Hoje, estava uma tarde magnífica de sol, naquele cruzamento entre as ruas Castilho e Barata Salgueiro, onde eu fazia horas para uma reunião.
Olhei para a Sociedade Nacional de Belas-Artes, sob a cor imperdível dos jacarandás da rua, e lembrei-me de que foi ali que, pela primeira vez, vi Mário Soares.
Era o início de uma noite de 1969 (já meio século, caramba!), em que o então líder da oposição socialista pretendia ali organizar uma "sessão de esclarecimento". A polícia proibiu o "ajuntamento" e recordo-me bem de ouvir Soares, com voz forte e indignada, contestar a decisão, fazendo face ao famigerado capitão Maltez, antes deste ter ordenado a dispersão daquelas dezenas de pessoas, "por ordem do governo". Antes, Soares perguntou, jocoso e corajoso: "E que ministro é que deu a ordem? O da Agricultura?". Um grande jarrão, à entrada de um restaurante chinês que existia um pouco mais abaixo na rua, atrás do qual me refugiei com uma amiga, ia sendo a vítima colateral da subsequente fuga das dezenas de circunstantes e frustrados participantes na sessão.
Mas já ali não estive - e com que pena o digo! - no ano seguinte. Na primavera de 1970, um divertido grupo de amigos decidiu montar na Sociedade Nacional de Belas-Artes uma "operação" com laivos teatrais, destinada a "apanhar em falso uma certa elite que então brotava no mundo das artes e que primava pelo discurso hermético e oco". Tratava-se de uma sessão de homenagem ao "sábio" belga Alphonse Peyradon, a convite do "Círculo de Estudos da Massificação Urbana (em organização)".
O "sábio" (Peyradon era um nome que recordava "pai Adão/père Adam") fez uma intervenção tida como “notável”, misturando física com filosofia, chegando ao ponto de defender que havia vestígios de música popular portuguesa em peças de Bach e Beethoven, que o advogado Vasco Vieira de Almeida entretanto interpretava ao piano.
A sessão terá decorrido de forma animada mas organizada, até que o arquiteto Hestnes Ferreira, que antes havia glorificado a múltipla qualidade de Peyradon (representado por Leite de Faria), como "musicólogo, filólogo, filósofo e deficiente motor", passou a acusá-lo, de "revisionismo", o que provocou um conflito com o orador e homenageado. O presidente da sessão, o advogado João Esteves da Silva, declarou então que a homenagem passaria a "póstuma" e tentou dar dois "tiros" no sábio, que estava remetido a uma cadeira de rodas. Por um lapso organizativo, os fulminantes não funcionaram. As luzes da sala fecharam-se então e estabeleceu-se uma confusão, embora a prevista "morte" acabasse mesmo por ”ter lugar”, o que suscitou, de imediato, que fosse tocado um fado dedicado ao passamento do sábio, com uma letra muito oportuna.
A reunião terminaria em aplausos das duas centenas de presentes, nesse fantástico sarau lisboeta, a que, repito, nunca me perdoarei de não ter assistido, não obstante a informação antecipada dada pelo "Diário de Lisboa", jornal que eu, à época, religiosamente lia.
A cena e o "assassinato" teriam ficado por ali, não fora o jornalista Fernando Assis Pacheco ter publicado um divertidíssimo texto, dias depois, precisamente no "Diário de Lisboa", com chamada de primeira página. Trata-se de uma peça muito irónica, que só por lapso de leitura pode levar um incauto a acreditar na realidade daquilo que nela era relatado. O autor inseriu, aliás, uma frase magnífica, para descrever o "assassinato", um verdadeiro "overkill": "o primeiro tiro matou-o logo. O outro feriu-o à superfície".
Leia-se, com vantagem, o notável relato feito pelo blogue Ecosfera, para ter dados deliciosos da patranha, em que intervieram, para além das personalidades já citadas, António Vaz, Francisco Keil do Amaral, José Palla e Carmo, Eugénio Cavalheiro, etc.
No dia seguinte à publicação da "notícia", um qualquer estagiário da agência noticiosa "Lusitânia", que operava essencialmente para o "Ultramar", tomou-a a sério e redigiu um "take" nesse registo. Em Angola, alguns jornais levaram-no à letra e deram conta do "trágico" sucedido. A "Lusitânia" viria a corrigir o tiro, mas era já tarde. O mundo ficou a saber da feliz tragédia em forma de belas-artes.
Uma excelente história, com um grupo divertido, num Portugal de outro tempo.
O que uma esquina e uma espera nos podem fazer lembrar...