a falar de cerca de 300 pessoas, somados os embaixadores bilaterais em Paris com os da UNESCO. Como, em relação aos mais próximos, é de bom tom deixar uma palavra adicional à mão, fácil é perceber o tempo gasto. Já tive de mudar de caneta...

(Diga-se que os meus colegas estrangeiros que são embaixadores junto da UNESCO devem estar um tanto perplexos: contando desde fevereiro de 2009, o meu sucessor irá ser o quinto chefe de missão português que vão conhecer. Em quatro anos!)

Mas, hoje, a curiosidade deste tipo de cartas prende-se apenas com facto de uma das que assinei ter sido dirigida a Charles Aznavour. É que ele é o embaixador da Arménia junto da UNESCO. "Et pourtant", nunca o cruzei nos corredores da organização ou em alguma reunião. Fica a ideia de que dá apenas o nome e muito menos a honra da sua presença. Mas não deixei de achar graça ao facto de ter tido o ensejo de me corresponder, com presunçosa intimidade, com o grande Aznavour.

Afonso Costa

Durante 10 anos, entre 1927 e até à sua morte, em 1937, Afonso Costa residiu em Paris, no Hotel Vernet, no nº 25 da rue Vernet, a dois passos dos Champs Elysées.

Sempre me pareceu significativo - embora não achasse estranho - que ninguém até agora se tivesse preocupado em deixar assinalado o local onde morreu um dos mais destacados estadistas republicanos, perseguido e exilado pela ditadura militar e pelo "Estado Novo".

Essa falha foi colmatada, passando o Hotel Vernet a consagrar, a partir de hoje, um dos seus mais ilustres hóspedes, com uma placa com os seguintes dizeres: "Afonso Costa / Ancien Premier Ministre du Portugal / a vécu dans cet hôtel / pendant son exil en France / 1927-1937".

segunda-feira, janeiro 21, 2013

Eliseu

Na passada semana, acompanhando o primeiro-ministro português, passei uma hora no palácio do Eliseu. Foi uma - provavelmente a última - das bastantes visitas que, durante os últimos 17 anos, fiz àquele magnífico "hôtel particulier", sempre impecavelmente conservado. O Eliseu reflete hoje o esplendor da República, curiosamente num "décor" que recorda tempos muito distantes dela. Para as memórias que talvez nunca escreva, durante conversas que foram dos acontecimentos no Mali ao próximo orçamento da UE, tomei notas sobre pormenores da sala e do mobiliário, complementadas por algumas liturgias do encontro.

Ontem, no "Le Figaro", o correspondente do "Die Welt" em Paris, Sasha Lehnartz, escrevia: "de cada vez que tenho o privilégio de aceitar um encontro do palácio do Eliseu, tenho a impressão de ser recebido numa audiência pelo Papa". O jornalista contrastava a sobriedade espartana das residências oficiais alemãs com o ambiente palaciano, "mistura de pompa pós-feudal e de grandeza republicana". Mas, curiosamente, não elogiava o seu modelo.

O poder também se faz de símbolos. Sem uma certa coreografia, sem alguma pompa, os cidadãos tendem a olhar para os titulares da autoridade com um sentimento de banalidade, embora quiçá de simpatia. Mas a distância que o poder cria parece ser essencial para essa mística que sustenta as hierarquias de que a política - toda a política - é feita. A questão estará sempre na sabedoria necessária para encontrar um tom exato, suscetível de sublinhar a importância da função exercida sem apoucar os cidadãos, os quais, no fundo, são a verdadeira razão de ser dos sistemas políticos. 

domingo, janeiro 20, 2013

Do "Cercle" à "Confraria"

Creio que em 1998, numa passagem por Paris, fiz uma palestra a convite um grupo de portugueses. Compunham-no empresários, gente da banca, figuras da cultura e diplomatas. Reuniam-se em jantares aperiódicos, sendo hábito convidarem uma personalidade portuguesa para lhes falar de aspetos da vida do país. O grupo tinha como nome "Cercle".

(Eu já havia vivido uma experiência similar em Londres, onde existia (ainda existirá?) o "CPE - Centro Português de Estudos", em tudo idêntico ao seu congénere parisiense.)

Em 2009, logo após a minha chegada a Paris, perguntei pelo "Cercle". Havia desaparecido, já há algum tempo. Porque achava o conceito curioso, procurei mobilizar alguns dos seus antigos integrantes. Cedo percebi que o modelo se esgotara e que não parecia haver interesse em ressuscitá-lo.

Foi então que chamaram a minha atenção para a existência de uma recém-criada "Confraria dos Financeiros", um nome, com uma irónica simplificação, dado a um grupo de jovens (em média, muito mais jovens do que os integrantes do "Cercle") que tinha um modelo de agregação idêntica. Dele faziam parte portugueses de segunda geração e pessoas colocadas em França em vários lugares técnicos de destaque, com uma predominância na área financeira, o que justificava a designação. 

Durante os últimos quatro anos, tive vários contactos com a "Confraria" e, na medida do que me era possível, estimulei o seu reconhecimento. Na passada semana, os seus integrantes convidaram-me para um jantar de despedida. Foram momentos muito agradáveis de conversa com gente interessante, integrada em setores bastantes diversos, que entre si estabelecem uma rede de amizade e conhecimentos que consagra, por si só, uma nova imagem do nosso país. 

Do "Cercle" à "Confraria", consagrou-se um rejuvenescimento e, em particular, o surgimento de gente já nascida em França e que aqui fez todo o seu percurso de ascensão profissional. Há, cada vez mais, um novo e diferente Portugal a impor-se neste país.

Maison du Portugal

Desde que cheguei a Paris, contestei sempre, aberta e publicamente, o facto da residência em que, maioritariamente, se acolhem os estudantes portugueses na cidade universitária ter deixado de ser referida como "Maison du Portugal", passando a ser designada apenas por "Residência André de Gouveia", uma importante personalidade da história da cultura portuguesa, de há cinco séculos, mas cujo nome não diz rigorosamente nada a 99,9% das pessoas que o ouvem. E, em particular, uma figura que apenas alguns especialistas estrangeiros identificam como ligado a Portugal.

A "Maison du Portugal" tem fortes tradições históricas na memória portuguesa em Paris e fiz ponto de honra tentar inverter a situação que aqui encontrei. A qual era tanto mais estranha quanto, pouco antes da minha chegada, sob o impulso do meu antecessor, a comunidade empresarial portuguesa em Paris havia-se mobilizado financeiramente para renovar radicalmente a residência, aumentando-a e tornando-a mais confortável. Tinha algum sentido, depois desse esforço, que vai aliás continuar, que a casa perdesse o caráter português?

Durante estes quatro anos, em "démarches" pessoais feitas perante as autoridades da Cité Universitaire de Paris e junto da Fundação Calouste Gulbenkian, em sessões públicas e em documentos e correspondência oficiais, lutei para que o nome "Maison du Portugal" fosse inscrito formalmente na designação oficial daquela residência, a qual, aliás, as placas de sinalização interna da Cité já reduziram à "esclarecedora" sigla RAG...

Na passada semana, fiquei muito satisfeito ao ser informado que esta "luta" acabou por valer a pena: na reunião do conselho de administração, com a anuência da direção da Cité, foi decidido que a residência passará a designar-se "Maison du Portugal - André de Gouveia". Aqui fica o meu agradecimento e os meus parabéns à diretora da casa, professora Ana Paixão, bem como ao dr. Artur Santos Silva, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. Com a cumplicidade de ambos, pudemos ter sucesso neste objetivo. A teimosia compensou...

sábado, janeiro 19, 2013

Despedidas

Estes têm sido, como é natural, os dias das despedidas, dos amigos e dos conhecidos. É um ciclo por que já passámos outras vezes e que sempre nos dá alguma medida daquilo que, ao longo de cada posto, fomos criando de relação pessoal e profissional. É um período algo "stressante" mas muito agradável, em que nos damos conta de que talvez devêssemos ter passado mais tempo com essas pessoas. Mas a vida é o que é. 

Ontem, ao final da tarde, mais de duas centenas de amigos tiveram a amabilidade e a simpatia de afrontar a temperatura negativa e a neve que cobria as ruas de Paris, para virem juntar-se a nós num encontro, não de "adieu" mas de "au revoir". Tive então oportunidade de assumir, perante eles, que nós, os diplomatas, somos uns verdadeiros privilegiados. Menos por aquilo que os sinais exteriores indiciam mas, muito mais, pelas oportunidades que fomos tendo, ao longo desta vida errante, de conhecer gente diferente, muitas pessoas interessantes, oriundas de outras culturas e com diversas perspetivas de vida. Guardamos para a vida amigos de imensas nacionalidades, alguns com quem mantemos relações regulares, outros que fomos reencontrando, outros que cruzamos a espaços, com o email e o facebook a ajudar. Essa é a verdadeira riqueza que se acumula numa carreira como a nossa, a qual, no meu caso, se suspende no final do mês.

Com boa música à mistura - Irene Lima no violoncelo, Adriano Jordão ao piano -, juntámos algumas das muitas pessoas que Paris nos proporcionou o ensejo de conhecer. Sentimos pena por não ser possivel ter conosco todos quantos nos ajudaram a transformar este nosso posto de Paris na bela jornada profissional e humana que foi. Mas cada um sabe bem o que lhe devemos.

Dei comigo a pensar que é muito interessante olhar, em perspetiva, para esse círculo de relações. Os embaixadores são diferentes uns dos outros, nas ideias, na forma de estar, nas opções que tomam. Tudo isso ajuda a defini-los, pela positiva e pela negativa. São medidos no plano profissional, desde logo por Lisboa, mas também pelos diversos setores que se ligam às embaixadas: comunidade, empresários, meios culturais, imprensa e, também, pelos estrangeiros, os outros diplomatas, autoridades e amigos locais de Portugal. Mas são igualmente avaliados no plano humano, pelo que projetam, pelo que dizem, pelo modo como se relacionam. É assim, em toda a parte.

Não conheço nenhum embaixador que, em algum posto, tenha feito a unanimidade. Há quem goste de nós, como haverá sempre quem nos olhe de forma distante, às vezes por nossa culpa, outras por falta de empatia ou por alguns terem sentido que lhes não foi dada a importância a que achavam ter direito. É a lei da vida. No que me toca, e por onde passei, tentei sempre garantir duas coisas. Em primeiro lugar, que os interesses portugueses fossem protegidos: a imagem do país, os interesses económicos, os valores culturais, a defesa dos direitos das comunidades, a manutenção de uma interlocução positiva e eficaz com as entidades locais. Mas cuidei também, sempre, em que, no plano pessoal e humano, fosse possível manter uma relação com as pessoas de onde transparecesse o respeito que devemos aos outros, a cordialidade que há que transmitir na relação com terceiros. Se consegui, ou não, fazer isso, não me compete a mim dizê-lo. 

Ontem à tarde, nos dourados quase aristocráticos da rue de Noisiel, não deixei de recordar - talvez para surpresa de alguns - que, ao longo de todo este tempo em Paris, nunca me deixei de considerar embaixador de "todo" o Portugal que por aqui está, desde logo, e a começar, por quantos vieram para França em condições muito difíceis, em registos de tragédia e de aventura humana que o país não tinha o direito de lhes exigir. E, por isso, ao lado de embaixadores estrangeiros, de empresários portugueses e franceses, de figuras gradas da vida social e política parisiense, tivemos o gosto de ter conosco amigos que vieram para França "a salto", que viveram no "bidonville" de Champigny, que por aqui passaram "as passas do Algarve" ou que são oriundos dessa geração. Gente de todas - de todas! - as cores políticas, de todos os estratos sociais. Hoje, simplesmente, amigos.

No final, confesso que gostei muito que a última música, escolhida e interpretada pelo Adriano Jordão e pela Irene Lima, tivesse sido de Fernando Lopes-Graça. Uma canção popular transmontana.   

Entrevista à revista "Must"

Aque horas se costuma levantar?  Em regra, tarde. Desde que saí da função pública, recusei todos os convites para atividades “from-nine-to-f...