sábado, dezembro 31, 2011

Conhecimentos

Na carreira diplomática, conhece-se muita gente. Esse é apenas o efeito colateral de uma profissão que, pela sua natureza, implica imensos contactos. Quando colocados no estrangeiro, os diplomatas acabam por ter um conjuntural acesso a pessoas, instituições e círculos sociais que estão vedados, em regra, a muitos outros cidadãos. Nas suas próprias capitais, dependendo das funções exercidas, muitos diplomatas são cortejados pelas embaixadas estrangeiras, sedentas de apoio para a obtenção de facilidades.

A primeira regra que um diplomata deve aprender é que esse seu estatuto pseudo-social é limitado no tempo e deriva apenas, ex officio, das funções que transitoriamente ocupa. E que, em regra, isso acaba com o termo dessas mesmas funções. Quando vivi em Londres, ia todos os anos ao "garden party" oferecido pela raínha, que sempre saudava pessoalmente os diplomatas numa receção de gala em Buckingham. Porquê? Apenas porque eu trabalhava então na nossa embaixada. Agora, quando vou a Londres, se um dia quiser visitar o palácio real, compro um bilhete e sigo o guia turístico. E raínha, nem vê-la!

Perceber a naturalidade disto é sintoma de mero e proverbial bom-senso. Mas, infelizmente, nem todos os diplomatas o têm. Conheci colegas, felizmente poucos!, que ficaram convencidos que, pelo facto de terem tido fortuitos contactos com personalidades públicas, passaram a beneficiar de um imediato "social upgrading".

Recordo uma jovem adida de embaixada que, tendo acompanhado o seu ministro dos Negócios Estrangeiros numa delegação a um determinado país, durante a qual o governante foi simpático e "quebrou" alguma distância, se sentiu autorizada, de regresso a Lisboa, a convidar o ministro para a sua festa de aniversário. E ficou ofendida com a "nega" que recebeu...


sexta-feira, dezembro 30, 2011

Prendas

Na vida internacional, recebem-se frequentemente algumas prendas que consideramos bizarras. As mais das vezes, isso deve-se ao facto dos critérios estéticos de certas culturas serem muito diferentes dos nossos. Por isso, ficamos frequentemente "sem graça" ao ser confrontados com ofertas que, de imediato, concluímos que não irão nunca ter um lugar nas nossas casas. Se as oferecemos a terceiros, para além disso poder representar uma ofensa a quem no-las deu se se acabar por se saber desse desvio, também ficamos com a obrigação de explicar o que estamos a dar e a razão por que isso acontece. É sempre um problema, até porque, não raramente, se trata de peças caras, não tendo nós o direito de não reconhecer a gentileza do gesto.

Recordo-me que, há uns anos, a minutos de sair de um hotel de um riquíssimo país do Golfo, para o qual tinha apenas levado uma mala de mão e uma pequena pasta, cheiíssimas já com roupa e papelada, fui surpreendido pela oferta de uma imensa - mas horrorosa! - e muito pesada peça de cristal. Nem eu tinha como a transportar, numa viagem que iria ter duas escalas, nem aquilo poderia alguma vez ser exposto em sítio algum. Optei, em desespero de causa, por oferecê-la ao motorista que tinha andado comigo nos dias anteriores, não sem antes passar uma declaração escrita, garantindo que se tratava de uma oferta da minha parte... Espero que o homem não tenha tido problemas e, em especial, que não tenha contado nada às suas autoridades!

Há dias, pelo Natal, recebi, de um colega de um país onde os critérios estéticos divergem muito dos nossos, uma dessas peças "impossíveis". Comentando o assunto com um amigo, ele notou que também as instituições internacionais são, às vezes, alvo de ofertas que, não podendo ser recusadas, criam problemas para a sua exibição. É que, na decorrência de publicitadas e públicas ofertas, as instituições ficam naturalmente obrigadas a expô-las, sob pena de criarem incidentes diplomáticos.

Isso fez-me recordar uma questão que era objeto de muitas piadas, ao tempo em que estive em Nova Iorque. Tratava-se da famosa estátua de um elefante em metal, oferecida à ONU pelo Nepal, Namíbia e Quénia, uma obra de um artista búlgaro.

O secretário-geral da ONU decidiu colocar a estátua no jardim da organização, entre a 1ª avenida e a rua 48ª. Só que logo surgiu um problema: a expressão hiper-avantajada de um certo órgão do animal suscitou, quase de imediato, um escândalo na cidade, com uma romaria de visitantes a apreciar aquilo que ficou conhecido como a "endowed elephant statue" (estátua do elefante bem dotado). 

Para grandes males, grandes remédios. Com a ajuda de jardineiros hábeis, as Nações Unidas lá conseguiram fazer crescer uma sebe junto ao animal, que lhe tapa as "partes" exageradas e torna mais aceitável a exposição da obra de arte. Consta, além disso, que aquela área do jardim da ONU já não admite visitas, apenas sendo possível ver a estátua de longe. A eficácia deste "cover-up" é tal que na net não se consegue encontrar nenhuma foto do elefante sem a sebe.

A diplomacia foi sempre a arte de resolver grandes problemas. Ou problemas grandes...

Gastronomia

A toda a largura da primeira página do suplemento "Culture & Idées", do "Le Monde" de amanhã, lê-se "La gastronomie vote à droite", esclarecendo-se, em subtítulo do longo artigo (não acessível por link), que "nascida nos meios conservadores, a arte da boa vida faz culpabilizar as pessoas de esquerda".

Não sabia. Será que a direita é pantagruélica ("eles comem tudo e não deixam nada", dizia o Zeca Afonso) e a esquerda é famélica (daí o "de pé, ó vítimas da fome"?) ?

Presidências rotativas

O futuro dirá se 2011 ficará na história da União Europeia como o ano que consagrou o verdadeiro fim da importância das presidências rotativas.

Elemento tido outrora por essencial para a ligação de cada país ao projeto integrador, por suscitar uma mobilização nacional e promover a diversidade de agendas e sensibilidades, a presidência rotativa esteve sempre sob fogo por parte de alguns, que consideravam o modelo como cada vez mais fragilizante da continuidade do trabalho comunitário. Com a passagem da União a 27, foram claras e públicas as dúvidas sobre a capacidade de alguns Estados assumirem as responsabilidades decorrentes da presidência. O tratado de Lisboa, ao criar a figura de presidente do Conselho Europeu e ao retirar à presidência rotativa muitas das suas competências, terá sido a machadada formal no modelo.

Em tempos mais recentes, as coisas foram, porém, muito mais longe. A circunstância de países que assumiam as presidências estarem afastadas do projeto da moeda única, sendo que esta está no centro das preocupações da União, tornou ainda um pouco virtual a sobrevivência do modelo. E esse facto, por outro lado, abriu caminho à emergência dos poderes fáticos dentro da UE, o que, não sendo uma novidade, nunca tinha sido expresso publicamente de forma tão ostensiva.

Como irão evoluir as coisas a partir daqui? A Dinamarca, que assume a presidência no primeiro semestre de 2012, é um país que não adota o euro e tem um "opting-out" no quadro da União Económica e Monetária consagrado nos tratados. Seguem-se Chipre, com um conflito interno que tem repercussões importantes nas relações externas da UE, a Irlanda e a Lituânia. Trata-se de um conjunto de pequenos Estados, numa Europa em que o papel dos grandes Estados parece estar a afirmar-se de modo flagrante. Mas, por exemplo, a Dinamarca e a Irlanda são países com muito forte identidade comunitária, que, no passado, levaram a cabo presidências com grande sucesso. Deixar-se-ão menorizar no seu exercício? Contestarão a preeminência a que alguns se habituaram?

Ironicamente, pode hoje dizer-se que as presidências rotativas estão hoje "protegidas", em ultima ratio, pelo tratado de Lisboa, que foi quem conduziu ao seu enfraquecimento. O facto de, como recentemente se viu, ser muito difícil obter um consenso a 27 para alterar aquele acordo, como que garante que o modelo, pelo menos no plano formal, vai continuar a subsistir.

Jornalismo

Há algumas semanas, em Lisboa, num agradável almoço com Baptista Bastos e João Paulo Guerra, muito se falou das "calinadas" do jornalismo contemporâneo. Mas ambos os meus interlocutores lembraram uma imensidão de histórias passadas, que ficaram gravadas na memória de gozo coletivo.

A melhor das frases foi citada pelo João Paulo Guerra, quando recordou esta "pérola" que abria uma reportagem: "Era meia noite e, no entanto, chovia..."

quinta-feira, dezembro 29, 2011

Havel e Corvacho

Neste final de ano, morreram Václav Havel e Eurico Corvacho.

Visitei Havel em Praga, acompanhando António Guterres, no final dos anos 90. Conheci pessoalmente Corvacho, em 1974/75, nos tempos do MFA.

A morte de Václav Havel mereceu grandes e merecidos títulos. O herói da Revolução "de veludo", um humanista e um democrata, concitou loas de todos os quadrantes. Contrariamente a Alexander Dubček, Havel escapou à habitual tragédia das figuras-charneira da História e viu, em vida, consagrado o seu papel. Intelectual e escritor, apoiou o caminho do seu país em direção à União Europeia, depois da partilha da Checoslováquia. E morreu em glória.

Muito menos leitores deste blogue ouviram falar de Eurico Corvacho. Foi um militar de abril, próximo da "esquerda militar", o grupo que então mais se ligou ao Partido Comunista Português. Foi comandante da Região Militar Norte e a sua imagem surgiu pela primeira vez aos portugueses, pela televisão, a denunciar a atividade de um grupo de extrema-direita que se opunha à Revolução, o ELP - Exército de Libertação de Portugal. Foi membro do Conselho da Revolução. E morreu esquecido.

Havel e Corvacho tinham pouco a ver um com o outro? O discurso maniqueu, tão no "l'air du temps", dirá que Havel quis a democracia para o seu país e que Corvacho apenas queria implantar uma nova ditadura. Eu digo que, cada um, à sua maneira, teve uma ideia de liberdade para o seu país. A História favoreceu aquele que, afinal, tinha razão. Ainda bem.

Nadir Afonso

O "Diário de Notícias", que hoje comemora 147 anos (parabéns!) traz na primeira página esta magnífica obra de Nadir Afonso, o arquiteto e pintor flaviense, com mais de 90 anos. Achei que valia a pena reproduzi-la.

Sentimentos

Deveria merecer o maior respeito de todos nós o sentimento da população da Coreia do Norte, expresso nos últimos dias, pela norte do seu "líder" Kim Jong-Il. 

Quando vejo alguns comentários medíocres e jocosos, na imprensa e nos blogues, a propósito do sofrimento público daquela gente, sinto a obrigação de lembrar que os norte-coreanos vivem uma dupla tragédia.

Por um lado, são vítimas inocentes de um dos mais fechados regimes do mundo, que, há mais de 60 anos, lhes cerceia qualquer informação, os policia intelectualmente e os faz serem meros figurantes num gigantesco "trompe l'oeil" que edulcora a tristíssima realidade do mundo que habitam. E, por outro, esse mesmo condicionamento psicológico indu-los a serem muito genuínos na expressão dos seus sentimentos, porque os conduz a tomar como uma irreparável perda a desaparição de um dos obstáculos à sua própria libertação.

A solidariedade que nos deve merecer a tragédia que afeta os norte-coreanos obriga a que respeitemos a sinceridade da sua dor.

Direitos humanos

O ministério dos Negócios Estrangeiros russo publicou, pela primeira vez, um relatório sobre o cumprimento dos direitos humanos no mundo. 

Nesse texto, Portugal é criticado por não ter transposto uma diretiva comunitária sobre direito de livre circulação e residência. A diplomacia russa considera também que 24% dos brasileiros são discriminados em Portugal.

Abre imensas e legítimas expectativas o facto de Moscovo manifestar a sua preocupação com o tema dos direitos humanos.

quarta-feira, dezembro 28, 2011

Túnel do Marão

Desde há vários meses, as obras do túnel que um dia atravessará o Marão estão suspensas. 

Há uns anos, um empresário de águas (e já então feliz proprietário de um "franchising" das Pousadas de Portugal, a quem comprou por-tuta-e-meia uma das mais carismáticas pousadas do país, conferindo-lhe hoje uma decoração digna de uma "pensão da Tia Anica"), conseguiu mobilizar, por muito tempo, a justiça de Penafiel, para tentar ser compensado por alegados (e, depois, não provados) prejuízos ambientais ao seu negócio, causados pelas obras do túnel. Com o tempo ganho, a estrada se não afastou da tal "pensão". Surgiu depois um novo aliado: os constrangimentos financeiros do país. E assim está bloqueado um dos projetos mais importantes para a diluição da interioridade transmontana, uma terra onde, note-se, nunca se construíram autoestradas ao lado umas das outras. O túnel, incompleto, por lá está, com as estruturas a estragarem-se no inverno e os ex-empregados desempregados. Quem tem culpa? Sei lá! Só sei quem a não tem...

Não tarda muito e ainda ouço a gente da minha terra a cantar a velha canção: "quem me rouba, quem me rouba, quem me rouba é ladrão. Ai, ai, ai, inda ontem fui roubado, ai, ai, ai, nas voltinhas do Marão".

A data

Leio nos jornais que a Samoa vai mudar de data nesta sexta-feira. Isto é, ao final do dia de quinta-feira passará diretamente para sábado. Como é que isto é possível? É muito simples. Por essa zona do mundo existe o meridiano da chamada "linha internacional da mudança da data" e a Samoa "muda-se" para o lado mais ocidental desse meridiano, para alinhar com o ritmo de vida da Austrália e Nova Zelândia.

Há mais de duas décadas, tive de ir a uma reunião internacional (de trabalho, acreditem!) às ilhas Fidji e, no percurso, que fazia na direção EUA-Austrália, tinha de atravessar aquela linha imaginária. Ao pedir as "ajudas de custo", no "4º andar" do MNE, as simpáticas senhoras minhas interlocutoras fizeram-me notar que estava a pedir um dia a menos do que aqueles a que tinha direito. Com efeito, a certo passo, eu saía de Honolulu ao final da tarde de, por exemplo, terça-feira e, meia-dúzia de horas depois, chegava ao aeroporto de Nadi, nas Fidji, já de quinta-feira. Lembro-me bem da pergunta: "mas afinal, o senhor doutor, onde é que dorme na 4ª feira?". Foi complicado fazer perceber que, devido à deslocação de leste para oeste, os meus dias anteriores iriam ser cada vez maiores, ao ponto de um deles ser simplesmente eliminado à chegada à "linha internacional", atravessada a qual se "saltava" um dia.

Sempre imaginei a "tragédia" que teria sido explicar essa viagem ao mundo administrativo das Necessidades, se acaso ela se tivesse feito em sentido contrário...

terça-feira, dezembro 27, 2011

Líbia

No fim deste ano que viu o mundo árabe passar por convulsões cuja resultante final está muito longe de estabilizada, lembrei-me desta história, que contei já algumas vezes a amigos. Mas que nunca tornei pública. Agora, já posso fazê-lo.

Naquele dia, na longa estrada de Misrata para Tripoli, o carro em que eu seguia era conduzido por um engenheiro líbio, formado no Reino Unido. Havíamos feito um desvio para visitar as magníficas ruínas de Leptis Magna (na imagem), a majestosa cidade de colonização romana, situada a mais de uma centena de quilómetros da capital líbia.

Íamos os dois sós, no carro. Falámos bastante, da vida e do mundo, com ele sempre a mostrar-se orgulhoso do seu país e das suas realizações. Não tinha um discurso apologético àcerca de Kadafhi, mas não se lhe notava qualquer pendor para a dissidência. À passagem pela cidade de Homs (homónima da da Síria, da mesma forma que há outra Tripli no Líbano), a densidade de cartazes e "outdoors" com a face do líder líbio, legendados em árabe, tornava-se muito evidente. Ousei então perguntar: "Kadafhi é mesmo popular? As pessoas gostam dele?".

O meu interlocutor, cujo nome devo ter ainda em alguma parte, mas de quem nunca mais tive notícias, ficou silencioso por alguns instantes, olhando a estrada. Depois, retorquiu:

- Se gostam de Kadafhi? Gostam de quem lhes dá casas, como Kadafhi lhes dá. Gostam de quem lhes dá escolas para os filhos, como Kadafhi lhes dá. Gostam dos novos hospitais, que Kadafhi está a construir, bem como destas estradas, que antes não tínhamos. Já andou de avião dentro da Líbia, não andou? Os pobres agora viajam de avião.

De facto, as minhas duas ou três experiências nas linhas internas da Libyan Airlines tinham-me mostrado que os aviões estavam transformados numa espécie de autocarros de província, com imensos beduínos, transportando mesmo gaiolas com galinhas!

Estava a chegar à conclusão que o meu condutor, homem com mundo e um excelente inglês, era, afinal, um fiel apoiante do coronel Kadafhi.

- Kadafhi dá muita coisa ao povo. Paga tudo com o petróleo e há muita gente contente com ele. Você já leu o "Livro Verde"? 

Fiquei num certo embaraço. De facto, havia passado os olhos por aquela "obra", escrita num estilo delirante, de quem tinha "descoberto a pólvora" política, desenhando uma terceira via entre o comunismo e o capitalismo. Kadafhi era uma espécie de "genérico" de Nasser: abolira uma monarquia corrupta, afastara os americanos da base americana de Wheelus (eu estava alojado no "Beach Hotel", ao lado da antiga base, antes frequentado pelos militares dos EUA) e julgava-se fadado a ser um federador do mundo árabe. Mas estava muito longe da dimensão histórica do líder egípcio. O "Livro Verde" havia aparecido em Portugal pela mão de um jornalista já desaparecido, Cartaxo e Trindade, que cheguei a encontrar, numa outra ocasião, em Tripoli.

Sobre o "Livro Verde", eu não sabia o que dizer ao meu interlocutor. Não queria hostilizá-lo, nem parecer complacente. Devo ter dito uma coisas "redondas" sobre a "originalidade" das ideias expressas no livro. Mas também não era preciso, como verifiquei pelo que me disse a seguir, sempre olhando a estrada em frente:

- Kadafhi é um fanático que se acha mais inteligente que todos os outros. O povo líbio não tem grandes queixas materiais, mas não tem, nem percebe que não tem, uma coisa importante que vocês já têm: a liberdade. Mas se "eles" sonhassem que lhe estava a dizer isto, eu seria preso.

Calou-se. Percebi que tinha ido tão longe quanto lhe era possível. Ficámos longos minutos em silêncio. Voltei a encontrar esse engenheiro líbio em algumas reuniões técnicas posteriores. Todas já há muitos anos. Que será feito dele?

A Rússia e o mundo árabe

Muito se tem falado das dificuldades de alguns países do ocidente para encontrarem um modus vivendi com as instáveis decorrências políticas das "primaveras árabes", depois de, durante décadas, terem tido os ditadores derrubados como amigos públicos. E ainda "a procissão vai no adro". O caso líbio absolveu parcialmente as culpas de alguns e a realpolitik, que não tem apenas cultores deste lado, vai fazendo o resto.

Mais intrigante tem sido a posição russa em todo este contexto. A Rússia é um parceiro histórico na região, desde os tempos da União Soviética. Mesmo num período em que a sua debilidade económica era mais notória, o seu estatuto no Conselho de segurança da ONU, bem como as relações que mantinha com certos atores problemáticos da região, justificaram a sua permanente cooptação para os quadros de diálogo, de que o "quarteto" (com os EUA, a UE e a ONU) sobre a questão israelo-palestiniana é caso mais notório.

É sempre interessante acompanhar a linguagem de Moscovo no tocante ao Médio Oriente alargado. Por ela perpassa uma preocupação em evitar a sedimentação de uma presença intrusiva dos países ocidentais nos diversos processos, na tentativa de contrariar o que lhe parece ser um desequilíbro geopolítico que se possa criar em seu desfavor. Esse cuidado é historicamente matizado por algumas notas de adesão, embora frequentemente em moldes algo equívocos, a temáticas tidas como de interesse comum ou já consagradas no "politicamente correto": o combate ao terrorismo, a não-proliferação nuclear, o livre acesso à rotas de fornecimento petrolífero. Sem surpresas, muito menos enfático é o seu apoio ao "empowerment" democrático dos povos árabes e à preservação, sem relativismos culturais, dos direitos humanos.

O caso sírio é aquele onde a posição russa se revela em todo o esplendor da sua ambiguidade. Colocado perante um caso trágico de violência e repressão, num dos cenários onde tem ainda algum "leverage", Moscovo tem vindo a deixar passar os dias e os mortos, numa frieza descredibilizante do seu papel à escala global. O inaceitável "wording" do seu projeto de resolução na ONU, equiparando o que não é comparável - as ações violentas de setores da oposição com a barbaridade da repressão governamental -, revela bem que o poder russo continua tentado por reflexos de meros jogos de poder.

É pena. Por razões de outros grandes equilíbrios à escala global que não vêm para o caso, o mundo precisava de uma Rússia mais aderente e construtiva de uma agenda multilateral e normativa de princípios, que potenciasse a sua influência e se revelasse bastante menos dependente de uma mercantil lógica de fins, evitando a colagem a regimes a que o destino aponta a inexorável direção do caixote do lixo da História. O que se passou, há precisamente duas décadas, em Moscovo, deveria servir de lição. A Moscovo. 

segunda-feira, dezembro 26, 2011

Ping-pong

Se os leitores deste blogue quiserem ter o cuidado de revisitar, um pouco mais abaixo, o post "À esquina da Gomes", sobre o café mais carismático de Vila Real, poderão verificar na fotografia que, sobre as suas instalações. há uma série de janelas, que aparentemente pertencem agora aos escritórios da seguradora francesa Axa. Mas nem sempre foi assim: nesse andar, por muitos anos, situava-se a "urbanização", um serviço chefiado pelo engº Barreto, pai do conhecido sociólogo António Barreto, um dos membros de um avantajado rancho de filhos, alguns dos quais cruzei nos tempos de liceu.

Com um deles, o também sociólogo José Barreto, fui co-autor de uma bem sucedida patranha (numa cidade que sempre teve uma história de grandes "partidas"), algures em meados dos anos 60. 

Sabedores que o Sport Club de Vila Real tinha organizado, ao longo do dia, um torneio de ping-pong, instalámo-nos os dois na "urbanização" (o Zé Barreto deve ter subtraído a chave ao pai), ao final da tarde, e, em nome do "Norte Desportivo", um jornal "azul" de referência nortenha, contactámos telefonicamente a organização do torneio. Explicámos que, lamentavelmente, não havia sido possível ao jornal enviar um repórter, pelo que pedimos que nos fossem transmitidos os resultados do torneio pelo telefone. "Todos?", perguntou o nosso interlocutor, abismado, lá da sede do Sport Club, na Rua Direita. "Todos, claro! Queremos dedicar uma página completa ao torneio". E foi assim que, durante aí uns 20 minutos, o pobre do homem (que sabiamos bem quem era, esperando que o contrário não fosse verdade!) lá ilustrou, com abundantes números, a "reportagem" a "sair" no dia seguinte: "José Fraga/Claudino Areias: 21-12; 19-21; ganhou José Fraga "à melhor", com 23-21". E por aí adiante, com dezenas de outros jogos. 

O Zé Barreto tinha, entretanto uma função vital: como a chamada era supostamente "interurbana", havia que fazer "bip" a cada três minutos, o que se tornava progressivamente difícil, com a "barrigada de riso" que íamos tendo. Quanto tudo acabou, para além de um sentimento de pena pelo nosso esforçado interlocutor, perpassou-nos algum temor sobre o que se iria passar no dia seguinte. Mas logo se veria!

Na tarde desse dia, colocámo-nos estrategicamente numa mesa da Pompeia, o café em frente à tabacaria do Bragança, onde o Fernando "Choco" traria, na sua motorizada, o rolo dos jornais, chegados no comboio da tarde. Por essa hora, notava-se uma pequena multidão na rua, pelos passeios entre a loja do Chico "americano" e a funerária do Zézé. Imagina-se que, derrotados ou campeões, muitos participantes do torneio da véspera estariam ansiosos em ver o seu nome em letra de forma. Arribado o "Choco", vimos os escassos "Norte Desportivo" disputados com ânsia, com aquelas folhas enormes, cuja tinta sujava as mãos, a serem percorridas... em vão!

Lembro-me de me ter safado pela porta que a Pompeia tem para a avenida, temente aos impactos da desilusão. Nunca percebi quantos, com o tempo, nos identificaram como autores da "partida". Uma coisa tenho a certeza: o meu interlocutor dessa noite ainda hoje, mais de quatro décadas passadas, cruza-se comigo com cara pouco amigos. Ó Sr. Mário, deixe lá, já foi há tanto tempo!

Em tempo: dedico este post ao meu amigo Zé Barreto, leitor do blogue, que deixou um comentário no "À esquina da Gomes", onde éramos companheiros de mesa.

Notícias do défice

Neste "boxing day" (no Reino Unido, o dia de hoje é um feriado em que se davam prendas aos mais pobres e em que agora se vai aos primeiros saldos), as notícias do Google trazem-me isto, em destaque de um matutino, sob o chocante título "Filipa de Castro termina noivado": "Filipa de Castro estava noiva de Pedro Tabuada e, no Verão, chegou a dizer que se iriam casar no próximo ano. Mas algo correu mal entre o casal e a relação terminou há algumas semanas".

Devo dizer que sinto um perfeito embaraço, como representante diplomático português, por ser incapaz de titular externamente esta parte - pelos vistos, bastante relevante - do nosso país. É que eu nunca ouvi falar nem na senhora (que está, aparentemente, "destroçada", mas, felizmente, a "aguentar-se firme") nem no cavalheiro. Ora, não se explicando o que cada um faz ou a razão pela qual neles se fala, presume-se que isso é uma evidência que só ignaros sociais desconhecem. Ora, já no verão, a acreditar no jornal, Filipa ("de Castro", será parente da Inês?) já tinha falado em casamento (onde? à CNN? à Bloomberg? à "Flash"?), o que prova ser figura conhecida (o jornal fala em que é "empresária"), que justificou essa entrevista sazonal. Mas também não conhecia (ainda) Pedro Tabuada, sobre cuja atividade não são dados pormenores (o que é ainda mais amesquinhante para mim, porque, como aqui se diz, "cela va sans dire") com o qual "algo correu mal" (o jornal, com certeza, não deixará, oportunamente, de explicar o quê), o que justifica que a relação já tenha terminado "há algumas semanas". 

"Há algumas semanas?" E então a imprensa deixou passar todo esse tempo sem reportar o evento? A nossa comunicação social já não é o que era. 

domingo, dezembro 25, 2011

Anónimos

Não, este post não é sobre os prudentes comentadores deste blogue que, por modéstia, não nos privilegiam com os nomes e apelidos, obrigando-nos a um esforço de imaginação sobre quem poderá estar por detrás dos seus judiciosos textos.

A história é do tempo da velha Emissora Nacional e foi-me ontem contada por um amigo.

Uma locutora, com aquele serenidade das gerações em que a "locução ofegante" ainda não fizera escola e se não transformara em pandemia, apresentava uma obra de música clássica. Melhor: duas obras, que se iam suceder, na emissão, uma à outra. E, desta forma, iluminou os "senhores ouvintes":

- Seguidamente, senhores ouvintes, vamos ter oportunidade de ouvir uma obra musical de um anónimo do século XVIII. Logo de seguida, do mesmo autor, porque segundo a nota que aqui tenho é também de um anónimo, ouviremos uma outra sua obra. Esperemos que gostem.

"Vim a pé!"

Fiquei gelado, quando ouvi a frase: "Vim a pé!".

Era uma noite de inícios de 2009, em Montfermeil, uma cidade na periferia de Paris, onde há hoje fortes tensões étnicas e em que vive uma significativa comunidade portuguesa, felizmente alheia a essa triste realidade. Vínhamos a sair da "mairie" em direção a um pavilhão gimnodesportivo, onde iria ter lugar uma recolha de fundos para um ação social, organizada por um cidadão português, que eu tinha decidido apoiar com a minha presença.

No trajeto entre os dois espaços, ia casualmente acompanhado de um simpático casal português, já idoso. Como muitas vezes acontece neste tipo de circunstâncias, perguntei-lhes de onde eram e há quanto tempo estavam em França. O marido disse-me ser da Beira, creio que de Sabugal, e que tinha chegado a França em 1967. Comentei a coincidência desse ser precisamente o ano da minha primeira deslocação a este país. Lembrava-me bem que saíra de Lisboa, da "rotunda do relógio", à boleia, no final de julho, chegando a Paris no dia 4 de agosto.

"E o meu amigo como veio?, perguntei.

"A pé. Vim a pé", respondeu-me, com grande serenidade, sem qualquer dramatismo.

"A pé? Desde Portugal? Não apanhou nenhuma boleia? Não fez parte do caminho de comboio ou de autocarro?

"Não, vim a pé, todo o caminho, da minha terra até Champigny, com uns amigos. Demorei algumas semanas a chegar", adiantando-me um número de dias que não fixei, mas que era impressionante. Explicou-me então que dormiam nas bermas das estradas e que cantavam, para se animarem. "Rebentavam-nos os pés, mas tinha de ser", explicou, com um sorriso de total naturalidade.

Intimamente, sem o deixar transparecer, eu estava chocado. Tinha ouvido falar muito das trágicas condições em que os portugueses saíam do país nesses anos 60 e 70, das passagem da fronteira "a salto", dos "passadores", da exploração de que eram objeto por parte de outros seus compatriotas, das condições quase infra-humanas do seu transporte para França e Alemanha, mas - imperdoável desconhecimento meu! - nunca ouvira dizer que alguns haviam palmilhado todo o caminho em direção a um futuro em que colocavam toda a esperança.

Hoje, dia de Natal, lembrei-me desse nosso compatriota de Montfermeil. Na pessoa dele, desejo o melhor Natal possível às centenas de milhar de portugueses que, com dificuldades muito diversas, foram forçados a abandonar o seu país e que aqui ajudaram, com o seu trabalho e com a sua dignidade, a tornar a palavra seriedade um sinónimo de Portugal. Nunca lhes agradeceremos demais por isso.

sábado, dezembro 24, 2011

À esquina da Gomes


Sabem o que é a Gomes? A maioria dos leitores deste blogue não sabe, estou certo. Tal como acontece em todas as cidades, Vila Real tem um café de culto. Neste caso, a Pastelaria Gomes.

Porquê a Gomes? Porque sim. Distinguiu-se sempre da antiga Pompeia, do meu desaparecido amigo Neves, por ser mais cosmopolita; da Rosas, do sr. Rosas, por ser mais intimista e dispensar as bizarrias do Toninho; do Excelsior, por ser mais elitista, por esconder os bilhares e não ter dominó; do Clube, por não ser habitual por lá ver comerciantes de gado de samarra e cajado; do Imperial, do sr. Lima, por ali não ser hábito ver o patrão a bater nos clientes; da Brasileira, logo em frente, porque, c'os diabos!, nunca custou nada atravessar a rua.

A Gomes começou na "Gomes velha", onde ainda me recordo de ver, à porta, o sr. Gomes e onde hoje se vai pelo bolo-rei, pelas "cristas de galo", pelos "jesuítas" ou, sazonalmente, no S. Brás, pelas "ganchas" e pelos "pitos" de Santa Luzia, embora a concorrência doceira do Lapão seja cada vez mais feroz. Foi depois construído o novo edifício, que teve a imensa novidade de possuir um elevador... que nunca ninguém viu funcionar. E que tinha, no alto de um mastro, uma misteriosa lâmpada que se mantinha acesa enquanto a casa estivesse aberta à noite, sinal de que podiam ser servidos, se se apressassem, os "connaisseurs" que viessem do Porto, pela estrada velha, logo que chegados à "curva do espanto", em Arrabães, primeiro lugar de onde, no Marão, se vislumbravam as luzes da cidade.

Se a memória me não falha, a Gomes foi, em Vila Real, o primeiro café onde as mulheres podiam ir, com naturalidade, sozinhas. Dizia-se, nesses anos, que receber um convite para tomar chá na Gomes ("em cima", sempre "em cima") com a dona Irene Viana (mulher do dentista e meu professor de ginástica) era o passaporte para a entrada das senhoras na sociedade local. E, glória das glórias!, embora poucos se lembrem disso, a Gomes foi talvez o único lugar público do género onde, que me lembre, nunca entrou uma infernal televisão.

Na Gomes sempre houve zonas geográficas mais ou menos consagradas, que não revelo para não identificar alguns dos seus regulares ocupantes. Entre eles, há os que afivelam sempre um ar "grave", de "polícia da Régua", que parece fazer parte da condição necessária para serem levados a sério. Outros falam para serem ouvidos nas mesas ao lado, num dispensável, por ineficaz, esforço de proselitismo. Os mais discretos, mas, nem por isso, os menos atentos, ficam-se pela mesa mais misteriosa de todo o café, com dois lugares, que está perto da porta interior, o único poiso onde se consegue ter uma conversa "tête-à-tête", sem risco de penduras.

A disposição física do espaço torna a Gomes uma espécie de plateia de um antigo teatro francês, com o "coté cour" e o "coté jardin" a ser dado pelas entradas - seja pela antiga máquina do fiambre (sede clássica de pouso do Zé Araújo), seja pelo antigo balcão dos "furinhos" dos chocolates, onde se colocavam jornais com suporte de madeira e onde, durante muito tempo, esteve o telefone preto. Essas duas entradas do proscénio (o Achilles explicaria isso, mas quem não for de Vila Real sabe lá quem era o Achilles) induzem uma visível timidez em certos visitantes ocasionais, atarantados pelo infalível escrutínio, seguido de cochicho. No verão, tirado o vetusto "estrado", a saída para a avenida muda o cenário, que se prolonga então pela esplanada. Obter por aí um café, em dias de enchente, é um privilégio que obriga a meter cunhas.

Foi pela Gomes que eu comecei a parar, ainda nos tempos de liceu, com mesa marcada "em cima", ao canto esquerdo de quem entra, com o brandy L34 a acompanhar o café, erro que sinto, para sempre, na memória do meu fígado. Por aí passei muitas horas a discutir coisas fúteis da vida e, cada vez mais, da política. Para as caves da Gomes fui cooptado, ritual de iniciação a que atribuí grande importância, para a visualização de alguns filmes heterodoxos, trazidos da estranja por ousados viajantes locais, sobre cujo conteúdo a moral deste blogue me não deixa elaborar. Foi na Gomes que, com alguns outros, fui, em 1969, interpelado pelo comandante da GNR, por comentários entendidos como "subversivos", que, sem consequências de maior, nos conduziram ao Governo civil.

A Gomes, honra lhe seja!, foi sempre um espaço plural, nunca foi grandes políticas sectárias, por lá pararam, serenamente, todas as tendências, da Situação ou da Oposição - e eu estive, ao longo dos tempos, em ambas, e não necessariamente por esta ordem. Em várias décadas, nunca deixei de "ir à Gomes", nas minhas estadas aperiódicas por Vila Real. E por lá passo, com gosto, em férias, sempre que posso, para rever amigos e conhecidos. E, claro, para comer um covilhete ou uma fatia de bola de carne.

A Gomes dos dias de hoje está diferente da dos velhos tempos. Às vezes, vejo-a um pouco desleixada, o pessoal, embora simpático, tem um ar um tanto errático e demasiado "casual" para o meu gosto - eu venho dos tempos clássicos do João, do "Sapo", do Gonçalo, do Fernando ou do José. Mudaram agora de traje, depois de uns balandraus que usaram, pretendidamente de côr laranja, muitas vezes já a justificarem uma visita aos sucessores do Alarcão (se não é vila-realense, passe para o parágrafo seguinte). Prova de uma mudança radical da Gomes é o facto de, julgo que pela primeira vez na sua história, "A Voz de Trás-os-Montes", no ano passado, não trazer um anúncio natalício que já havia ficado histórico na cidade: ao canto de um grande espaço em branco, havia uma nota que dizia: "se a Pastelaria Gomes necessitasse de publicidade, utilizaria este espaço"*. As instituições - e a Gomes é uma instituição - fazem-se de simbolismos. E estes devem respeitar-se, sem o que a identidade se esvai. Atenção, ó gente da Gomes!

Hoje, dia de Natal, a Gomes estará fechada, creio eu (com a crise, sabe-se lá!). Mas há um lugar que, com toda a certeza, não "fecha" e à volta do qual a cidade gira. Esse lugar é a esquina da Gomes, um marco geográfico, charneira entre a avenida Carvalho Araújo e o largo do (regressado) Pelourinho. Por lá nos encostávamos, na adolescência, para ver sair o "pequename" da missa da Sé, logo em frente. Nos invernos, a esquina é sede de ventanias sem par, onde confluem grupos que atiram uns aos outros um indizível "Méixiôres!" (que do vila-realez apressado se transcreve como a saudação "Meus senhores!", enviada de um grupo de passeantes a outros), nesta época natalícia logo seguido do clássico "Continuação!", expressão que se utiliza até aos Reis. Por lá se passeiam, nos dias 25 de dezembro, com sol ou sem ele, as camisolas-de-losangos e os cachecóis que "saíram" nas prendas da véspera, vestindo amigos e conhecidos, mais ou menos "graves", que, do percurso do liceu ao "cabo-da-vila" (desistam aqui os não-vilarealenses), calcorreiam, devagar, a memória sedimentada desde a infância. Como aqui agora fiz, "preso", este ano, a Paris.

Em tempo: o anúncio regressou a "A Voz de Trás-os-Montes". Ainda bem! Um vila-realense amigo mandou-me esta imagem do antigo anúncio. Veja-se a evolução semântica de "reclame" para "publicidade"

Coreia do Norte

O ambiente de obsessivo secretismo - e, por essa via, de incessante especulação - que se cria em torno da maioria dos regimes ditatoriais teve o seu auge, desde sempre, no caso limite da Coreia do Norte. Quer ao tempo do fundador da "dinastia", Kim Il-Sung, quer no do seu filho, Kim Jong-Il, as historietas sobre alguns, nunca absolutamente confirmados, aspetos da sua vida privada, desde os excessos materiais às aventuras afetivas, fizeram, por décadas, a delícia de uma certa imprensa. Como nada é possível provar, tudo é possível dizer.

A chegada de um novo líder ao poder, em Pyongyang, aguça agora a curiosidade dos media. Não deixa de ser interessante ver o "Le Figaro" dedicar hoje quase meia página à exegese da fotografia que acima reproduzo, retirada de um filme com dois dias. Para quê? Para especular sobre a "misteriosa criatura" da jovem que aparece atrás de Kim Jong-Un. Dando por adquirido o princípio de que "na cultura tradicional coreana, um homem ainda celibatário na casa dos 30 anos é mal visto", o correspondente em Seul do jornal conservador francês detém-se em detalhe sobre a imagem da jovem, adiantando que "a sua silhueta é tão fina que voga no seu fato tradicional ligeiramente decotado", perguntando-se se "esta mulher tão jovem e de atitude tão elegante será a nova primeira-dama da Coreia do Norte". O jornal nota ainda "o rosto oval delicado, a pele de porcelana, de uma jovem que parece uma pena". Caramba! Que perspicácia! Eu não consigo "ler" tanto na fotografia.

O jornal vai ao ponto de qualificar este intrigante momento como "o mistério da mulher no mausoléu de Kum Su-San". Para o jornalista, confortavelmente instalado a sul do paralelo 38º, apoiado nas investigações do "especialistas" locais e num "rumor transmitido por uma fonte clandestina no local, mas impossível de verificar", "a feliz eleita seria diplomada da prestigiada universidade Kim Il-Sung e seria dois anos mais nova que o 'grande sucessor'", sendo originária de Chongjin, na costa nordeste da península. Cuidando o "safe side" dos desmentidos da História, o jornalista não exclui a hipótese de se tratar, muito simplesmente, de uma filha do falecido Kim Jong-Il, logo, apenas de uma irmã de Kim Jong-Un. Mas essa é uma possibilidade que, por pouco romântica, apenas merece o prudente registo.

Nos tempos em que o comunismo prevalecia em Moscovo, o ocidente criou a "kremlinologia", uma especialidade que lia sinais das posições relativas de dirigentes nos palanques e nos encontros internacionais, bem como no "body-language" das grande figuras, daí extraindo conclusões para as futuras sucessões de poder. À nossa modesta escala, lembro-me de ouvir comentar, em fotos dos "dias da raça", o menor gesto de simpatia de Salazar para qualquer vizinho de fraque, daí deduzindo cumplicidades e hipotética gestação de herdeiros, descontados os imponderáveis da lei da gravidade. 

Esses mistérios constituem a eterna "graça" das ditaduras, coisa que a simplicidade do voto democrático logo destrói. É pena ver jornais com o antigo prestígio do "Le Figaro", onde preponderaram as penas de François Mauriac ou Raymond Aron, a encherem hoje as suas páginas com este tipo de especulações. Talvez isto se faça só até ao dia em que o brilho de melhores fotografias, oriundas de Pyongyang, permita um tratamento mais "profissional" nas colunas "especializadas". É que, verdade seja dita, os verdadeiros dias felizes para a democracia só estarão adquiridos quando o "Paris Match" cobrir um casamento presidencial na Coreia do Norte. Nesse dia, porém, a notícia passará para o "Figaro Magazine".       

sexta-feira, dezembro 23, 2011

Bom Natal para todos

A História e a justiça

A Assembleia Nacional francesa aprovou ontem a criminalização do "negacionismo" de todos os genocídios, isto é, o seu não reconhecimento ou desvalorização no discurso público e mediático. O que estava imediatamente em causa era o reconhecimento do alegado genocídio da população arménia pelos turcos, entre 1915 e 1917, tema altamente sensível em Ancara, que reagiu com esperado desagrado.

Sobre o tema do "negacionismo", há duas posições opostas.

Há quem considere, à luz dos trágicos extermínios nazis, que não se pode deixar morrer a memória às mãos de uma dolosa contestação de factos incontroversos, que representam crimes contra a humanidade, para os quais é imperioso manter alerta a consciência das gerações seguintes.

Outros entendem que não é pelo direito que se corrige a perceção da História e que a negação pública de uma evidência se combate pelo esclarecimento e pela demonstração de uma verdade que, sendo-o, deve ser suficientemente sólida para enfrentar o seu contraditório público.

Anos 60

O "Nouvel Observateur" desta semana traz um dossiê sobre os anos 60. Nele aparece esta bela fotografia de Cartier-Bresson, tirada na Brasserie Lipp, no boulevard Saint-Germain.

A imagem é auto-explicativa: uma França, clássica e perplexa, lê o "Le Figaro", uma mais moderna lê o "Le Monde".

Talvez uma foto mais atualizada colocasse a jovem com o "Libération" à frente. Ah! e naquelas mesas da Lipp já não se pode pedir apenas uma bebida, tem de se almoçar ou jantar.

quinta-feira, dezembro 22, 2011

Passagem de poder

Bela prática aquela a que ontem se assistiu em Espanha: os ministros cessantes e aqueles que os vão substituir encontram-se numa cerimónia pública, na presença dos altos funcionários do ministério, num gesto que tem o simbolismo da continuidade das funções de Estado. Em França, embora creio que sem discursos formais, tem lugar um ritual idêntico.

É pena que, em Portugal, não se tenha consagrado este costume, digno de uma grande democracia, que reflete e projeta publicamente a naturalidade da alternância. No nosso caso, à saída da cerimónia da Ajuda, onde os novos e ex-ministros se saúdam, os futuros titulares apenas encontram, à saída, um automóvel para os transportar, sendo que os antigos governantes têm geralmente de contar com um amigo que os leve de volta a casa. 

Com a vida, aprendi que alguns formalismos têm um valor que vai para além do simbólico e que ajudam a sedimentar o respeito democrático.

Artur Santos Silva

A Fundação Calouste Gulbenkian acaba de escolher Artur Santos Silva para seu futuro presidente.

A Gulbenkian é uma instituição que, desde sempre, tem prestigiado fortemente o nosso país. Artur Santos Silva, como aqui referi há alguns tempos, é uma das raras personalidades portuguesas que reúne uma quase unanimidade, pelo que dá totais garantias de poder vir a preservar, com o seu dinamismo e abertura, o fantástico legado de Calouste Gulbenkian. A sua escolha é a prova de que o bom-senso ainda prevalece neste país.

Um forte abraço de parabéns, Artur!

Força, Eusébio!

Eusébio da Silva Ferreira, a velha glória de todos nós, está doente.

Eusébio faz parte do património de um país que não pode dar-se ao luxo de dispensar aqueles que lhe deram grandes alegrias, particularmente nestes tempos em elas já são tão poucas. 

Força, Eusébio. E esperança, embora verde...

quarta-feira, dezembro 21, 2011

Coreias

Em 2003, quando representava Portugal na OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), em Viena, fui convidado pelo governo coreano para pronunciar, em Seul, uma conferência sobre um tema que pode parecer algo etéreo para os leitores deste blogue: "OSCE's confidence and security bulding measures". 

Essa era uma especialidade que eu entretanto desenvolvera na minha involuntária "osceosidade" vienense, que levara aquela organização, sem o menor encargo para o Estado português, a "oferecer-me" como palestrante especializado por vários seminários internacionais sobre questões de defesa e segurança, da Polónia ao Casaquistão, do Egito ao Japão, da Itália à Jordânia. 

Tratava-se de transmitir a experiência ganha pela OSCE no seu quadro de cooperação euroasiática, em matéria de diálogos políticos "geradores de confiança", em situações pós-conflito (ou, mais raramente, de mera prevenção de conflitos), com vista a operações de "learning lessons", neste caso para tentar aplicar essa experiência no quadro da tensão "sul-norte", que prevalece nas Coreias desde o confito dos anos 50. Estava-se então no tempo de alguma esperança nos esforços feitos no âmbito dos "six-party talks" (conversações entre as duas Coreias, com inclusão da China, da Rússia, do Japão e dos EUA), para tratar o sensível problema nuclear norte-coreano.

O debate em Seul foi extremamente interessante e instrutivo, em especial para melhor perceber a peculiar atitude chinesa (e também russa) no processo, bem como para definir as distâncias estratégicas, muitas vezes pouco percebidas mas bem presentes, entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos, assunto de que já falei aqui.

À parte o seminário, houve a possibilidade de uma deslocação, entre o turístico e o político, ao histórico "paralelo 38", a linha divisória do trágico conflito entre as duas Coreias. Sendo a fronteira mais tensa do mundo, há em seu torno uma espécie de grande "teatro", alimentado pelos sul-coreanos e pelas tropas norte-americanas presentes no local, com óbvia cumplicidade dos coreanos do norte. Visitaram-se túneis e postos de observação, de onde se podia ver uma gigantesca bandeira norte-coreana e, através de binóculos, se detetavam, como figuras raras, militares das tropas do outro lado. Foi-se até à sala das históricas conversações norte-sul, bem como ao limite de uma linha de comboio interrompida há muitos anos, pela Coreia do Norte, sendo-nos mostrada uma moderna e completamente deserta estação de onde, como nos foi dito, se um dia houver paz e tiver acabado o bloqueio da fronteira, um comboio poderá partir numa longa viagem euro-asiática que irá acabar em... Paris, tido num grande mapa como o extremo ferroviário ocidental da Europa. A uma simples observação minha, sobre a razão pela qual essa linha mirífica não prosseguiria até Lisboa, desencadeei nos meus interlocutores sul-coreanos um imediato e preocupado nervosismo, com imediata promessa (!) de irem rever o mapa. A extrema lógica asiática tem destas coisas...

Mas, no local, há outras "lógicas", tão ou mais complexas do que esta. Um dos pontos da agenda incluía um "briefing", feito pelas tropas americanas aí estacionadas, sobre a situação na linha de fronteira. Convém que se diga que, para a Coreia do Norte, a situação de guerra com os EUA mantém-se, formalmente. O oficial americano parecia uma caricatura cinematográfica, com um típico corte de cabelo paralelipipédico, que lhe dava um ar involuntariamente divertido. O seu discurso estava recheado de "clichés" da vulgata da "guerra fria" revisitada (ao tempo da minha visita preponderava em Washington o senhor George W. Bush), que divertiram imenso o pequeno auditório, recheado de especialistas internacionais que tinham das coisas do mundo alguma sofisticação mais. Recordo-me de nos ter sido explicado, com detalhes biográficos e curiosidades pormenorizadas, muito orientadas para um auditório turístico, quem era o lider norte-coreano Kim Jong-Il (que há dias morreu). As restantes informações relevavam de uma espécie de versão para atrasados mentais da série editorial "The complete Idiot's guide", ideologicamente revista pelas Seleções do Reader's Digest nos anos 50.

A certa altura da palestra, o militar contou que, todas as manhãs, grandes altifalantes emitiam, em direção ao sul, hinos e canções patrióticas norte-coreanas, que faziam já parte da rotina dos dias no local. Porque o "briefing" estava a ser uma maçada de que todos pareciam querer ver-se livres, quando, no fim da preleção, nos interrogou sobre "any questions?", registou-se um silêncio esmagador e de alívio. Foi então que decidi, para espairecer o ambiente, "quebrar a loiça" e, com uma falsa ingenuidade, perguntei: "Os hinos e as canções patrióticas são, como nos disse, a regra dessas emissões matinais. Gostava que me respondesse a uma questão: qual seria a sua reação se, numa dessas manhãs, em lugar desse tipo de músicas, os altifalantes norte-coreanos transmitissem uma canção de Britney Spears?". O homem bloqueou e olhou-me siderado. Acrescentei: "Que tipo de conclusões políticas retiraria desse facto?". O militar americano ficou muito sério, fixou-me de uma forma pouco simpática, pousou a varinha com que apontara o "power-point" e disse: "The briefing is over". Uma onda de gargalhadas, mas apenas dos visitantes estrangeiros, ecoou na sala.

Decididamente, o humor não é a atitude mais apreciada nas zonas tensas de conflito.

A democracia e o "The Economist"

A "Economist Intelligence Unit" (não sei se ainda anda por lá o meu amigo Mark Hudson) do "The Economist" faz este ano a sua tradicional "medição" do estado da democracia e das liberdades em 165 países independentes e dois territórios, atribundo-lhes quatro categorias: democracias plenas, democracias com falhas, regimes híbridos e regimes autoritários. Os critérios são os seguintes: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades cívicas.

Este ano, a "bíblia" do neoliberalismo baixou Portugal para 27º lugar (éramos 26º), colocando-nos no grupo das "democracias com falhas". A principal razão, explica o relatório, deveu-se a erosão da soberania e da responsabilidade democrática, associada aos efeitos e às respostas à crise da zona euro. O relatório destaca ainda que, em alguns países, já não são os governos eleitos que definem as políticas, mas sim os credores internacionais, como o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional. A severidade das medidas de austeridade contribuiu, no entender do estudo, para enfraquecer a coesão social e diminuir ainda mais a confiança nas instituições públicas.

aqui falei, há tempos, desta questão, que é, de facto preocupante. É que, para além de alguma arrogância "patronizing" que subjaz a este tipo de avaliações, o relatório não deixa de tocar nalgumas feridas que a atual situação abriu em várias democracias europeias. Mas também cria uma dúvida: afinal, esta alegada quebra de democraticidade da situação em países como Portugal não é derivada pela adoção de políticas de austeridade e de estrito controlo macroeconómico por parte de entidades internacionais, como aquelas que o "The Economist" sempre defendeu? Em que ficamos? 

terça-feira, dezembro 20, 2011

Carlos da Veiga Ferreira

Conheço e sou amigo do Carlos da Veiga Ferreira há muitos anos. Era ele então um pouco ortodoxo funcionário do Ministério da Indústria onde, num gabinete dirigido por essa saudosa figura que foi Aurora Murteira, estabelecia, lado a lado com o Frederico Alcântara de Melo, uma operativa ponte com as Necessidades, onde eu acabara de entrar. Lisboa é uma grande aldeia e, logo que nos conhecemos, percebemos que tínhamos amigos em comum, o menor dos quais não era esse federador de afetos que dá pelo nome de António José Massano.

Pouco tempo depois, vim a conhecer o outro lado do Carlos: o editor. Primeiro com o Carlos Araújo, depois tendo a seu cargo exclusivo a magnífica Teorema, uma editora culta e de bom gosto, onde brilhou a obra de Jorge Luis Borges, mas onde também publicou outros grandes autores, como Martin Amis ou Saul Bellow. Em noites de conversas com ele, pelo mundo, aprendi a apreciar o seu raro "feeling" para a descoberta de nomes que viriam a ser êxitos editoriais em Portugal. Apesar das minhas promessas, nunca o acompanhei numa visita à feira do Livro de Frankfurt, um dos meus (poucos) sonhos não concretizados de vida.

Há uns anos, num restaurante de Lisboa, vi o Carlos à distância, muito engravatado, numa conversa de onde me pareciam transparecer negócios. Eu estava a jantar com amigos, entre os quais o empresário e homem da imprensa João Amaral e recordo-me de ter comentado: "O Veiga Ferreira está com ar de quem está a vender a Teorema". O João Amaral não conhecia então o Carlos. Fui ter com o Carlos. Estava, de facto, a vender a Teorema, editora que, no entanto, continuou a dirigir.

O tempo passou e a vida deu algumas voltas. A Teorema, e o Carlos com ela, acabaram absorvidos no imenso conglomerado editorial da Leya, onde, curiosamente, o João Amaral é hoje uma figura proeminente. Mais tarde, soube que o Carlos Veiga Ferreira abandonou a Teorema e a Leya, que hoje a tutela. Por acasos da vida, ainda não falámos, desde então.

Há dias, num noticiário cultural, vi que o Carlos criou, há meses, uma nova editora: a Teodolito. Perguntado, por alguém, sobre a razão do nome, o Carlos respondeu, desconcertante como sempre: "Havia um poeta meritório, que já morreu há muito tempo chamado António de Sousa e mostrou vários poemas ao Herberto Helder. A determinada altura, havia um verso que dizia qualquer coisa ‘noite inconsútil’ e o Herberto perguntou-lhe: O poema é giro mas António você sabe o que é ‘inconsútil’ ? E o António respondeu: ‘Não sei nem me interessa mas é uma palavra muito bonita.’ Eu sei o que é um teodolito e foi por causa disso e também remete para um texto brilhante do Luiz Pacheco que se chamava ‘O Teodolito’ ".

Da Teorema à Teodolito, vê-se que o "bichinho" editorial do Carlos  da Veiga Ferreira não desarma. E o seu humor também.

"Contingency planning"

Devo dizer que, no que me toca, fiquei completamente indiferente à notícia de que o Foreign Office tinha um "contingency plan" para os seus cidadãos, para o caso de poder haver uma situação extrema de crise em Portugal e em Espanha. 

Os países e as diplomacias mais organizadas - e o serviço diplomático britânico é "apenas" o melhor do mundo - fazem exercícios constantes de planeamento para situações extremas, em todos os cenários geopolíticos, o que lhes permite terem uma noção quantificada e qualificada dos meios que têm de mobilizar em situações de emergência. Isso é válido para uma crise financeira, como o é para uma convulsão social, para um terramoto ou um acidente nuclear.

Esta "obsessão" com a organização retira, a esses países, a "graça" de testarem a capacidade de improviso das suas gentes e estruturas - faculdade em que países como Portugal são mestres. Verdade seja que, no caso português, existe, desde há alguns anos, uma unidade de "emergência consular" no MNE que já criou uma certa massa crítica, que lhe permite orientar-se por rotinas já seguidas, com êxito, no passado.

Interessante foi ver o nosso paupérrimo "jornalismo" televisivo, que tem de inventar o inimaginável para encher de "chouriços" (a expressão é do jornalismo, não é minha) a mais de hora e meia dos seus lamentáveis telejornais, a entrevistar cidadãos ingleses ao sol algarvio, perguntando-lhe, patrioticamente, se não temiam um colapso do sistema bancário português. Esses britânicos, serenos e educados, pouparam-nos à humilhação de revelar que, com toda a certeza e naturalidade, utilizavam as suas instituições financeiras além-Mancha e, com probabilidade, não tinham confiado as suas poupanças ao BPN ou ao BPP...

Tratado

Para quem tiver paciência e gosto por estas coisas, aqui fica o link para o (uma discutível tradução do) projeto de novo tratado intergovernamental europeu, desde agora em negociação.

Comentários ao correr da tecla que o texto me sugere:
  • o texto é curto, o que é muito bom.
  • ressalta do projeto um tom "inclusivo", por forma a abranger os países da zona euro e aqueles que só são parte da UEM. Tudo o que aponte para a inclusividade é bom para a Europa. E para nós nela.
  • é dada uma razoável latitude quanto à sede jurídica da inclusão da "regra de ouro" sobre o défice, o que pode facilitar a sua aprovação em muitos países.
  • continua a não resultar claro como será possível um tratado intergovernamental vir utilizar as instituições comunitárias (Conselho europeu, comissão e tribunal de Justiça), sem um consentimento unânime. De facto, sem uma aquiscência do Reino Unido, isso será impossível. Mas a predisposição de Londres a ser "observador" do processo é uma boa notícia para os restantes subscritores. Resta saber a que "preço", nomeadamente nas próximas "perspetivas financeiras" (quadro orçamental plurianual)...
  • é dúbia, e juridicamente pouco consistente, embora por isso aparentemente inóqua, a referência ao pacto "euro plus", que se pretendia um reforço do pacto de Estabilidade e Crescimento, através do "método aberto de coordenação" (que, diga-se, tanto se criticou à "agenda de Lisboa" de 2000). Será apenas para não deixar cair, por completo, uma "construção" que tanto agrada a um Estado membro cujo nome, como Cervantes dizia de um certo lugar da Mancha, no "Dom Quixote", não me quero lembrar?
  • as "cimeiras do euro" afinal já não reunem mensalmente, como fora anunciado no dia 9. É de elementar bom senso... Às vezes, penso que quem vive aqui no centro da Europa não tem a noção do que representa, em termos de esforço, uma deslocação a Bruxelas, quando se está num país geograficamente periférico. As vídeo conferências para alguma coisa existem, embora tenham a "desvantagem" de não garantirem conferências de imprensa de exploração dos "sucessos".
  • a entrada em vigor do tratado, após o nono subscritor, parece uma medida com sentido, forçando de forma razoável os restantes. 
Algumas dúvidas que o texto (e a filosofia do mesmo) me suscita não podem ser abordadas neste âmbito.
    Devo dizer que continua a não ser, para mim, muito clara a razão técnica por que não se optou pelo modelo de uma "cooperação reforçada", que, nos termos do atual tratado, se poderia fazer (a partir de oito Estados membros) sem a presença do Reino Unido e teria a importante vantagem de não confrontar o quadro institucional. Mas devo ser eu quem está a ver mal, por ter já "perdido a mão" destas coisas europeias...

    Treaty

    Começou hoje a negociação do texto fundador da nova "União Orçamental", o tratado intergovernamental lançado em 9 de dezembro e que os mais otimistas entendem poder ficar concluído até março.  

    Como é sabido, o Reino Unido colocou-se inicialmente fora do processo, embora posteriormente tenha vindo a juntar-se a ele, mas apenas como observador. O mais irónico de tudo isto, que também dá nota do possível destino futuro das línguas oficiais no quadro europeu, é que a discussão se fará exclusivamente sobre uma única versão de projeto do tratado, redigida em... inglês.

    segunda-feira, dezembro 19, 2011

    Jogo eletrizante

    O jogo era péssimo. O futebol daquele país estava longe de proporcionar grandes espetáculos e a transmissão televisiva, a preto e branco, com escassos meios e uma ainda mais escassa técnica, era de uma imensa pobreza. Mas, com a chuva que caía, pouco mais havia para fazer na residência portuguesa, naquela cidade de um país em guerra, onde eu fora visitar um colega em posto e já tínhamos colocado a conversa em dia. Com uma cerveja a acompanhar, a emissão ajudava a passar as horas, até porque o meu avião de regresso era só na tarde do dia seguinte.

    A certo ponto, a imagem televisiva estragou-se, por segundos, regressando depois à sua qualidade habitual. Mas por pouco tempo. A partir daí, sem regularidade temporal, o incidente repetia-se. Ver o jogo tornava-se um exercício difícil. Ah! e, naquele país, só havia um canal televisivo, claro. 

    - É sempre isto! Com estas variações de luz, estragam-se os aparelhos todos. Uma arca já foi à vida e o frigorífico está com problemas. Já coloquei estabilizadores de corrente, mas não adianta. E, sabes?, ainda eu tenho a sorte deste ser um acesso elétrico que me foi dado pela polícia. É um fio que liga à esquadra, que fica ali atrás. O comandante é meu amigo e foi ele mesmo quem sugeriu podermos fazer uma ligação direta, para poder beneficiar do gerador deles, quando há falhas gerais de energia. E o "quarto andar"* nem sabe o que poupa! Imagina agora o que sofre o resto da gente desta cidade!

    Eu continuava a tentar olhar o errático écran e perguntava-me se Lisboa alguma vez tinha consciência das dificuldades com que se defrontavam diplomatas e outro pessoal destacado, despachados para  postos recônditos, perdidos pelo mundo, sujeitos a privações constantes, à  insegurança e às doenças típicas dessas terras, que muitas vezes os obrigavam a separar-se das famílias. Tendo essa gente, como gozo supremo, numa tarde de chuva, jornais atrasados chegados pela "mala", ou um livro e um disco como os que eu lhe levara. E, claro, transmissões de futebol medíocre e outros programas de nível congénere, acompanhados de uma, duas, três, mil cervejas, para almofadar o quotidiano. 

    Um velho empregado entrou na sala, para perguntar se queríamos (claro!) mais uma cerveja. Ao passar pela televisão, com as sucessivas interrupções de imagem, deixou cair:

    - Eles hoje devem ter muitos trabalhos, patrão.

    O meu colega terá notado o meu olhar perplexo, face ao comentário, e esclareceu, vi que um pouco embarçado:

    - Aí o meu pessoal, que sabe das entradas e as saídas na esquadra da polícia, acha que algumas destas quebras na luz são devidas aos choques elétricos durante os interrogatórios aos "do inimigo". Se calhar têm razão, sei lá! Não posso perguntar-lhes, não é?

    Concentrou-se na televisão, irritado:

    - C'os diabos, ao menos os polícias podiam gostar de futebol...

    * Nome pelo qual os diplomatas designam a administração do MNE

    Mario Draghi

    É muito interessante observar a diferença de atitude, em termos de apresentação pública das coisas, entre o atual presidente do Banco Central Europeu, o italiano Mario Draghi, e o seu antecessor, o francês Jean-Claude Trichet. 

    Há cerca de dois meses ouvi ambos falar em Paris, num seminário fechado à imprensa, e fiquei com a impressão (errada, pelos vistos) de que ambos seguiam um firme guião, que já pudera detetar numa conferência do vice-presidente do BCE, Vitor Constâncio. Hoje, ao ler a entrevista que Draghi dá ao "Financial Times", mudei essa ideia.

    Draghi começa a afirmar uma linha pública que, não se afastando da proverbial prudência da instituição, analisa cenários que Trichet recusava, como é o caso da possibilidade do fim do euro. Mais do que na esfera política, eu habituei-me a ter em conta muito particular estas "nuances" de discurso deste tipo de banqueiros que, como é sabido, acarretam muitas vezes consigo (e eles sabem isso melhor que ninguém) consequências no comportamento dos mercados. Um governador de um banco central (e o BCE não é um qualquer banco central) nunca diz nada por acaso e Mario Draghi tem revelado ser um homem altamente qualificado e preparado. Só que - e o defeito é meu, com certeza -, eu ainda não entendi até onde Mario Graghi quer chegar com a adoção deste diferente discurso. Mas vou continuar a tentar perceber, até porque isto não é indiferente para um país como o nosso.

    domingo, dezembro 18, 2011

    O secretário-geral

    Na grande maioria dos ministérios que, por todo o mundo, se ocupam das relações externas existe a figura do secretário-geral. O leque de funções dos secretários-gerais varia bastante de país para país, podendo a figura surgir no cume da formulação substantiva das políticas até a um modelo que assenta na sua preeminência na organização e na gestão superior da "casa". (Mas é sempre, convém deixar claro, uma entidade muito diferente daquelas que, com a mesma designação, existem noutros ministérios.)

    Em Portugal, o embaixador que exerce as funções de secretário-geral tem um papel muito importante como "chefe da carreira" e como ligação desta ao poder político que o nomeou. A sua atividade acarreta consigo uma imensa dose de responsabilidade, que se objetiva nas propostas das pessoas que vão ocupar cargos no exterior ou de chefia interna, nos processos de promoção e na muito difícil preservação de uma cultura diplomática, para compensar a transitoriedade dos ciclos políticos. Pelo secretário-geral passa muito daquilo são as carreiras dos funcionários, a alocação de principais meios financeiros, materiais e de recursos humanos. Isso faz com que, com frequência, ele seja como que uma espécie de "muro das lamentações", perante a disponibilidade limitada dos meios existentes. E, por essa mesma via, o secretário-geral é, também muitas vezes, o bode expiatório do mal-estar de algumas decisões, gerando frustrações e desânimos num corpo profissional cuja distribuição pelo mundo tem especificidades que não são comuns a outras carreiras assentes em Portugal..

    A experiência mostra que o lugar de secretário-geral é muito "feito" pelas personalidades que o ocupam, porque há uma margem da função que é desenhada através da autoridade que cada um consegue criar e pelo modo como os embaixadores que ocupam o cargo se estabilizam no quadro interno de poder. Conheci secretários-gerais muito diversos, com estilos quase opostos e que, como é óbvio, deixaram marcas muito diferentes na memória da carreira.

    Até meados dos anos 80, o gabinete do secretário-geral do MNE situava-se no "terceiro andar" do palácio das Necessidades, o andar do poder, onde está o gabinete do ministro e, com variações, os de alguns secretários de Estado. Era uma sala muito ampla, com um quase idêntico espaço destinado ao seu chefe de gabinete e secretariado, naquilo que foi uma antecâmara que tinha sido testemunha de muito da história da casa.

    Nesses anos 80, um novo ministro chegou ao MNE e o secretário-geral da época fez-lhe o "tour" das principais instalações. A certo passo, mostrou ao ministro o gabinete que ele próprio ocupava, suscitando no novo chefe da diplomacia comentários de admiração sobre a grande dignidade do espaço, com um tom que se anunciava vagamente cobiçoso. Gentil mas naif, o secretário-geral terá dito qualquer coisa como "o meu gabinete está naturalmente à sua disposição, senhor ministro". Algumas horas passaram e, ao final da tarde, o ministro terá decidido levar à letra a delicada disponibilidade manifestada pelo secretário-geral e deu-lhe instruções para procurar novas instalações para se alojar, porque pretendia dar um destino diferente ao gabinete que, por muitas décadas, fora ocupado pelo "chefe da carreira".

    Nos tempos que correm, o secretário-geral do MNE está já instalado com toda a dignidade, embora fora do tal "terceiro andar". Na data de hoje, o seu gabinete vai receber um novo titular, um embaixador que nos vai representar a todos nós e a quem desejo, com a sinceridade da muita amizade, a maior sorte. É que o novo secretário-geral vai exercer funções num contexto restritivo muito particular, num tempo de grande exigência. A sua sorte será a nossa sorte.

    sábado, dezembro 17, 2011

    José Fernandes Fafe

    Os diplomatas que investem a sua vida numa longa e exigente carreira que, apenas para alguns, culmina na ascensão à chefia de uma missão, com a categoria de embaixador, não veem com muito bons olhos, e julgo que compreensivelmente, a nomeação de embaixadores "políticos". Estes foram em algum significativo número no passado, em especial após a Revolução de abril, sendo que, nos tempos mais recentes, a frequência desse tipo de nomeações caiu muito e ficou centrada em lugares de perfil mais especializado. Mas, para sermos honestos, há que dizer que algumas dessas personalidades exteriores que passaram pela carreira - na minha pessoal opinião, apenas uma pequena minoria - constituiram-se como um real valor acrescentado para o serviço diplomático.

    Há um nome que passou pela carreira diplomática, como embaixador "político", que sempre mereceu o meu maior respeito, uma figura moral e um grande homem de cultura, cuja ação diplomática trouxe um evidente contributo para a defesa e promoção dos interesses de Portugal, nos quatro postos onde desempenhou funções. O nome é José Fernandes Fafe. Tenciono, daqui a algum tempo, falar aqui sobre um importante livro que escreveu sobre as relações com o Brasil, mas hoje vou apenas contar uma história leve, com ele ocorrida em Angola.

    Estávamos na primeira metade dos anos 80. Chefiava a nossa missão em Luanda José Stichini Vilela, como encarregado de negócios, no intervalo entre dois embaixadores. Fernandes Fafe deslocara-se a Angola, vindo de S. Tomé, na qualidade de embaixador itinerante para os países lusófonos, acompanhado do professor Luís Filipe Lindley Cintra, outra magnífica figura da cultura portuguesa, para contactos no âmbito universitário. Stichini Vilela convidou, naturalmente, Fafe e Cintra para jantar, na véspera do seu regresso a Lisboa. Foi para todos os presentes uma conversa com imenso interesse, com dois interlocutores extraordinários, duas personalidades serenas e complementares, que muito nos enriqueceram, num tempo em que, em Luanda, se vivia algum isolamento. Despedimo-nos dos convidados, depois do jantar, desejando-lhes boa viagem para Portugal.

    No dia seguinte, fomos informados que o voo diário da TAP para Lisboa havia sido suspenso e que os visitantes teriam de ficar mais uma noite no hotel. O então cônsul-geral português, Fernando Andresen Guimarães, tomou a iniciativa de organizar um novo jantar em sua casa, incluindo os convivas da noite anterior. Nova noitada de "bom papo", como dizem os brasileiros, e nova despedida coletiva a Fernandes Fafe e Lindley Cintra.

    A surpresa viria na manhã subsequente. Afinal, também nesse dia, por uma qualquer razão, o voo da TAP não se realizaria. Eu era primeiro-secretário da Embaixada e, com gosto, propus-me fazer em minha casa um terceiro jantar aos nossos visitantes. Recordo-me que foi uma noite igualmente agradável, finda a qual brincámos com a possibilidade do voo também não ter lugar no dia seguinte. 

    À despedida, Fernandes Fafe voltou-se para aqueles que haviam sido os seus sucessivos anfitriões e perguntou: "Os meus amigos gostam de Raymond Chandler?". Julgo que todos dissemos que sim, no meu caso porque fui um fanático da literatura policial. "E estas três noites não lhes fazem lembrar Chandler?". Ficámos perplexos, sem resposta, não percebendo onde queria chegar com a questão. Com um sorriso, Fernandes Fafe acrescentou: "então não se lembram do livro dele, do "The long goodbye" ("O longo adeus?")?

    Deixo aqui um forte abraço para o meu amigo (e colega), embaixador José Fernandes Fafe, no termo de um ano que sei ter-lhe sido bastante difícil.

    Notícias do défice

    No "Telejornal", transmitido pela RTP internacional, à hora de almoço de hoje, um importante direto deu-nos o privilégio de ouvir parte do discurso de posse do novo presidente da Federação Portuguesa de Futebol.

    Imagino a inveja dos seguidores da BBC World por nunca terem tido - nem nunca irem ter, estou certo - a fantástica oportunidade de assistirem, num justificado direto, às palavras do presidente da britânica Football Association, em idêntica cerimónia.

    Felizmente que ainda há países felizes, onde o sentido de serviço público da comunicação social prevalece.

    sexta-feira, dezembro 16, 2011

    Eduardo Lourenço

    Foi ontem anunciado que o prémio Pessoa deste ano distinguiu Eduardo Lourenço. Já por aqui falei, por várias vezes, deste português exemplar, residente em França, que a todos nos tem ajudado a pensar o nosso lugar no mundo e. muito em especial, na Europa. Pode aliás dizer-se, sem grande receio que alguém nos desminta, que Lourenço é o único intelectual português com um discurso coerente e estruturado sobre Portugal e a sua inserção no continente europeu. O que, sendo para ele um elogio, não deixa de ser inquietante para o país.

    Por tudo isso, não vou, nesta data em que apenas envio um forte abraço ao professor Eduardo Lourenço, deter-me muito sobre a sua figura. O que penso dele e do muito que lhe devemos disse-lho numa simples homenagem que, há semanas, organizei em sua honra na embaixada.

    Mas vou contar uma história, passada com ele antes desse jantar, de que foram testemunhas Vasco Graça Moura e Guilherme Oliveira Martins. Espero que ele não leve a mal que a conte, porque ela apenas revela a juventude saudável de um homem sem idade.

    Lourenço chegou já sobre a hora do jantar, depois dos restantes convidados. Pediu-nos desculpa pelo atraso (que, na realidade, não existia) e explicou que acabava de chegar de Saint-Denis, nos arredores de Paris, onde fora encontrar Manoel de Oliveira, que aí filmava num estúdio onde se reproduzia uma rua do Porto (!). 

    Um de nós perguntou-lhe a razão da deslocação. Curiosidade de ver Oliveira a filmar? Eduardo Lourenço deu uma daquelas gargalhadas contidas que lhe são típicas e, com uma jovialidade que só se ganha com a idade, revelou: "A verdade é que me tinham dito que o Oliveira estava, hoje, a filmar com a Jeanne Moreau e a Claudia Cardinale. E eu tinha curiosidade de ver, ao vivo, as duas senhoras". E viu ?, perguntámos. "Não, já tinham ido embora e acabei por pagar uma conta calada de taxi..." 

    Hoje lembrei-me do padre Domingos

    Das traseiras da igreja de São Martinho de Bornes tem-se esta vista. Estava assim, hoje à tarde. Lá em baixo, ficam as Pedras Salgadas, com ...