A cidade brasileira de Salvador da Bahia
atravessou dias terríveis, com a greve da polícia a gerar uma onda
inédita de criminalidade violenta. Lembrei-me muito dos bons amigos que
tenho naquela que é a terra onde se
cruzam, de forma mais visível, as principais componentes humanas que
formaram o Brasil. Entre as quais a portuguesa, bem simbolizada no
Gabinete Português de Leitura, de que fica a foto.
Durante
muitos anos, a vida política da Bahia teve como figura tutelar António
Carlos de Magalhães, uma das poucas personalidades que os brasileiros
identificam pela sigla do seu nome: ACM (as outras duas são JK,
Juscelino Kubitschek, e FHC, Fernando Henrique Cardoso, o que julgo
significativo).
Nascido
para a vida cívica durante o regime militar, ACM foi aquilo que no
Brasil se chama um "coronel", uma figura dominadora da política e da
sociedade local, com uma força económica e mediática que garantiam o
prolongamento da sua manutenção no poder. Fazer política, na Bahia, fora
do controlo do clã ACM ou contra ele, era uma aventura, no mínimo,
muito arriscada. Personagem controversa, arregimentou, ao longo da sua vida, imensos inimigos no Brasil mas, igualmente, uma legião de seguidores na Bahia. Tendo sido um dos políticos mais poderosos do seu país, teve quase tudo o que o destino lhe poderia dar: foi deputado
estadual, prefeito, deputado federal, senador, presidente do senado,
governador do Estado, ministro, etc. Conservador nas ideias, apoiou a ditadura militar e, no quadro democrático, integrou sempre as formações
mais à direita do espetro político. De origem portuguesa, ACM tinha uma
profunda ligação afectiva ao nosso país, cujos interesses no Brasil
sempre cuidou em apoiar, quando a tal solicitado.
Em
início de 2007, a vida política baiana deu uma imensa reviravolta: o
clã ACM foi fortemente derrotado nas urnas, perdendo o governo do
Estado, que passou para o PT. Na Bahia, Portugal tinha e
tem importantes interesses na área empresarial, pelo que, logo após a
sua posse, me desloquei a Salvador para encontrar o governador recém-empossado,
Jacques Wagner. Nesse dia em que visitava oficialmente o novo poder, fiz
questão de convidar António Carlos de Magalhães para um jantar público naquele
que era - e não sei se ainda é - um dos locais mais "in" de Salvador: o
Hotel Convento do Carmo, da rede das Pousadas de Portugal. O velho
político ficou claramente agradado com o gesto do representante
diplomático português, agora que os seus préstimos potenciais para o
país onde estavam as suas origens ficavam muito mais reduzidos. Mas eu quis
manifestar-lhe, num tempo que lhe era então muito adverso, a gratidão
que devíamos a alguém que sempre mostrara gostar de nós. Para a história: ACM viria a morrer seis meses depois.
Da manhã desse mesmo dia, recordo uma
historieta que dá bem conta da complexidade da política brasileira. Eu
seguia num carro cedido pelo governo da Bahia. A certo passo, decidi
interrogar o motorista, um homem muito simples, sobre os novos rumos da
política do país: Lula tomara posse para um segundo mandato, escassos
dias antes. "Está satisfeito com a reeleição de Lula?". O homem sorriu, deliciado, e disse: "Eu votei Lula. Gosto muito dele. Fez
muito por nós, pelos pobres". Um tanto curioso, inquiri: "E ACM? Que
achava dele?". O motorista ia dando um salto no banco: "ACM? ACM é um
santo! Está ver estes viadutos, estas estradas? Foi tudo feito por ele!
Ele é o nosso pai".
Ver dois inimigos jurados serem adulados pela mesma pessoa é um milagre que só os orixás da Bahia poderiam fazer. Espero agora que esses mesmos orixás também possam ajudar a repor a calma na bela cidade de Salvador.
Ver dois inimigos jurados serem adulados pela mesma pessoa é um milagre que só os orixás da Bahia poderiam fazer. Espero agora que esses mesmos orixás também possam ajudar a repor a calma na bela cidade de Salvador.