sábado, fevereiro 11, 2012

Salvador

A cidade brasileira de Salvador da Bahia atravessou dias terríveis, com a greve da polícia a gerar uma onda inédita de criminalidade violenta. Lembrei-me muito dos bons amigos que tenho naquela que é a terra onde se cruzam, de forma mais visível, as principais componentes humanas que formaram o Brasil. Entre as quais a portuguesa, bem simbolizada no Gabinete Português de Leitura, de que fica a foto.

Durante muitos anos, a vida política da Bahia teve como figura tutelar António Carlos de Magalhães, uma das poucas personalidades que os brasileiros identificam pela sigla do seu nome: ACM (as outras duas são JK, Juscelino Kubitschek, e FHC, Fernando Henrique Cardoso, o que julgo significativo). 

Nascido para a vida cívica durante o regime militar, ACM foi aquilo que no Brasil se chama um "coronel", uma figura dominadora da política e da sociedade local, com uma força económica e mediática que garantiam o prolongamento da sua manutenção no poder. Fazer política, na Bahia, fora do controlo do clã ACM ou contra ele, era uma aventura, no mínimo, muito arriscada. Personagem controversa, arregimentou, ao longo da sua vida, imensos inimigos no Brasil mas, igualmente, uma legião de seguidores na Bahia. Tendo sido um dos políticos mais poderosos do seu país, teve quase tudo o que o destino lhe poderia dar: foi deputado estadual, prefeito, deputado federal, senador, presidente do senado, governador do Estado, ministro, etc. Conservador nas ideias, apoiou a ditadura militar e, no quadro democrático, integrou sempre as formações mais à direita do espetro político. De origem portuguesa, ACM tinha uma profunda ligação afectiva ao nosso país, cujos interesses no Brasil sempre cuidou em apoiar, quando a tal solicitado.

Em início de 2007, a vida política baiana deu uma imensa reviravolta: o clã ACM foi fortemente derrotado nas urnas, perdendo o governo do Estado, que passou para o PT. Na Bahia, Portugal tinha e tem importantes interesses na área empresarial, pelo que, logo após a sua posse, me desloquei a Salvador para encontrar o governador recém-empossado, Jacques Wagner. Nesse dia em que visitava oficialmente o novo poder, fiz questão de convidar António Carlos de Magalhães para um jantar público naquele que era - e não sei se ainda é - um dos locais mais "in" de Salvador: o Hotel Convento do Carmo, da rede das Pousadas de Portugal. O velho político ficou claramente agradado com o gesto do representante diplomático português, agora que os seus préstimos potenciais para o país onde estavam as suas origens ficavam muito mais reduzidos. Mas eu quis manifestar-lhe, num tempo que lhe era então muito adverso, a gratidão que devíamos a alguém que sempre mostrara gostar de nós. Para a história: ACM viria a morrer seis meses depois. 

Da manhã desse mesmo dia, recordo uma historieta que dá bem conta da complexidade da política brasileira. Eu seguia num carro cedido pelo governo da Bahia. A certo passo, decidi interrogar o motorista, um homem muito simples, sobre os novos rumos da política do país: Lula tomara posse para um segundo mandato, escassos dias antes. "Está satisfeito com a reeleição de Lula?". O homem sorriu, deliciado, e disse: "Eu votei Lula. Gosto muito dele. Fez muito por nós, pelos pobres". Um tanto curioso, inquiri: "E ACM? Que achava dele?". O motorista ia dando um salto no banco: "ACM? ACM é um santo! Está ver estes viadutos, estas estradas? Foi tudo feito por ele! Ele é o nosso pai".

Ver dois inimigos jurados serem adulados pela mesma pessoa é um milagre que só os orixás da Bahia poderiam fazer. Espero agora que esses mesmos orixás também possam ajudar a repor a calma na bela cidade de Salvador.

quinta-feira, fevereiro 09, 2012

Chipre

Ontem, ao receber a visita do meu novo colega cipriota, recordei-me de uma história passada em 1999, que se liga à existência das duas entidades que dividem, de facto, a ilha de Chipre. 

A República de Chipre é hoje um Estado membro da União Europeia. Cerca de 40% do seu território está sob controlo da chamada "República Turca de Chipre Norte", uma entidade criada em 1983, que só é reconhecida pela Turquia e que resultou de um conflito armado, em 1974, que opôs as comunidades cipriotas grega e turca. Nesse ano, uma invasão por tropas da Turquia, após uma tentativa de golpe de Estado para forçar uma anexação à Grécia, provocou a divisão forçada da ilha. Um complexo e não conclusivo diálogo entre as duas partes tem vindo a prolongar-se, desde então. A "linha verde" que divide ambos os espaços tem uma "buffer zone" controlada pela ONU, o que justifica a presença no terreno da sua mais antiga operação de manutenção de paz.

Nesse ano de 1999, fiz uma visita de trabalho a Nicósia, a fim de preparar a nossa presidência da União Europeia, no primeiro semestre do ano seguinte. Lembro-me de ter falado longamente com o então presidente da República, Glafcos Clerides, e com ministro dos Negócios Estrangeiros, George Kasoulides, sobre o processo de adesão do país à UE, muito apoiado pela Grécia, mas que, à época, tinha à sua frente alguns sérios escolhos, colocados por alguns parceiros. Desses interlocutores recolhi também a sua perspetiva sobre os problemas intra-comunidades na ilha.

Meses mais tarde, já no exercício da nossa presidência da União Europeia, visitei Ancara. Os turcos são a verdadeira e indisfarçada tutela de "Chipre Norte", pelo que o assunto faz parte integrante de qualquer diálogo seu com a UE. Para além da questão da sua própria adesão à UE, a Turquia deu sempre uma grande importância à questão cipriota e eu não me pude nem quis furtar-me a debater o assunto, quer com o meu homólogo, Mehmet İrtemçelik, quer com İsmail Cem, o ministro dos Negócios Estrangeiros. Cem, que já desapareceu, era um homem muito simpático e bem preparado, e conservo um livro com fotografias suas que então me ofereceu, várias da quais tiradas nos bairros populares de Lisboa. A visão de ambos esses políticos turcos era, como é óbvio, oposta à que eu recolhera em Nicósia.

Mas eu iria ter uma surpresa, nesta minha visita a Ancara. O primeiro-ministro turco, Bülent Ecevit, teve a a simpatia de me receber em audiência. Ecevit era um homem pequeno, com um ar antigo e um bigode proeminente. Era uma figura histórica da política turca, que alternou no poder executivo de Ancara com o seu grande rival conservador, Süleyman Demirel. Após as amabilidades introdutórias da praxe, colocou-me a seguinte questão: "Soube que esteve em Chipre há alguns meses. Por que razão não atravessou a "linha verde"?" Dito isto, ficou a olhar-me nos olhos, com um ar inquisitivo e profundo. Pelos vistos, estava bem informado sobre os passos dados em Chipre por alguém que mais não era do que um mero secretário de Estado de um país algo distante - um país que, no entanto, então como agora, defendia a presença plena da Turquia e de Chipre nas instituições europeias, sem que, contudo, deixasse de recusar abertamente o reconhecimento de "Chipre Norte". 

"Decidi não atravessar a "linha verde", senhor primeiro-ministro, porque estava em Nicósia a convite do governo da República de Chipre. Naturalmente, só visitei a parte da ilha que está sob o seu controlo".

Ecevit tinha, porém, uma hábil réplica preparada: "Mas o seu homólogo espanhol, poucas semanas depois da sua ida a Chipre, atravessou a "linha verde" e falou com as autoridades de "Chipre Norte"! Porque não fez o mesmo?"

Por um segundo, hesitei, mas respondi-lhe: "É verdade, mas o meu colega espanhol estava na ilha na sua capacidade de representante da presidência da União Europeia e, por essa razão, era natural que procurasse falar com todas as partes. No meu caso, estava numa visita de natureza bilateral à República de Chipre, com a qual assinei mesmo um acordo em Nicósia, pelo que não considerei que fosse esse o contexto adequado para atravessar a "linha verde"".

Ecevit não deu mostras de ter ficado muito convencido da racionalidade imbatível da minha resposta. E eu, confesso hoje, também não...

As novas escutas

Os telejornais televisivos, logo seguidos da imprensa, divulgaram, há pouco, um pequeno filme de uma conversa, na abertura da reunião do Eurogrupo de hoje, entre os ministros das Finanças de Portugal e da Alemanha.

O filme foi feito à distância, mas foi captado o som da conversa, traduzida com legendas. A troca de palavras era, naturalmente, para ser mantida sob reserva, dada a extrema delicadeza do que estava a ser comentado. Estamos perante um caso flagrante de escuta, uma invasão inaceitável da privacidade dos dois interlocutores, que não sabiam que estavam a ser ouvidos. No caso do ministro alemão, o que disse pode, facilmente, colocar-lhe problemas parlamentares.

Se há limites para as práticas intrusivas da comunicação social, este era, claramente, um deles. Uma imprensa que já segue práticas deste género autoqualifica-se. O "chicospertismo" mediático tem de ter um limite.

As contas

Um dia, no auge da negociação do tratado de Amesterdão, em 1997, o atual comissário europeu Michel Barnier, que ao tempo era ministro francês dos Assuntos Europeus, trouxe para a mesa um tema então quase "tabu": as diferentes contribuições financeiras dos países para o orçamento comunitário e o modo como isso poderia, um dia, vir a refletir-se na força de relativa dos países no processo decisório.

O assunto surgiu porque os países mais pequenos, como era o caso de Portugal, resistiam então a alterar, sob pressão dos grandes Estados, o poder de voto que tinham negociado aquando da sua respetiva entrada para as instituições comunitárias. Por essa altura, a opção que se discutia era a combinação do poder de voto com uma relativa ponderação do peso populacional de cada Estado. A França não gostava da ideia, porque isso abalava o equilíbrio formal de poder que mantinha com a Alemanha, desde a criação da CEE. E Michel Barnier notou, num tom que se pretendia de aviso aos Estados mais pobres, que se fôssemos por caminhos de fatores de diferenciação objetiva, então, mais cedo ou mais tarde, acabaríamos por ter também de considerar a desigual contribuição financeira dos Estados para o orçamento comunitário.

Confesso que a fria invocação do argumento me chocou, porque era a primeira vez que via fontalmente expostos por um responsável político, embora num quadro de discussão não pública, os limites da solidariedade intracomunitária. O argumento era rebatível em termos políticos e económicos, nomeadamente com as vantagens diferenciadas que os grandes países retiram do mercado interno, bem como de outros fatores, que não deixei de mencionar, de imediato, à mesa do debate. Mas a conversa parou por aí.

Nos últimos meses, ao observar o modo como alguns Estados tomaram conta, na prática, da gestão das contas da União, tenho vindo a pensar um pouco mais na premonição de Michel Barnier. Que acabou por se concretizar, mesmo sem uma mudança formal dos tratados.

terça-feira, fevereiro 07, 2012

Tutólogos

Tendo andado alguma coisa por esse mundo, nunca encontrei uma espécie idêntica à dos nossos "tutólogos". Refiro-me a esses predestinados portugueses que são capazes de falar e escrever sobre tudo, não no tom leve e limitado de um post de blogue ou de uma despretensiosa nota de comentário, mas em severa coluna jornalística ou cátedra televisiva, com peso e opinião reverenciada. 

Todos nós, na vida comum, nos tornamos especialistas - piores ou melhores - em alguma coisa, fruto da profissão que exercemos ou da dedicação que prestamos a um tema particular. É natural que, nessas matérias específicas, nos consideremos habilitados a "mandar bitaites", mais ou menos judiciosos. No resto dos assuntos, como comuns cidadãos, temos "opiniões", do nível das que emitimos em grupos de amigos, que valem o que valem, por mais "presunção e água benta" que tomemos. Um exemplo claro são os blogues, como este, os quais, nas diversificadas temáticas que tocam, não passam de uma espécie de conversa no "café du commerce".

O que me parece muito estranho é que se tenha consagrado no nosso país - e, como digo, não os vejo noutros países - essa categoria dos "especialistas em tudo", que tanto peroram sobre as virtualidades da descida da "taxa social única" como das estatísticas de suicídios dos adolescentes, dos méritos das opções do Paulo Bento para o centro da nossa defesa como da política do Médio Oriente, da avaliação dos professores às greves dos polícias, passando por milhares de outros assuntos, quase sempre de forma definitiva e não auto-dubitativa. E o país, reverente, para, escuta e olha-os!

Não duvido, em alguns casos, de estarmos perante gente preparada, estudiosa e ponderada, capaz de emitir opiniões sensatas e equilibradas. Noutros, a agressividade jocosa e o radicalismo sectário passam por presumir-se com graça estilística e querer fazer-se passar simultaneamente por profundo. Tenho por algumas (não todas, longe disso) dessas figuras consideração pessoal e admiração, mesmo que delas discorde. Continuo a interrogar-me, contudo, como é possível a esses "tutólogos" pretenderem ser-lhes acessível toda a complexidade da vida contemporânea, sem que alguém lhes faça perceber que correm o risco de simplificar a realidade através de uma mera e muito pessoal caricatura das coisas. E, devo dizê-lo com franqueza, choca-me que isso condicione a opinião do país que os lê ou escuta, nos espaços de saliência mediática que lhes são concedidos.

Já aqui contei uma pequena frase que alguém disse, um dia, a uma dessas figuras, mas vou repeti-la: "Eu estou quase sempre de acordo consigo, exceto quando conheço os assuntos"...

Presidenciais

As bancas das livrarias parisienses estão a ficar cheias de livros assinados pelos candidatos às eleições presidenciais francesas. E, também, de obras sobre essas mesmas personalidades, algumas mais ou menos hagiográficas, outras algo críticas.

Há dias, comentava com um amigo francês que, passado que seja o dia do ato eleitoral, as obras dos derrotados ou a eles dedicadas deixarão imediatamente de se vender, porque, pelo menos por algum tempo, essas figuras passarão ao "caixote do lixo da história", para utilizar a cruel expressão de Karl Marx.

O meu amigo reagiu, com graça: "E as obras assinadas por quem vencer as eleições? O autor delas bem gostaria de as ver desaparecer e serem esquecidas, para não ter de ver confrontada a sua prática futura com aquilo a que se compromeu por escrito..."

Não está mal visto!

segunda-feira, fevereiro 06, 2012

Isabel II

Um grande amigo, residente no Sri Lanka, mandou-me há pouco algumas belas fotografias da visita que a raínha Isabel II, de Inglaterra, fez a Portugal, em 1957, neste dia em que se celebra o 60º aniversário da sua assunção formal de funções. 

Na imagem que reproduzo, vê-se a soberana britânica com a mulher do nosso presidente da República, Berta Craveiro Lopes. E, também, o ministro dos Negócios Estrangeiros de então, Paulo Cunha, à conversa com o duque de Edimburgo.

A visita de Isabel II a Portugal fez parte de outras operações políticas e protocolares de idêntica natureza, muito ligadas à necessidade de garantir apoios à política colonial portuguesa. Lembro, neste contexto, a visita, em 1959, do imperador da Etiópia, Hailé Selassié (que, tal como a raínha, também fez uma vistosa entrada pelo Cais das Colunas), e dos presidentes da República do Brasil, Café Filho (1955) e Juscelino Kubitschek (1960), bem como do presidente Sukarno, da Indonésia (1960) e do rei da Tailândia (1960).

Em todos os casos, a Baixa lisboeta foi cenário de cortejos muito bem recheados de assistência, de que nos ficaram, para sempre, imensas fotografias a-preto-e-branco em "O Século Ilustrado". Mas pode dizer-se que as visitas de Juscelino Kubitschek e Isabel II foram, sem sombra de dúvida, as que mobilizaram um público mais sinceramente motivado. Isabel II viria a Lisboa mais tarde, em 1985, numa visita já sem o fausto de 1957.

Para se medir melhor a longevidade política da soberana britânica, consulte-se aqui.

domingo, fevereiro 05, 2012

Mentiras

O rapaz espreitou pela porta e o chefe de repartição lançou-lhe, do fundo da sala: "Entre! Entre! Ó Torquato!".

Voltando-se para o embaixador português na Mauritânia, sentado no sofá a seu lado, esclareceu: "O Torquato está cá há uns meses, é do último concurso de adidos". E olhou o adido: "O Torquato conhece o senhor embaixador Gameiro, que está em Nouakchott, não conhece?", com o Torquato a rumorar que sim.

O Torquato, embora simpático, era do género displicente e algo descuidado, gravata permanentemente descaída, um ar de quem anda ali por favor, a quem tanto se dá estar na carreira diplomática como viver à custa dos vastos rendimentos da família, cujo "social" lhe espreitava no nome e lhe permitia alguma subliminar cobertura de membros da hierarquia da casa. Entrara para a carreira quase por acaso, num bambúrrio do concurso. Era useiro e vezeiro de chegar tarde e a más horas, passava o dia agarrado ao cigarro, a ler o jornal esticado num sofá, sendo de uma lentidão exasperante na execução das escassas tarefas de que era encarregado.

"Ó Torquato, você chegou a falar com o ministério dos Assuntos Sociais, sobre a questão do acordo sobre segurança social com a Mauritânia? Aqui o senhor embaixador Gameiro precisa de saber em que ponto o assunto está."

O adido, com um ar um tanto ausente, explicou que tinha telefonado duas vezes, que não tinha obtido qualquer informação sobre o estado do projeto de acordo, mas que ia ligar de novo.

"E com quem falou você lá?", inquiriu o chefe, já em tom levemente inquisitivo.

O Torquato embrulhou-se numas explicações menos convincentes, tão pouco plausíveis que delas quase se deduzia que, na realidade, não tinha mesmo tratado do assunto.

"Está bem, está bem! Vá lá ver isso já e diga-me alguma coisa à tarde. Sem falta!", com o rapaz a desaparecer, aliviado, pela porta.

O chefe explodiu: "Desculpa lá, pá! Este tipo é um mentiroso! Já não é a primeira vez que o apanho nestas patranhas", comentou, desalentado, o chefe.

O embaixador visitante tentou moderar a irritação do amigo: "Ó homem! Deixa lá! Também não tens a certeza se o rapaz mentiu. Até pode ter tentado telefonar..."

"Estás muito enganado. Este tipo é tão mentiroso que nem sequer se pode acreditar no contrário daquilo que ele diz..."

O golo de Barcelos

Ben Gazzara (1930-2012)

Nunca foi um ator de topo. As suas origens italianas revelavam-se naquela postura, andar e olhar de "matador" que conferiam, às vezes, um tom algo vulgar e repetitivo a algumas das suas interpretações, dando a impressão de que se estava a representar a si próprio, numa espécie de Humphrey Bogart alatinado.

Só John Cassavetes soube trazer ao de cima o seu melhor, em especial no "The killing of a Chinese bookie". E embora muito longe de ser o seu melhor filme, não esquecerei nunca a Nova Iorque de Gazzara e Audrey Hepburn, no "They all laughed", magistralmente dirigido por Peter Bogdanovich.

sábado, fevereiro 04, 2012

Gioconda

Há dias, à saída de uma reunião, felicitava o meu colega espanhol por ter sido descoberta, nos fundos do museu do Prado, em Madrid, uma cópia da Gioconda, de Leonardo da Vinci, que se terá provado ser anterior à que está no museu do Louvre e que tantos milhões de visitantes tem atraído a Paris. 

O Carlos Bastarreche logo me retorquiu: "Cópia? A cópia é "aquilo" que está no Louvre. Para ver a Gioconda tem de se ir a Madrid!".

Para além da graça em si, devo dizer que sempre invejei, nos espanhóis, o modo desempoeirado e audacioso de assumir a sua grandeza, de afirmar, quiçá por vezes com alguma sobranceria, o que entendem ser o lugar do país no mundo. Muita da capacidade da Espanha de ultrapassar as suas divisões, de superar o peso de alguns das suas tragédias históricas, também deriva dessa atitude de nunca ter deixado de se olhar como o grande país que é, de conseguir transformar em força a sua fantástica diversidade cultural e humana e de ter tido a coragem de, em certos momentos, saber assumir algumas importantes ruturas.

Já fui criticado, aqui neste blogue, pelo facto de não me eximir a afirmar a minha admiração por Espanha. Resta-me acrescentar que, para que continue a poder manifestá-la, é condição sine qua non que Espanha e Portugal, reforçando embora a sua interdependência, continuem a ser duas entidades políticas bem distintas uma da outra, única forma que concebo para que possam continuar a alimentar entre si, de forma bem saudável e muito particular, "una cultura de vecindad".

sexta-feira, fevereiro 03, 2012

ONU

Pela voz do chefe da sua diplomacia, Portugal expressou no Conselho de Segurança o conjunto de razões pelas quais considera que a credibilidade daquele órgão da ONU ficará em causa se, através dele, não for possível dar expressão à indignação que atravessa os meios mais responsáveis da comunidade internacional, face à repressão sangrenta a que as autoridades sírias condenam grande parte da sua população.

A presença portuguesa no órgão mais relevante da ONU, lado a lado com outros países ocidentais, mas igualmente com parceiros do mundo árabe, defendendo os valores da paz, da tolerância e da democracia, é algo que dignifica o nosso país, que dá visibilidade a uma ação externa que é pautada pelo diálogo e pela busca de compromissos mas, igualmente, pela firmeza na defesa de princípios que entendemos essenciais para a construção uma sociedade internacional mais justa e mais estável.

Aqueles que, no passado, colocavam em dúvida o interesse e a racionalidade da opção por uma candidatura portuguesa ao Conselho de Segurança, interrogando-se sobre a utilidade desse esforço, podem ter agora a resposta através desta visibilidade de que Portugal usufrui. É que - como por aqui tenho dito várias vezes - existe por aí um país antigo, que o mundo vê hoje como um parceiro político sólido e confiável, que está muito para além das dificuldades na esfera económica que conjunturalmente atravessa. Esse é o país que a diplomacia portuguesa, como garante da continuidade da imagem externa de Portugal, procura representar e afirmar.

Blogue

E não é que nem tinha dado conta de que ontem, dia 2 de fevereiro, passaram exatamente três anos sobre a data em que este blogue se iniciou?

Com pertinácia e algum esforço, confesso, deixei por aqui colocados, sem qualquer ajuda alheia e sem um único dia de interrupção, mais de 2.100 posts, que foram objeto de mais de 17.100 comentários, oriundos de mais de 600 mil consultas de leitores, de 165 países, entre os quais se encontram 532 seguidores atentos. 

Tendo uma vida profissional bastante intensa (e que vai tornar-se ainda muito mais intensa, dentro de dias), com outros centros de interesse e diversas outras ocupações e compromissos, que preenchem as escassas horas vagas, às vezes ainda me pergunto como foi possível garantir esta regularidade. Mas a verdade é que foi...  

A brigada do asterisco

Desde 1 de janeiro, os serviços públicos estão, no cumprimento da lei, obrigados a utilizar o novo Acordo ortográfico, em toda a sua documentação. 

Para o vulgar cidadão, o uso ou não do acordo é naturalmente facultativo, como se nota, por exemplo, na significativa "brigada do asterisco", composta por colunistas que esclarecem, em orgulhosos pés-de-página, nos jornais em que debitam doutrina, a sua inquebrantável fidelidade à escrita do "tempo da outra senhora". Estão no seu pleníssimo direito, como o estava um velho familiar meu, que sempre dizia que ia à "pharmácia com 'pêagá' ", seguindo o "acordo ortográphico" do seu tempo de infância.

Ontem, ficou-se a saber que o novo diretor do Centro Cultural de Belém mandou desinstalar os corretores ortográficos existentes nos computadores e determinou o regresso à vetusta ortografia. Uma coisa é, desde já, mais do que certa: com esta decisão, aliás plenamente coerente com o que sempre defendeu, Vasco Graça Moura passou a ter, como turiferários da sua nomeação, todos quantos militam contra o Acordo, como se observa nas imensas loas que já está a receber, na blogosfera e na imprensa. Além de coerente, Vasco Graça Moura provou, uma vez mais, ser hábil, inteligente e destemido.

Teremos que aguardar as cenas dos próximos capítulos para perceber se o Acordo Ortográfico está mesmo em vigor ou se, afinal, subsiste por aí uma "região autónoma" impune, espécie de aldeia de Astérix que resiste à "ditadura" da lei democrática, escudada num preciosismo interpretativo do estatuto da instituição. Para sermos mais claros, vamos ter oportunidade de observar se a aplicação do Acordo Ortográfico, na área oficial, é, afinal, "à vontade do freguês", isto é, sujeita a uma singular interpretação do Direito internacional "à moda dos Jerónimos", o que deixaria em alguma dificuldade a própria autoridade do Estado. Seria, aliás, o cúmulo da ironia se o "novo" CCB viesse, por esta via, a transformar-se na fortaleza do "regresso ao passado" ortográfico, uma espécie de sede informal da "brigada do asterisco" e outros protestantes correlativos, reunidos em eventos contestatários, perante o olhar embaraçado das autoridades e impotência do contribuinte que alimenta a instituição.

Valha-nos a certeza de que, com tudo isto, Portugal continua a provar que é um país muito patusco.

(Sei que muitos leitores deste blogue não concordarão com este post e, quiçá, estarão já entoando um renascido "Força, força, companheiro Vasco!"...)

Egito

Há uns anos, visitei, na sua casa no Cairo, um antigo e proeminente embaixador egípcio, que havia tido uma carreira brilhante, iniciada nos tempos de Gamal Abdel Nasser, que se prolongara pelo mandato de Anwar Al Sadat e se concluíra sob a égide de Hosny Mubarak. Era um homem altamente preparado, com imenso "mundo", que havia feito o circuito das mais importantes missões diplomáticas egípcias.

A conversa derivou, a certo passo, para a política, tendo eu evocado a sucessão de Mubarak. O tempo - foi há quase dez anos - das "primaveras árabes" estava ainda longe, mas ousei perguntar se não teria chegado o momento para uma abertura do regime, em direção ao pluripartidarismo, atenta a necessidade de esvaziar as tensões políticas.

O meu interlocutor olhou-me nos olhos e, embora nada surpreendido com a minha pergunta, para ele natural num observador ocidental, retorquiu-me: "Infelizmente, ao final desta minha vida, cheguei à conclusão que o Egito só pode ser gerido por um regime autoritário. As pessoas não estão educadas para a democracia e, se acaso esse sistema viesse aqui a ser introduzido, os extremistas islâmicos acabariam por transformar este país num polo de instabilidade. E os primeiros a sofrer seriam vocês, na Europa e na América, podem crer!".

Um amigo irlandês que me acompanhava nessa conversa olhou-me, na tentativa de perceber como iria reagir, já que tinha sido eu a suscitar a questão. Por respeito pelo idoso diplomata, arranjei um circunlóquio para evitar contraditá-lo, para lhe louvar as vantagens da liberdade, para lhe dizer que, também entre nós, havia quem dissesse que o povo português não estava preparado para a democracia e que, afinal, o sistema tinha-nos conquistado, sem sobressaltos de maior.

Há pouco mais de um ano, voltei ao Cairo. Recordo-me de ter notado, de forma muito nítida, o aumento de véus na cabeça das mulheres, em especial das jovens adolescentes. Confirmei que essa crescente tendência estava a impor-se, com muita rapidez, desde a minha última visita. Um outro egípcio, bem mais liberal, que tentava ajudar-me a interpretar a evolução do país, simplificou a realidade nestes termos: "Para as jovens egípcias, o véu é hoje uma espécie de farda...". Para logo acrescentar, baixando a voz: "Esperemos que não haja guerra!".

Hoje, lembrei-me destas duas conversas que tive no Egito.

quinta-feira, fevereiro 02, 2012

Gregos (2)

O "Financial Times" de hoje faz um link para o seu "Brussels blog", onde figura um texto sobre as diferenças entre a situação económico-financeira de Portugal e da Grécia. Não deixando de notar a relevância dos nossos números, o jornal reconhece algo muito importante quanto às dificuldades orçamentais por que passamos: "muita desta situação parece dever-se mais ao agravamento do clima económico na Europa do que à falta de vontade ou à inabilidade de Portugal para pôr em prática o tipo de reformas que a UE espera do país", sublinhando que, no relatório da S&P sobre Portugal, é "feita uma acusação às grandes questões de liderança europeia mais do que a qualquer específica dificuldade em Lisboa". Nada disto resolve os nossos problemas, mas pode ser que ajude um pouco a compreendê-los.

A "bíblia" do jornalismo económico mundial parece ter, porém, alguma dificuldade própria no decifrar do mundo ibérico: a fotografia que ilustra a notícia é de... Mariano Rajoy.

Paul Krugman

Há figuras que, de tanto as lermos, se nos tornam quase íntimas. Há dois dias, ao ouvir uma conferência do prémio Nobel da economia, Paul Krugman, senti algum "déjà vu", porque muitas das suas ideias, de tanto as ler nos artigos no "The New York Times", já se tornaram a sua imagem de marca. E, porque são conhecidas, essas ideias já quase não surpreendem, não deixando, contudo, de impressionar pela sua global coerência e racionalidade. 

(De há uns anos para cá, devo confessar que, sempre que me sinto tentado a concordar com as análises feitas por economistas, tenho, no segundo seguinte, uma reação de recuo e prudência. É que me lembro da definição: um economista é alguém que no futuro nos explicará a razão pela qual as previsões que fez no passado acabaram por não se confirmar no presente. Nem sempre é assim, mas...)

Durante a sua conferência, Krugman contou uma história a que assistiu, em 1999, numa conferência em Barcelona. Nela, o economista americano Larry Summers fez ver aos espanhóis os riscos que a sua economia sobre-endividada podia vir a correr, em especial pela "bolha" imobiliária que estava a gerar. A reação do auditório da conferência foi extremamente negativa, considerando alarmista e sem sentido a prevenção feita, nesse tempo em que se vivia uma onda de otimismo em Espanha, com saldo orçamental positivo. Para Krugman, esse momento ensinou-lhe que é praticamente impossível credibilizar alarmes quando a situação é lida pela generalidade das pessoas como estando a caminhar numa direção favorável. Isto é: só aprendemos à nossa própria custa.

quarta-feira, fevereiro 01, 2012

Gregos

Hoje, à volta de um almoço de trabalho, ouvi de muita a gente, pela enésima vez, a consoladora e elogiosa mensagem de que "Portugal não é como a Grécia".

Antes de fazerem o comentário, os seus autores olhavam em volta, não fosse o meu colega grego estar a ouvir... E eu tinha esperança que ali andasse alguém da "Standard and Poor's", da "Fitch" ou da "Moody's".

Joana Vasconcelos

Será também aqui, na galeria dos espelhos do palácio de Versalhes, que Joana Vasconcelos, a genial criadora artística portuguesa, irá colocar, dentro de meses, algumas das peças criadas expressamente para uma exposição que já se anuncia como marcante na vida cultural em França.

Ontem, com Joana e alguns mecenas e promotores desse evento, estive em Versalhes para uma jornada de lançamento. O verão em Versalhes vai ter cores portuguesas.

terça-feira, janeiro 31, 2012

Nós e a crise

Será no dia 8 de março. A conferência tem por título "Portugal, a Europa e a crise económica e financeira internacional" e é organizada pelo Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), em Lisboa. 

É com muito gosto que participarei nessa justa homenagem ao professor António Romão, catedrático e antigo presidente do ISEG. Veja o programa aqui.

segunda-feira, janeiro 30, 2012

"Diplomatas"

Reproduzo hoje aqui, porque há novas razões para o fazer, um post que publiquei no dia 5 de junho de 2011:

"A nossa imprensa é sempre muito lesta quando lhe cheira a qualquer esturro que possa ligar-se negativamente à imagem da diplomacia lusa.

Há meses, um "cônsul honorário" na Alemanha apareceu envolvido em maroscas financeiras. De imediato, os títulos e os textos apontavam para "diplomata recebe luvas em negócio" ou "diplomata acusado de corrupção".

Há dias, um "vice-cônsul" no Brasil, uma categoria administrativa em má hora recém-renascida, que alguns, premonitoriamente, advertiram que poderia vir a redundar em "vício-consulados", foi acusado de desvio de fundos. Como era expectável, a comunicação social logo trouxe títulos como "diplomata roubou" e coisas do mesmo jaez.

Vamos a ver se nos entendemos: ambos os cavalheiros envolvidos no que parece serem atividades criminosas* não são diplomatas - eu diria mesmo, estão mesmo muito longe de o serem. A qualidade de "cônsul honorário" ou de "vice-cônsul", que, por todo o mundo, é exercida por pessoas geralmente muito estimáveis e de impecável honestidade, não confere a ninguém a qualidade de "diplomata", categoria profissional que tem requisitos de formação, recrutamento e responsabilidade muito específicos. Repito: um "cônsul honorário" ou um "vice-cônsul" são categorias funcionais que nada têm a ver com a carreira diplomática, salvo na circunstância de exercerem uma atividade na dependência desta.

Por essa razão, é completamente abusivo utilizar o termo "diplomata" para qualificar quem o não é, fazendo recair sobre uma profissão os "salpicos" de eventual falta de ética de quantos, noutra qualidade, agem em nome do Estado português no exterior.

Só lamento** que a entidade representativa dos diplomatas portugueses (que, por alguma razão, se não chama "sindicato dos diplomatas e ofícios correlativos"...) não tenha saído a terreiro em todos os casos, pondo "os pontos nos is", denunciando a difamação e ensinando, por uma vez, aos plumitivos de serviço aquilo que a sua profissão, pelos vistos, não lhes soube ensinar."

*Em tempo: o vice-cônsul na Alemanha foi já condenado. O vice-cônsul no Brasil está fugido

**Em 1.2.02, a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses veio a público clarificar este assunto. Fico satisfeito.

Livrarias

A livraria Portugal, na rua do Carmo, em Lisboa, vai fechar. A Camões, no Rio de Janeiro, atravessa muitas dificuldades.

Para quem gosta de livros, estas notícias não são agradáveis. Por mim, não tenciono comprar um "kindle".

domingo, janeiro 29, 2012

Curt Mayer-Clason (1911-2012)

Ontem, dei-me conta pelo jornais de que morreu, em Munique, com 101 anos, Curt Meyer-Clason.

O nome dirá pouco a gerações recentes, mas a cultura e a liberdade criativa ficaram a dever bastante a este alemão, que dirigiu o Instituto Goethe, em Lisboa, entre 1969 e 1976. 

Viveu duas guerras e duas derrotas alemãs. Durante a 2ª guerra mundial esteve internado num campo de "observação", no Brasil, onde estava como representante comercial, como estrangeiro suspeito, depois de Getúlio Vargas ter decidido mudar de posição em favor dos aliados. Foi na detenção que tomou conhecimento dos grandes escritores brasileiros, tendo-se tornado para sempre íntimo de Guimarães Rosa. Regressado à Alemanha, em 1954, editou e escreveu livros, tendo-se dedicado a traduzir e a fazer conhecer uma imensidão de autores de língua portuguesa e espanhola. 

Mas foi a chefia do centro cultural Goethe, ao Campo de Santana, onde me recordo dele a preponderar com uma pronúncia bizarra da nossa língua, que trouxe Meyer-Clason mais perto de alguns portugueses. O seu "Diários portugueses" dá conta desse tempo, sendo o livro um culto olhar estrangeiro sobre nós próprios. A instituição que chefiava funcionou com um saudável espaço de acolhimento, de que a cultura democrática portuguesa muito beneficiou. Rui Vieira Nery chamou-lhe "um polo insubstituível de produção artística de vanguarda e um espaço de liberdade criativa inusitada no meio das brumas da censura e da repressão". Sem partidarismos nem radicalismos, Meyer-Clason soube perceber os anseios de um certo Portugal e entender que por aí passava a chave do futuro do país.

Na hora do desaparecimento de Curt Meyer-Clason, e para que não se diga que a nossa memória se torna ingrata, quero aqui deixar uma palavra de saudade por um homem que também ajudou a construir a nossa liberdade.

O primeiro dia

Hoje, acordei a cantarolar isto.

Comentários

O tema da liberdade de expressão e da utilização das caixas de comentários, ligadas às edições informáticas dos jornais, é hoje abordado no "Diário de Notícias" por Ferreira Fernandes, de um modo em que me revejo.

Valeria a pena fazer um estudo sócio-psicológico do que se escreve nesses espaços da nossa imprensa, sob nomes falsos, em moldes muitas vezes insultuosos, dando curso a rumores e a insídias que esses escribas nunca teriam a coragem de colocar, se houvesse lugar a uma clara identificação do autor. Com grande irresponsabilidade, esses sítios informáticos abrem as suas colunas a energúmenos que, sob um cobarde anonimato, dizem o que lhes vem à cabeça, como quem escreve numa parede de um WC público, embora neste caso haja a atenuante do nível que o lugar inspira.

Às vezes, salta por aí uma frase desesperada: "não foi para isto que se fez o 25 de abril!". É verdade. A liberdade da Revolução dos cravos não foi criada para abrir caminho à impunidade. A liberdade de expressão é um bem suficientemente sagrado para não ser colocado em causa por quem dela se aproveita para a expressão vulgar dos seus ódios e fantasmas pessoais. É que, pouco a pouco, o surgimento de uma reação legítima contra esses abusos pode vir a criar um ambiente propício ao apelo a certos tipo de censura. A solução? Muito simples: acabar com os anonimatos e pseudónimos e só aceitar comentários sob o nome registado e público de quem os escreve. Podem crer que a "coragem" se esvairia.

sábado, janeiro 28, 2012

Outros tempos

Um programa de televisão trouxe-nos, ontem à noite, Régis Debray e Jean-Pierre Chevènement, num debate interessante, onde o conceito do "sagrado" serviu a Debray para uma brilhante incursão filosófica e a Chevènement para abordar a "sacralização" que, a sua ver, importa manter como elemento identitário do poder de Estado.

Debray e Chevènement fazem parte das minhas memórias de juventude. Com o primeiro, "viajei" os tempos em que andara com Guevara nas matas da Bolívia, nessa desesperada e infausta tentativa de criar "um, dois, três, mil Vietnames". Com o segundo, segui as páginas dos "Cahiers" do CERES (Centre d'Études e Recherches Socialistes), o início da aventura cívica desse homem quase solitário, em quem o soberanismo não matou, por completo, uma certa ideia de Europa. Ambos trabalharam com Mitterrand, embora de modo desigual. Hoje, Debray escreve filosofia e ensina. Chevènement também escreve sobre as águas políticas que ainda teima em agitar.

Há cerca de dois anos, fui apresentado a Jean-Pierre Chevènement. Perguntou-me várias coisas sobre Portugal e quis saber por onde andava Otelo. Otelo é, por aqui, um nome recorrente na memória dos tempos de abril, um período que se liga fortemente à imagem contemporânea de Portugal.

No ano passado, falei com Régis Debray, para convidá-lo a vir à Embaixada, para um debate com uma figura portuguesa, sobre as diferenças no conceito de República, entre a França e Portugal. Não recusou em absoluto, mas foi dizendo que o tema não estava já no centro das suas preocupações (eu lembrava-me dos seus "Que vive la République!" e do "La République expliquée à ma fille"). Sugeriu-me que convidasse... Jean-Pierre Chevènement.

Por razões várias, o meu projeto não teve sequência. Ontem, ao vê-los, juntos e cúmplices de um passado onde cruzaram as suas fidelidades, lembrei-me deles noutros tempos. E, sei lá bem porquê!, também de mim, nesses mesmos tempos.

quinta-feira, janeiro 26, 2012

Para cantar até amanhã

When I get older losing my hair many years from now
Will you still be sending me a valentine,
Birthday greetings, bottle of wine?
If I'd been out til quarter to three would you lock the door?
Will you still need me, will you still feed me,
when I'm sixty-four?

Oh, you'll be older too - Ah!
And if you say the word, I could stay with you

I could be handy mending a fuse when your lights have gone
You can knit a sweater by the fireside,
Sunday mornings, go for a ride
Doing the garden, digging the weeds, who could ask for more?
Will you still need me, will you still feed me,
when I'm sixty-four?

Every summer we could rent a cottage in the Isle of White,
If it's not too dear
We shall skrimp and save, grandchildren at your knees,
Vera, Chuck, and Dave

Send me a postcard, drop me a line stating point of view
Indicate precisely what you mean to say,
Yours sincerely, wasting away
Give me an answer, fill in a form, mine forevermore
Will you still need me, will you still feed me,
when I'm sixty-four?

Prognósticos

Com crescente regularidade, amigos e conhecidos portugueses perguntam a minha opinião sobre o possível desfecho das próximas eleições presidenciais francesas. Lamento sempre não poder satisfazer a sua curiosidade, mas a verdade é que um diplomata estrangeiro não sabe, sobre este assunto, mais do que... os franceses, que são quem acabará por escolher o seu presidente, para os cinco anos seguintes. E eles também não sabem...

Se há algo que aprendi na vida diplomática foi relativizar a minha própria opinião. E a não acreditar na minha presciência. Uma das vantagens da rotação regular dos embaixadores, entre os vários postos, tem a ver com a necessidade de produzir olhares novos sobre a realidade local. A experiência mostra que um diplomata que se eterniza num posto, independentemente de poder, por essa via, garantir um grande conhecimento da vida e da sociedade do país, de criar uma rede forte de interlocução e teste de ideias, pode também facilmente acabar por "go native" (isto é, passar a ter as reações de um local) ou perder o rigor na perspetiva de observação das mutações no país onde está acreditado. É que, rotinado numa certa leitura, um diplomata que fique por muito tempo num posto pode não estar aberto ao surgimento de novas realidades ou, confrontado com elas, pode ser tentado a rejeitá-las por as considerar incompatíveis com a grelha de observação em que se viciou.

Há uma história, auto-crítica, que costumo contar, passada comigo em Angola, nos anos 80. À chegada do novo embaixador, António Pinto da França, desenhei-lhe um quadro muito completo da relação de forças no seio do comité central do MPLA. Expliquei-lhe quem era quem, o que cada um representava, qual a política de alianças de grupos que prevalecia, tudo isso com o objetivo de apontar para aquilo que iriam ser as mudanças na liderança angolana, a ocorrerem no próximo congresso do partido.

O novo embaixador tomou nota mas, por si próprio, com os conhecimentos que entretanto foi criando, começou a fazer as suas próprias avaliações e juízos. Passado algum tempo, dei-me conta de que os telegramas que enviava para Lisboa, sobre a situação política interna angolana, começavam a afastar-se da linha que eu tinha como correta. Mais: a sua leitura sobre as personalidades que iam subir ou descer no próximo congresso do MPLA começava a divergir fortemente daquela que eu, observador com mais de três anos da vida política local, considerava dever ser transmitida às nossas autoridades. Isso preocupava-me. As minhas fontes, que tinha por excelentes e testadas, eram perentórias sobre as hipóteses de evolução tendencial do equilíbrio político, mas eu não conseguia convencer disso o meu embaixador. Não querendo contrariá-lo, lembro-me de ter trocado impressões sobre o assunto com outros diplomatas em posto, com vista a que o tentassem chamar à razão, reverter o caminho errado pelo qual prosseguia nas suas análises, cada vez mais diferentes das minhas. Mas não tive qualquer sucesso.

"To make a long story short", como dizem os anglo-saxónicos, as coisas passaram-se exatamente como o embaixador António Pinto da França as estava a ver e não como eu pensava que elas iam ser. O tempo em posto, por vezes, "desajuda" mais do que favorece.

Mas, afinal, qual é a minha perspetiva sobre o que sucederá politicamente em França, neste primeiro e decisivo semestre? O que penso sobre o assunto reservo-o, naturalmente, para as minhas autoridades. Mas devo adiantar que, nesta matéria, é capaz de ser prudente seguir o famoso preceito daquele lateral-direito de uma equipa do norte que, perguntado sobre como via a partida que o seu clube ia disputar, adiantou, com simplória sabedoria: "Prognósticos? Só no fim do jogo".   

Paula Rego

O novo Centro Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris começa o ano da melhor forma: uma bela exposição de Paula Rego, uma pintora portuguesa que a França não conhece bem e a quem o Reino Unido, que não brinca em serviço em tudo quanto tem real qualidade, costuma qualificar como "Portuguese born British painter". Paula Rego vive em Londres desde os anos 50, mas a sua pintura nunca abandonou a memória da sua infância e juventude em Portugal, onde agora tem um belo museu.

Tenho pena de não haver um filme da fantástica explicação por ela dada a Mário Soares, em 1993, sob o olhar da comitiva que acompanhava a visita presidencial ao Reino Unido, mostrando as figuras representadas no mural que foi convidada a pintar na "Sainsbury wing", da National Gallery. Naquele seu jeito de simplicidade quase desarmante, que às vezes parece contrastar com a genial brutalidade de algumas das suas alegorias, Paula Rego desenhava em palavras cada personagem e revelava os modelos reais em que se inspirara: "Aquele é um homem que ia a minha casa trabalhar, aquela é uma senhora que faz limpeza lá em baixo, na cave do museu, e que eu convidei para posar..."

quarta-feira, janeiro 25, 2012

Álcool

Más notícias para a vinicultura!

Hoje, tive um almoço de trabalho com gente da banca. Praticamente ninguém tocou em vinho, durante toda a refeição. Ontem, ofereci um jantar, em casa, a figuras ligadas à vida académica. Ninguém aceitou um digestivo. Anteontem, estive num almoço em que foi convidado um proeminente político francês. Nem ele, nem a maioria dos presentes, passaram da "Évian" ou da "Perrier".

Começo a ficar preocupado com esta deriva espartana. No meu caso, confesso, reajo. A diplomacia económica obriga a sacrifícios.

terça-feira, janeiro 24, 2012

Irão

A questão nuclear iraniana é suficientemente séria para justificar, em absoluto, a imposição das sanções agora decididas pela União Europeia. A UE deu mostras de um grande sentido de responsabilidade ao conseguir gerar um compromisso interno em torno do novo quadro de sanções. Depois das concludentes análises feitas pela Agência Internacional de Energia Atómica ao programa nuclear iraniano, seria altamente perigoso deixar o respetivo regime prosseguir, sem uma forte reação, o seu caminho em direção à arma nuclear.

Alguns, inocentes ou de má fé, dirão que a legitimidade de Teerão querer possuir a arma nuclear é, pelo menos, idêntica à de outros Estados que também a obtiveram por meios menos claros, sem que, por isso, se sujeitem a um controlo ou a uma pressão internacional de idêntica natureza. Custa ter de assumir isto, mas uma atitude de meridiano realismo leva à necessidade de pensar que, qualquer que seja o panorama nuclear global, o aparecimento de novos atores nesse "mercado" é um risco que deve ser evitado a todo o custo. E que esgrimir juízos de mera equidade, numa área com a delicadeza do tema nuclear, é um suicídio a prazo. 

Pena é que países como a China ou a Rússia, a quem, manifestamente, a nuclearização do Irão nada interessa no plano estratégico, não tenham querido, a tempo e horas, aliar-se a uma pressão internacional sobre Teerão, no quadro da ONU. Se a troca de argumentos conjunturais com as potências ocidentais não tivesse prevalecido sobre um mínimo de razoabilidade, talvez se pudesse ter evitado a situação a que hoje se chegou, agora acrescida com novos e graves riscos envolvidos.

É que, para além da tensão militar no Golfo, de que o sinal mais evidente é a situação que se vive no estreito de Ormuz, a inevitável subida do preço do petróleo vai acabar por traduzir-se num peso acrescido sobre o esforço de recuperação da economia internacional. Resta esperar que nenhum tropismo belicista, quiçá mobilizado por agendas políticas nacionais, venha ainda somar fogo às chamas.

Olympia

Amália Rodrigues criou, para sempre, um laço mítico entre o "Olympia" e os portugueses. Os artistas nacionais que, depois dela, encheram a sala do boulevard des Capucines devem ter experimentado essa sensação.

Ontem à noite, era patente que Kátia Guerreiro se sentia imbuída desse mesmo sentimento, durante o magnífico espetáculo que protagonizou. E porque era outra vez o fado que nascia naquele palco, tornava-se ainda mais claro, mesmo para aqueles que nunca chegaram a vê-la ao vivo, que a imagem de Amália pairava por ali.

domingo, janeiro 22, 2012

A embaixada croata

A Croácia decidiu ontem, por referendo, aderir à União Europeia. O processo negocial estava já concluído, pelo que a entrada daquele que será o 28º membro vai ter lugar em meados de 2013. Fica assim provado que a União, apesar de todas as suas crises, continua a ser uma referência atrativa de estabilidade para os países do continente.

A Croácia declarou a sua independência em Junho de 1991, no quadro de um complexo processo que levou à divisão da antiga Jugoslávia. Terríveis atos de guerra e tensões étnicas abalaram então a região balcânica, onde hoje, para além da Croácia, figuram, com estatuto de Estados independentes, a Eslovénia, a Bósnia-Herzegovina, a (antiga República jugoslava da) Macedónia, a Sérvia, Montenegro e o Kosovo.

Deve dizer-se que o objetivo croata estava longe de fazer a unanimidade europeia. O regime político do Estado dirigido por Franjo Tudjman era alvo de fortes críticas em matéria de respeito pelos direitos humanos e pelas regras da Convenção de Genève, durante a guerra inter-jugoslava. Além disso, na memória histórica coletiva, subsistia, em muitos países europeus, um forte ressentimento contra os croatas, por virtude da ligação que o "Estado livre" dirigido pelos "oustachis" pró-nazis de Ante Pavelic havia tido com Hitler, durante a segunda guerra mundial. 

A Alemanha, em especial o seu MNE Hans-Dietrich Genscher, foi manifestamente o país mais aberto ao reconhecimento da independência croata por parte das instituições europeias, que só viria a ter lugar em 15 de janeiro de 1992 - precisamente num período em que Portugal detinha a presidência da União Europeia. Recordo a minha quase solidão, como diplomata que representava a presidência das Comunidades Europeias (só em fevereiro desse ano seria assinado o tratado de Maastricht, que criou a "União Europeia"), no cocktail oferecido pelos croatas em Londres, ao final desse dia. A independência da Croácia, se bem que aceite, estava longe de ser saudada com entusiasmo pela generalidade dos países europeus.

A exemplo do que, com frequência, acontece com Estados em busca de reconhecimento, os croatas haviam desenvolvido, a partir de 1991, um pouco por todo o mundo, uma diplomacia pública de convicção, tentando fazer perceber as razões que justificavam a sua autonomização como entidade independente, sucessora do anterior Estado federado existente dentro da Jugoslávia. 

Nesse sentido, a nossa embaixada em Londres havia sido visitada, com alguma regularidade, por um médico croata, com nacionalidade inglesa, que informalmente representava os interesses de Zagreb em Londres. Chamava-se Drago Stambuk, era um poeta com vasta obra publicada e aparecia como regular portador, não apenas da argumentação das suas autoridades em favor do processo de independência, mas igualmente de razões contra as acusações de que o seu regime era alvo (e que infelizmente vieram a ser comprovadas) sobre as derivas autoritárias do governo Tudjman, nomeadamente o terrível tratamento dado aos sérvios residentes na zona croata da Krajina. 

Sem nunca lhe esconder as dúvidas que na Europa comunitária se alimentavam sobre os métodos do regime de Franjo Tudjman (e que, a título pessoal, partilhava em pleno), mantive sempre com Drago Stambuck uma excelente relação pessoal, que se transformou mesmo em amizade.

Um dia, após o anúncio reconhecimento da independência do seu país pelo Reino Unido, Drago Stambuk telefonou-me: tinha sido encarregado de abrir a embaixada croata em Londres. Não podia ser embaixador, porque tinha nacionalidade britânica, mas teria a responsabilidade prática de preparar toda a estrutura de representação croata em Londres. Como não sabia como proceder, "por onde começar", pediu a minha ajuda. Recordo longas conversas, em minha casa e em "pubs", durante as quais "desenhámos" a estrutura da primeira embaixada croata do Reino Unido. Nesses contactos, dei-lhe conta das formas de proceder face às autoridades locais, de "quem era quem" no Foreign Office, do modo de feitura das "notas verbais" e da preparação de outra documentação que faz parte da liturgia diplomática bilateral. Creio mesmo ter-lhe oferecido um exemplar da "bíblia" anglo-saxónica da profissão diplomática, o "Satow's guide to diplomatic practice". Guardei sempre na memória essa minha contribuição para a montagem da primeira embaixada croata em Londres. 

Com a minha saída do Reino Unido, perdi Drago Stambuk de vista. Lembro-me de ter falado dele com outros croatas que fui conhecendo, nomeadamente em visitas que fiz à Croácia. Vim a saber que prosseguira a carreira diplomática e que fora embaixador em vários países. Há meses, enviou-me um mail de Brasília, onde, desde agosto de 2011, é embaixador. Por pouco que nos não tínhamos cruzado de novo.

sábado, janeiro 21, 2012

Protocolo

Há dias, fui jantar a uma determinada embaixada, aqui em Paris. Deveríamos ser oito pessoas à mesa; só estivemos seis. Um casal faltou, sem dar qualquer explicação, fruto de uma eventual confusão com a data ou outra razão de última hora. Depois de mais algum tempo de espera do que habitual, a mesa "rearranjou-se" a tudo correu a preceito. Imagino que, no dia seguinte, os donos da casa tenham esclarecido com os faltosos o acontecido. 

Este é um cenário que pode ocorrer a qualquer um: já me aconteceu, algumas vezes como anfitrião, uma vez como faltoso, frequentemente como testemunha. Mas, por vezes, em jantares oficiais, um incidente deste género pode tornar-se bastante desagradável. Já assisti a várias confusões similares, algumas delas mesmo com impactos políticos, por vezes não deliberados. 

A cena mais bizarra em que estive envolvido passou-se em Genebra, em 2001. Eu era vice-presidente do Comité Económico e Social (ECOSOC) da ONU e, com o respetivo presidente, tinha-me deslocado de Nova Iorque para com ele dirigir as reuniões de trabalho do chamado "segmento de alto nível", que aí tem lugar durante o mês de julho de cada ano. São duas semanas de longas reuniões plenárias, encontros sectoriais e diversos outros eventos formais, com alguma negociação pelo meio.

Logo no início das sessões, recebi um convite para estar presente num jantar que um grupo de países do G77 (o grupo dos "países em desenvolvimento", que hoje agrupa, não os originais 77 Estados, mas 130 países) iria organizar, de homenagem ao presidente do ECOSOC, um diplomata africano, representante do seu país na ONU. 

Aceitei, como é óbvio, e, num determinado dia, lá fui para o jantar, que tinha lugar na residência de um embaixador asiático. O evento envolvia algumas largas dezenas de pessoas, desde diplomatas a funcionários superiores da ONU. Havia uma mesa principal, retangular, num modelo a que eu chamo "última ceia", e várias mesas redondas. O lugar do presidente do ECOSOC era à direita do dono da casa, à esquerda de quem eu me sentava.

Ao final de mais de uma hora de espera, constatou-se que o convidado de honra não aparecia. Ter-se-ia perdido no caminho? Teria feito confusão com a hora ou a data? Ainda tentei o seu telemóvel, mas estava desligado. Nas conversas, prolongavam-se as dúvidas. A certo passo, com muitos convidados a olhar já para os relógios, o anfitrião não teve outra solução senão decidir passar à mesa, mesmo sem o homenageado. 

Porém, o dono da casa, em lugar de procurar "aligeirar" a ocasião, informalizando-a, teimou, de forma um tanto estranha, em manter a prevista homenagem, não obstante a ausência do homenageado! E, com o lugar vago à sua direita, leu um discurso escrito, com elogios rasgados ao ausente. No final, para imenso espanto de todos e insuperável embaraço meu, passou-me a palavra, na minha qualidade de vice-presidente.

Aquela era uma das ocasiões em que um bom orador, com ironia e sentido de oportunidade, teria podido fazer uma intervenção de antologia. Eu não estive à altura do momento de humor que se me proporcionava. Disse umas palavras de circunstância e de agradecimento em nome do meu colega, sem ousar um registo divertido que o momento proporcionava, talvez para evitar ofender o anfitrião e alguns dos presentes.

Na manhã do dia seguinte, no palácio das Nações, procurei afanosamente o presidente do ECOSOC: "Então ontem faltaste ao jantar em tua homenagem?!" O homem olhou para mim, impávido, com um ligeiro sorriso, comentando: "É verdade! Não me sentia muito bem para ir ao jantar. Fui ao cinema..."

O protocolo, tal como os costumes, pode ser muito diferente, de país para país.   

Messi

Há dias, passei hora e meia a "roer-me", ao assistir a mais uma derrota do Real Madrid face ao Barcelona. Não que tenha qualquer simpatia particular pelo Real ou um "azar" ao Barça: mas apetecia-me que Mourinho e Ronaldo ganhassem o jogo, até para colocar um fim à "malapata" que os tem perseguido no "derby" espanhol. 

No futebol, sou um patriota primário: para além de gostar de ver ganhar (todas) as equipas portuguesas que defrontam estrangeiros, desejo sempre sucesso às equipas estrangeiras onde estão portugueses. Não escondo que, numa ocasião ou outra, tive tentações para abandonar estes princípios, mas julgo ter sempre resistido. Mais do que pelos treinadores ou jogadores, anseio por essas vitórias porque sei bem o que elas significam para os nossos compatriotas que vivem no exterior, a quem uns suplementos de ânimo fazem bem falta, em especial nos dias que correm.

Mourinho e Ronaldo, uma vez mais, não ganharam. E não mereciam ganhar, pelo "jogo jogado". E, em especial, pelo facto do Barça dispor de Messi, essa maravilha da natureza que desequilibra tudo. Fui um fã da astúcia tática de Puskas e Beckenbauer, admirador da excecional leitura de jogo de Platini ou Croyft, conquistado pela codícia de Di Stefano e Maradona, maravilhado pela "jonglerie" de Pelé ou Best. Mas, sem cair no exagero de o considerar o melhor jogador de sempre, acho que há em Messi algo de especial que nos traz toda a alegria do mais belo jogo do mundo. Aquele rendilhado numa passada curta, a aceleração súbita com a bola atraída ao pé ou a visão instantânea para a assistência oportuna são qualidades muito raras.

Há dias, no "El País", António Lobo Antunes saiu-se com esta frase: "Ah, si pudiera escribir como Messi juega al fútbol!". Ficou tudo dito. 

Afeganistão

A decisão ontem anunciada pelo presidente Nicolas Sarkozy, de suspender temporariamente a atividade das tropas francesas presentes no Afeganistão, na decorrência da morte de quatro soldados seus e ferimentos em vários outros, provocada deliberadamente por um militar afegão, foi um gesto que encontrou grande eco na opinião pública deste país. Com efeito, há qualquer coisa de estranho quando tropas que estão no terreno para ajudar à formação e à ação de pacificação de um exército se tornam vítimas indefesas de membros dessas mesmas forças armadas, por virtude da falta de um mínimo de condições de segurança para a sua atividade.

O envio de forças para o Afeganistão, por parte de vários países, que se iniciou há cerca de uma década, foi um gesto de solidariedade política para com os Estados Unidos, no pós-11 de setembro, e, ao mesmo tempo, foi o reconhecimento de que a segurança futura de todos nós começava nessa longínqua fronteira, onde o terrorismo se afirmava e prosperava com impunidade. Foi uma iniciativa justa, coberta por um mandato internacional incontestável, cuja legitimidade não pode ser posta em causa. E Portugal foi, com toda a naturalidade, parte desse esforço, que honra a sua política externa.

Os resultados desta iniciativa estão, porém, muito longe das expetativas então criadas. O Afeganistão é uma sociedade muito complexa, onde os aliados internos de quantos pretendem ajudar à pacificação do país parecem, por vezes, enredar-se em estranhas flexibilidades táticas com o inimigo, muitas vezes cruzadas com comprovadas venalidades. Dá frequentemente a sensação de que aqueles que se esforçam por criar condições para uma sociedade afegã mais justa e democrática são como que forçados a "respeitar" um certo relativismo cultural, tido como essencial para a estabilização do poder interno, mesmo à custa de uma fragilização de princípios básicos em matéria de direitos fundamentais. E, aqui e ali, fica a impressão de que algum transigência, nomeadamente na política de alianças, pode colocar em causa o caminho para o futuro democrático e de tolerância que não pode ter deixado de estar por detrás da contribuição externa para a operação militar.

Começa a ficar claro que os parceiros internacionais do governo afegão, que têm procurado encontrar soluções para garantir as melhores condições para a solidificação do seu estatuto de autoridade, se começam a interrogar sobre se esse imenso esforço está a ser devidamente recompensado com reais resultados e com um total empenhamento de quantos, no país, têm obrigação de acelerar as condições para virem a tomar nas suas mãos, de forma autónoma, o seu próprio futuro.

A decisão francesa de repensar a sua ação no Afeganistão, deixando aberta a porta a uma possível retirada das suas tropas antes da data prevista de 2014, no caso de não encontrar uma resposta satisfatória às suas preocupações, é talvez um momento de verdade que pode ser útil a uma reflexão mais alargada, que ajude a ver mais claro quanto ao futuro do conjunto da ação militar internacional no país. O respeito pelos mortos em ações militares no Afeganistão, como os muitos que a França já teve de enfrentar nesta década, justifica bem este gesto. 

sexta-feira, janeiro 20, 2012

Blogue da Embaixada

Para quem esteja interessado nas atividades quotidianas da representação diplomática portuguesa em França, o Blogue da Embaixada de Portugal em Paris vai dando disso conta. Vale a pena lembrá-lo.

quinta-feira, janeiro 19, 2012

Guimarães

É já amanhã que arranca a programação de Guimarães - capital europeia da Cultura 2012. 

Como membro do Conselho Geral da organização, lamento imenso não poder deslocar-me à cidade, para me juntar à celebração deste dia festivo.

Tenho esperança que este projeto, cuja cuidada programação honra o país, possa concitar os aplausos que lhe são devidos. E desejo vivamente que as aves agoirentas, os profissionais do despeito mesquinho e as más-línguas velhas e relhas do Portugal azedo e reacionário, venham a ser caladas com o êxito desta iniciativa.  

Falkland/Malvinas

Foi já há 30 anos. Na velha lógica segundo a qual um conflito exterior se constitui num útil fator de reforço da unidade nacional e contribui para o esquecimento dos problemas internos, a ditadura militar argentina decidiu ocupar as ilhas Malvinas, o arquipélago adjacente ao seu território, que o Reino Unido mantém, desde há muito, sob a sua soberania (e a que chama ilhas Falkland). Tratava-se de dar concretização a um sentimento histórico que de há muito atravessa o imaginário argentino, que considera como um injustificável resquício colonial a presença britânica nas suas costas (um pouco como sucede com Gilbraltar, perante a Espanha, ou sucedia com Hong-Kong, perante a China).

A reação britânica acabou por ter uma dimensão inesperada. Meses antes, o vice-ministro Nicholas Ridley havia tentado convencer a população das ilhas a aceitar uma compensação financeira, em troca do seu acordo com um modelo de "leaseback" que permitiria a retoma, a prazo, da soberania argentina. Esta atitude parecia indiciar uma fragilização da vontade de Londres de manter a presença no arquipélago. Mas os argentinos "leram" mal a disposição britânica: o Reino Unido reagiu, "à antiga", à tentativa de invasão e enviou uma imensa esquadra que, embora com significativo custo, mas com um reconstituído orgulho, retomou o controlo das ilhas. A primeira-ministra Margareth Thatcher obteve uma retumbante vitória militar, que acabou por funcionar como um "boost" político para a manutenção dos conservadores no poder.

Eu vivia então na Noruega e recordo bem as lágrimas do meu colega argentino, Miguel Angel Cuneo, num final de tarde em minha casa, comentando a humilhação a que o seu país fora sujeito, dividido entre o que era um desiderato nacional e as consequências pesadas de uma iniciativa mal sucedida. O afundamento do cruzador "General Belgrano", a "jóia" da armada argentina, foi talvez a imagem mais dramática dessa imensa e histórica derrota, que acabou por representar o princípio do fim da ditadura militar de Buenos Aires.

Ao tempo da preparação do envio das tropas britânicas, o Reino Unido fez, em Lisboa, uma diligência junto do MNE, no sentido de poder utilizar facilidades nos Açores, como ponto de apoio da sua frota marítima. O secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros de então, o embaixador Leonardo Mathias, solicitou que o pedido fosse feito, formalmente, "à luz do tratado de Windsor", procurando, desta forma hábil, assegurar, de um modo implícito, que os britânicos se sentiam vinculados ao espírito da "oldest alliance". O embaixador britânico Hugh Byatt, não sem uma visível relutância, acedeu a apresentar uma nota com o "wording" exato que o nosso governo pretendia, referindo o tratado de Windsor. Ora esse era exatamente o mesmo tratado que Londres se havia recusado a considerar como invocável, quando, exatamente duas décadas antes, o governo português o havia lembrado, ao solicitar a ajuda de Londres, aquando da ocupação, pela União Indiana, das possessões portuguesas na costa malabar.

Dizia Disraeli, antigo primeiro-ministro britânico, que "a Inglaterra não tem amigos, tem interesses". Neste caso, a diplomacia portuguesa provou a Londres que, às vezes, pode ter interesse em ter amigos...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...