segunda-feira, agosto 20, 2018

Rubins


Por esse tempo, não tínhamos automóvel. Nos agostos das “férias grandes”, saídos de Vila Real, de comboio, com incómodos transbordos na Régua e no Porto, chegávamos finalmente a Viana, após imensas horas de viagem e esperas. À saída da estação, onde a família nos aguardava, cortávamos logo à direita e, de seguida, à esquerda, “para apanhar a sombra dos Rubins”, no dizer do meu pai, tático experiente dessas comodidades comezinhas. 

A Rua dos Rubins (na imagem) é paralela à principal artéria de Viana do Castelo, a Avenida dos Combatentes. Nos dias ensolados de caloraça, tem uma sombra magnífica. Os Rubins acabam junto ao cais mas, por essa altura, já se chamam, humildemente, Travessa do Salgueiro.

Era pelos Rubins que seguíamos, até cruzar a Rua Manuel Espregueira, que o meu pai sempre designava pelo nome antigo de S. Sebastião. Nas mãos dos homens, que se revezavam, iam as malas, nessa altura sem rodas (o inventor das rodas nas malas merecia ter tido um Prémio Nobel!). Na esquina, numa rotina sem exceção, o meu pai entrava, por um instante, numa casa comercial, para dar um primeiro abraço vianense ao seu amigo Magalhães Monteiro. Depois, um pouco adiante, tomávamos a direção de doca, pela Rua de Santa Clara, até chegar à casa da minha avó. Instalado finalmente no quarto, invariavelmente, eu olhava, lá no alto, a basílica e o hotel de Santa Luzia.

Foi assim, por muitos anos. Saudades desses tempos? Só das pessoas e de mim por esses anos. Mas confesso que me satisfaz bastante, agora, estar a escrever isto, com a paisagem tão simples dos Rubins à minha frente.

domingo, agosto 19, 2018

Um diplomata do bem

Era um homem que projetava serenidade. Kofi Annan, que agora desaparece, tinha uma postura e um leve e constante sorriso que logo criavam um excelente ambiente para as conversas que tinha com os seus interlocutores. Quando nos falava, olhando-nos sempre nos olhos, transmitia confiança e inspirava seriedade. Recordo bem a primeira conversa que com ele tive, comigo acabado de chegar a Nova Iorque, em 2001. Falou-me logo de Timor e, com simpatia, dos seus interlocutores portugueses nesse processo: Jorge Sampaio, António Guterres e Jaime Gama.

A diplomacia portuguesa e a coerência da nossa política externa mereciam grande respeito a Kofi Annan, que tinha mantido uma forte relação de amizade com o meu antecessor, António Monteiro, a qual tinha sido muito importante para todo o delicado processo timorense, em especial ao tempo em que Portugal integrou o Conselho de Segurança. Devo-lhe também, pessoalmente, algumas atitudes de forte simpatia, que nunca esquecerei.

Quando assumi funções na ONU, em 2001, a principal questão que se nos colocava era garantir, por parte dos cinco membros permanentes daquele Conselho, o financiamento com vista a manter em Timor-Leste as forças militares que acompanhavam o processo de transição. Annan era um “aliado” nosso nesse esforço.

A “arte” de qualquer secretário-geral da ONU é conseguir levar à prática a agenda na base da qual foi escolhido, e a que depois dá substância e coerência no cargo, conseguindo para ela o apoio do Conselho de Segurança. Se este último apoio falhar, em especial por parte dos cinco membros permanentes, o trabalho do SG fica totalmente comprometido. Kofi Annan cedo percebeu que o êxito da independência de Timor-Leste dependia da eficácia que só o completo acompanhamento internacional do processo poderia assegurar. Sérgio Vieira de Mello era o seu homem no terreno e, com Portugal e alguns outros parceiros “like-minded”, ele soube criar as condições para, com realismo e sentido da medida, assegurar esse apoio. 

Annan viveu tempos muito diferentes à frente da ONU. Com Richard Hallbrook como representante na ONU da administração Clinton, Annan foi capaz de transmitir à organização o dinamismo e a esperança que se consubstanciaram na Cimeira do Milénio. A chegada de George W. Bush à Casa Branca representou uma completa reversão na atitude americana, que iria ter o seu auge na invasão do Iraque, sem mandato internacional - um desafio à legitimidade que a própria ONU representava.

Kofi Annan foi um arauto do multilateralismo e um promotor da paz global. Não por acaso, foi-lhe atribuído o Prémio Nobel, simbolizando a confiança que o mundo depositava naquele que foi o primeiro secretário-geral de origem africana da organização.

Com a desaparição de Kofi Annan, Portugal perde um grande amigo na cena internacional. Uma grande figura de bem, um excelente diplomata, um homem de boa vontade a quem a paz e a segurança internacional muito ficam a dever.

sábado, agosto 18, 2018

Manuel Freitas


Manuel Freitas não nasceu em Viana do Castelo. Economista de profissão, ligar-se-ia à cidade através de um tio que foi proprietário da mais emblemática ourivesaria da cidade, a Ourivesaria Freitas, do qual seria herdeiro. 

Por Viana casou e a cidade passaria ser o cenário de toda a sua vida, nomeadamente do seu notório empenhamento cívico. O país, contudo, viria a conhecê-lo mais por momentos trágicos que atravessou - a sua ourivesaria e o Museu do Ouro que criou viriam a ser objeto de assaltos que ficaram na memória coletiva.

Ao ouro de Viana e à história da arte criada em seu torno Manuel Freitas dedicou grande parte do seu talento. Sobre isto escreveu e foi, ele próprio, artífice reconhecido de peças belíssimas que hoje fazem parte do património artístico da capital do Alto Minho. O Museu do Traje da cidade inclui um riquíssimo espaço dedicado ao ouro, por ele oferecido.

Daqui a escassas semanas, passará um ano desde que Manuel Freitas nos deixou. Neste dia das festas da Senhora da Agonia, em que muitas lavradeiras se passeiam com o ouro que ele com tanto carinho estudou, e que se esforçou por divulgar pelo país e pelo mundo, deixo aqui um abraço saudoso em sua memória. E também à Filomena, a sua mulher-coragem, heroína de demasiadas tristezas.

sexta-feira, agosto 17, 2018

Ir a Viana


Pela voz de Amália, Pedro Homem de Melo crismou as palavras - “havemos de ir a Viana” - daquele que é hoje o hino informal de Viana do Castelo. Quem por lá for, por estes dias, ouvi-lo-á por toda a parte, de tal modo a canção se colou à pele da cidade e dos vianenses.

O próprio Homem de Melo, veraneante na vizinha Cabanas, era um visitante regular de Viana. Há muitos anos, no centro da Praça da República, uma figura então muito conhecida da cidade, Zé Rancheiro, ao vê-lo aproximar-se, disse alto, com voz sonante, uma quadra do poeta: “O rio passa em Cabanas / Por entre fragas ... tão lindo / que embora desça da serra / parece que vai subindo”. O declamador concluiu com um admirativo “Belo poema!”, ao que Homem de Melo terá retorquido, com um largo sorriso: “Dito por Vossa Excelência!”, tudo terminando num cumprimento cavalheiresco. 

A Praça da República de Viana - finalmente liberta do “mostrengo” da estátua do Caramuru, que agora, da Praia Norte, para onde foi desterrada, poderá vislumbrar melhor o Brasil da sua lenda - não vai por estes dias ser palco de “jogos florais” com a elegância passada. É que o espaço medieval enche-se agora de bombos, de música no coreto, de gigantones e cabeçudos, imagens de marca da Romaria de Nossa Senhora da Agonia - as Festas, para o vianense.

As Festas andam por toda a cidade: do desfile das Mordomas à Festa do Traje, das procissões ao Cortejo histórico, das cantigas ao desafio às filarmónicas, dos arraiais aos tapetes coloridos de sal da Ribeira, da feira no Campo da Agonia ao variado fogo de artifício, com destaque para a Serenata sobre o Lima. E até se sentem lá no alto, em Santa Luzia, com a basílica agora de faces lavadas.

Sejamos justos! Não se encontra, pela província portuguesa, uma romaria igual. O mundo, aliás, sabe isso. Tirando a coreografia do fado, a única imagem do folclore português que sobrevive no estrangeiro, nos dias de hoje, não é outra senão a das lavradeiras vianenses - dos trajes vermelhos aos azuis, dos verdes de Geraz ao negro das noivas, com o orgulho (“chieira”, diz-se em Viana) do seu ouro por cima. A mulher, aliás, é a dona das Festas. O traje local dos homens é por ali algo incaraterístico, com a notável exceção das camisas de linho bordado (a minha é imbatível, desculpem lá!). 

Se quer um bom conselho, caro leitor, vá às Festas a Viana, durante este fim de semana único. E não se deixe tomar pelo “fica para o ano”, fingindo levar a sério o dito “havemos de ir a Viana”. Vá agora! Eu já lá estou! 

quinta-feira, agosto 16, 2018

Bolas !


Até este ano, sem exceção, o João anunciava na praia, através de uns berros roucos, as “bolinhas” e a “bolacha americana”. Nunca tive curiosidade de espreitar a tal bolacha, mas as “bolinhas” eram, como não podia deixar de ser, as “de Berlim”, com ou sem creme e aquela areia de açúcar por cima a que, se não tivermos cuidado, se junta a verdadeira. “Não engorda! Só alarga!”, proclamava sempre o João, no anúncio ao produto.

Coloquei o verbo no pretérito porque, este ano, o homem decidiu poupar-se na voz e surgiu munido de uma corneta de bicicleta. Assim, em lugar de andar no conveniente “slalom” entre os guarda-sóis, o João faz agora soar a corneta e logo ranchos de gente, em especial pequenada, acorrem ao local onde ele estaciona as caixas de madeira, à cata das bolas. 

Para quem se habituou a ser servido no cómodo das cadeiras de lona (como é o caso deste escriba) e não está em regra disposto a ir fazer fila para as molhadas, a probabilidade de ter acesso às “bolinhas” ficou agora muito reduzida. Isso poupou-me, aliás, um ror de massas e, quero crer, alguma coisa na glicose que a CUF me medirá no outono.

Há dias, saído do mar (o meu comodismo estival tem alguns limites e um banho de quando em vez faz juz à ida à praia), olhei para cima e vi imensa gente junta, no sopé da escada que desce as dunas. Perguntei o que era e alguém quase que me esclareceu: “Ou é o Marcelo nas selfies ou é o João das bolas!”. 

Não era o Marcelo, como constatei quando cheguei mais perto. Quando a pequenada desandou, pedi: “P’ra mim uma com creme, senhor João”. Ainda ajoelhado nos arranjos do material, olhou-me debaixo daquele boné vermelho com pala ao contrário, com um quase sorriso (quem é que consegue sorrir direito, depois de fazer quilómetros com duas caixas de madeira nos braços?) e disse: “Com ou sem, acabaram. Só amanhã”. Bolas!

quarta-feira, agosto 15, 2018

Sete cidades


Ialta – Recordarei para sempre a marginal dessa antiga praia aristocrática do mar Negro, de onde a “nomenklatura” soviética há muito já tinha desertado, nesse ano tão longínquo na história, de 1980. O simbolismo diplomático levou-me a visitar Ialta, atrás da memória da moderna Tordesilhas. Nem a beleza do palácio Livadia, em cujo jardim figurei Stalin, Roosevelt e Churchill, atenuou a tristeza que ressoava das lojas cheias de nada interessante e de gente resignada ao cinzento da vida. Nunca regressei.

Alcântara – Em 2006, esta cidade do silêncio agarrou-me pelo inesperado da monumentalidade das suas casas fantasmas, onde somos obrigados a imaginar uma anterior vida de fausto que não rima em nada com a atualidade. Não deixa de haver uma inescapável ironia na circunstância desta urbe de outros tempos, feita de sombras e ausente de gentes, ser hoje a vizinha mais próxima do avançado centro de atividades espaciais brasileiras. Do outro lado da baía de S. Marcos, fica a sensação que S. Luís do Maranhão, entretida no culto dos seus azulejos, nem parece notar esta sua pérola colonial.

S. Tomé – Foi a minha primeira ida a África, em 1976. A cidade tinha o ritmo, ao mesmo tempo apaziguante e abafante, de uma vilória portuguesa, na qual alguém havia plantado alguns edifícios de soberania, de gosto mais do que discutível. A marginal, que deve ter sido bonita, perdera muita da graça no seu descuido. Era a capital de um país novo, a nascer numa cidade que já estava velha. As pessoas que cruzava nas ruas pareciam estar à espera de alguma coisa indefinida. Regressei algumas vezes, com alguma angústia, a esse país de gente simples e simpática, suspenso no tempo, nosso amigo.

Trieste – Conhecia-a pela filatelia, com o seu particular estatuto internacional, no pós 2ª guerra, que aguçou a minha curiosidade adolescente. Li-a mais tarde como ninho de espiões, de encontro dos mundos da sombra. Em 2004, em alguns dias, pude constatar a ambiguidade de uma urbe italiana pelo nome, austríaca pelo caráter e jugoslava (não eslovena) pela natureza. Percebi então melhor por que Ian Morris escreveu “Trieste or the meaning of nowhere”. Não creio que dois visitantes possam dela trazer a mesma ideia.

Panjim – Em 2007, fui a Goa para tentar perceber o Portugal que por aí passara e o que dele ficara. Saí de lá mais confuso do que quando cheguei. Passar nas Fontaínhas, ou em ruas com nomes que nos são comuns, não obsta a que estejamos num mundo que é bem diferente de nós, porque provavelmente sempre o foi. Como português, senti que o passado que ainda por ali anda em algumas esquinas é já só um pretexto para reforçar a singularidade local. O que, contudo, nos deve deixar orgulhosos, mais de cinco séculos idos. 

Serajevo – A capital da Bósnia-Herzegovina nunca deixou de ser o lugar geométrico mais simbólico das tragédias da Europa. Desde que lá fui, pela primeira vez, em 1996, sempre senti o peso insuportável dos seus imensos cemitérios, uma vida quotidiana recolhida sobre si própria, como que temerosa dos olhos espalhados pela orografia envolvente. Nos seus habitantes, há como que uma espera permanente do dia seguinte, a que o visitante atento não consegue escapar. Para a Europa, Serajevo é a anti-Bruxelas.

Singapura – Pode a perfeição ser um defeito? Há qualquer coisa de totalitário numa cidade que exclui, porque os afasta com vigor, a pobreza e o menor desvio do padrão comportamental definido como ideal. Nas ruas floridas e nas lojas opulentas daquela ilha artificial, onde o sucesso é a lei de vida, há um mimetismo idealizado do ocidente, incrustado numa Ásia de que sobrevivem apenas os clichés desejáveis. Bandeira chamaria Pasárgada a Singapura? 


(Neste tempo em que alguns viajam mais, apeteceu-me recordar uma nota que a revista "Intelligent Life", em 2011, me pediu sobre “sete cidades”)

terça-feira, agosto 14, 2018

Cruzamentos

Cruzei-me há minutos com um colega que já não via há muito. Ele era, nesse outro tempo, um rapaz muito tímido, metido em si, que sempre queria passar desapercebido, com tanto medo de dar opiniões que parecia que pensava duas vezes antes de nos dizer bom-dia.

Agora está mais solto: “Tenho visto que continuas com a mania dos restaurantes”, disse-me. ”Só não percebo como é que tu, andando sempre nessa vida, não engordas...”. Quando me preparava para lhe dizer que ele tinha de recorrer rapidamente a um oftalmologista, completou “...mais!”

Checkámos memórias comuns de terceiros, por uns minutos - “quem morreu foi o...”, ”quem encontrei há tempos foi o...” - e despedimo-nos com a promessa de estarmos naquele imenso almoço que, desde há anos, cada um de nós vem a programar com uma legião de amigos e de conhecidos, e para o qual nem a área total da FIL chegaria. 

“Ah! Mas não pode ser num desses restaurantes estrelados do Michelin, de que tu gostas! É que eu, para estrelados, é só ovos!“ E deu uma gargalhada que assustou duas tisnadas balzaquianas, a darem-se ares de finas lá na esplanada do Pereira.

Soltou-se, com os anos, aquele colega! Ainda bem! É que tenho vindo a encontrar velhos conhecidos que, com o passar do tempo, se tornam “sérios”, com vagares no gesto e pausas nas falas, talvez para ganharem “gravitas”, sabe-se lá bem para quê.

“Restaurante do Rio”


Em Cuba, desde há bastantes anos, a rigidez do regime havia-se flexibilizado ao ponto de permitir que certas casas particulares fossem transformadas em restaurantes privados. Têm o nome comum de “paladares”. A sua qualidade varia muito e não deixa de ser curioso, embora um pouco chocante, ver surgir, num andar de Havana “vieja” ou numa moradia de um bairro residencial da “nomenklatura”, locais onde, a preços elevados, se proporciona uma oferta gastronómica de muito razoável qualidade, perante a penúria proletária da vizinhança.

Ver aparecer uma iniciativa idêntica na península de Tróia foi, para mim, uma agradável surpresa. Há meses, uns amigos comuns, em tom de grande secretismo, vieram falar-me de um tal “Restaurante do Rio”, em Soltróia. Nunca tinha ouvido referências a essa casa, nessa zona estival que é um quase deserto em matéria de restauração, o que, pelo menos no meu caso, me obriga regularmente a deslocar-me a Setúbal, pela Ponte Bocage, que une a cidade do Sado a Tróia, e que agora foi finalmente inaugurada, o que permitiu ontem a muita gente vir para a praia Atlântica ver a “chuva de estrelas”.

Arlinda Reigoso, uma senhora que em Darque, nos arredores de Viana do Castelo, é proprietária da já afamada “Tasquinha da Arlinda”, decidiu, desde há uns tempos, reproduzir a sua interessante experiência minhota, criando em Tróia um espaço, dotado de uma requintada mesa comum, onde, sob a mão criativa da Vivianne, a cozinheira oriunda das Maurícias e que vive com um sargaceiro da Amorosa, nos é proporcionada uma gastronomia de fusão, onde os travos minhotos se aliam a sabores do Índico. 

O “estufado de dodó salpicado a sal marinho, que acompanha com línguas de bacalhau do sul da Islândia” ou “arroz de sarrabulho com caril e coentros, à moda do Barco do Porto” ou, nas sobremesas, o disputado “pudim abade de Darque, com molho de bebinca e redução de ameijoas”, são três “must” que, só por si, justificam a notoriedade da casa. 

A Arlinda já se tornara famosa pela circunstância de, em alguns momentos excecionais, conseguir levitar (embora apenas uns escassos centímetros e em condições especiais de pressão e temperatura), técnica aprendida com um budista de Serreleis, com quem teve um caso sério em tempos.

Imagino que alguns leitores possam, contudo, não apreciar duas limitações que marcam este novo espaço singular de restauração da Arlinda. 

A primeira é que ali só se bebe branco, o que alguns, talvez maldosos, levam à conta do facto do Arnaldo, o atual companheiro da Arlinda, ter vivido, por algum tempo, num bantustão sul-africano, no tempo do “apartheid”. Há semanas, um casal de Armamar pediu um tinto e ouviu-se o berro do Arnaldo: “Aqui só entra branco!” Depois, ainda mais esquisito, acrescentou: “E nada de verde, só maduro! Nem essa mariquice dos rosés!”

A segunda é, com toda a certeza, um forte “senão” para quem vive convencido por essas coisas modernaças do ambiente: é que, à roda da mesa, fumando o seu cachimbo como uma chaminé, passeia-se incessantemente o Arnaldo, impante na sua barriga e com uma alvura de pele que o mostra um eterno refratário à praia logo ali ao lado. Embora o Arnaldo cantarole por ali o “Cara al sol!”

Ah! E o Arnaldo é do Futebol Clube do Porto, provocando com dichotes ácidos os clientes de outras estimáveis agremiações. Ele diz que vermelhos nem passam da soleira da porta! Diz-se que gente do Leixões e do Salgueiros, nem vê-los! 

É, de facto, um ambiente pouco comum, o do “Restaurante do Rio”. Mas interessante. Mais estranha talvez é a fórmula encontrada pelo casal para aceitar reservas. Trata-se de um “site”, assente num “call center” situado no Cais Novo, lá por Darque, onde vive um primo do Arnaldo, o Lalau, que faz uma “perninha” a ajudar no 112, quando tem horas vagas, através do qual se fazem as inscrições. Eu, que já marquei em julho, só consegui vaga para o jantar de hoje. 

No fim das férias, prometo que lhes vou deixar aqui uma dica que vai facilitar muito as oportunidades para lá poderem ir, embora só na “saison” de 2019. Sobre o preço da refeição não me pronuncio, porque sempre aprendi que não é de boa educação, em sociedade, falar-se de dinheiro, de saúde, de religião, de política e de quem não está presente na conversa.

segunda-feira, agosto 13, 2018

Elogio da vilegiatura

Estou prestes a encerrar o capítulo arenoso, aquático e fotovoltaico das minhas férias. Correu tal e qual o tinha pensado, tirando o inferno do calor da semana passada, que não estava no programa. Há quem goste de ter férias excitantes. Que lhes faça bom proveito! Eu excito-me imenso com uma bem gerida rotina de descanso absoluto, tentando não ser confrontado com a menor surpresa (embora ninguém esteja livre de um telefonema no-la poder trazer, e bem desagradável), com a jubilosa antecipação de não ter horas para cumprir quaisquer outras agendas que não sejam as da (minha própria e bem estudada) desorganização, vivendo com serenidade (e sem dramas) a frustração de não ter conseguido ler sequer um terço do que trouxe comigo, acarretando os quilos a mais que já sabia que iria ganhar (medidos "a olho", porque felizmente não tenho balança). O meu "mês Timberland" segue assim, com precisão, o "template" que lhe imprimi nos últimos anos. Prometo (mas só a mim próprio, para poder incumprir sem ter de me desculpar, se tal me der na real gana) que vou pensar se, para o ano, continuarei a (não) fazer o mesmo, isto é, tendencialmente e com o comprovado êxito, a conseguir levar a cabo, de forma esforçada, o desiderato de não mexer uma palha. Fala-vos um "expert": é que requer imenso trabalho, e diuturnidades de aturada prática de sofá, conseguir gerir, de forma sustentada, a preguiça a que conquistámos um inalienável direito, com o suor da completa ausência do menor exercício físico.

Madonna

A presença de Madonna em Portugal é uma benção mediática para o país. Por isso, faço votos que estacione onde quiser e apoio a facilidades municipais para tal. Ela é bem vinda como o são todas as figuras internacionais que aqui queiram viver e com isso ajudem a mostrar, lá fora, a excelência desta terra. Mas posso confessar um segredo? Nunca achei a menor graça à senhora. (Mas não lhe digam, porque eu gosto de ter as melhores relações com os vizinhos).

Elogio da humildade

Cada vez mais gosto de gente que assume os seus erros, que confessa que se enganou, que o que previu não se realizou, que fez o seu melhor mas que esse melhor acabou por não ser o ótimo. Mas não me sinto muito acompanhado neste sentimento.

Elogio da diferença

Às vezes, sinto vontade de ver dirigentes políticos de acordo entre si, subordinados a uma espécie de lógica de racionalidade e bom senso. Mas logo me dou conta que isso não tem o menor sentido, porque é o dissenso, desde que não artificial, que gera as alternativas democráticas

domingo, agosto 12, 2018

Nine


É este verão que vou a Nine! 

A estação ferroviária de Nine faz parte do meu imaginário de infância, quando, em férias “grandes” ou do Natal, ia com a família de comboio, de Vila Real a Viana do Castelo. Passadas as várias horas necessárias nas linhas do Corgo e do Douro, a última etapa da viagem fazia-se entre o Porto e Viana do Castelo. E por lá, a certo ponto, estava Nine!

Nine é um entroncamento. Dali parte um ramal para Braga. Se bem me lembro, na estação, as carruagens do comboio que ia por essa rota, para mim sempre misteriosa, faziam uma ligeira inclinação, ainda na estação. Creio ter usado esse ramal uma única vez, numa ida de Viana a Braga.

Era eu então muito miúdo e o meu pai ensinou-me que “nine” era “nove” em inglês (deve ter sido a primeira palavra inglesa que aprendi). Anos mais tarde, revelou-me que havia o mito (ele sabia que era um mito!) de que a localidade se chamava assim porque os ingleses, responsáveis pela construção da via férrea, haviam designado dessa forma aquela que era então a nona estação a contar do Porto. Ainda outro mito, a que o meu pai nunca aludiu e que só vim a conhecer mais tarde, dava como certo de que esse “nine” era o número de mihas que dali distava Braga...

Afinal eram tudo “escovas”, como na minha família lá por Viana ainda hoje se designam as mentiras populares (não é assim, Filomena e Carlos?) É que documentos antigos, as “inquirições”, datadas de 1220, já falam de “Santa Maria de Nini”, nesse local, o que desmonta todas essas teorias de conveniência.

Por estas e por outras, daqui a dias, vou passar por Nine!

(E lá fui, como se pode ver pela imagem junta! Como se nota, sobrevive, face à imagem anterior, o edifício ao fundo, com três arcos)

sábado, agosto 11, 2018

Chegou o circo!



Já chegou! Mais um ano de irracionalidade, de insultos, de conflitualidade artificial, de “A Bola”, de “foi-não-foi-penalti”, do “Record”, de “estava-não-estava-fora-de-jogo”, de “O Jogo”, de árbitros insultados, de mentiras, de subornos, de advogados comentadores, de luvas e comissões, de claques ajavardadas, de “misters” reverenciados, de “cultura de balneário”, de televisões incendiárias, de conferências de “imprensa”, de dirigentes sempre com ar grave e linguagem primária, de “jornalistas” a fingirem de jornalistas, propalando a sua “verdade” colorida pelo viés clubista. Já aí está montado o grande circo do ano, onde os pais ensinam aos filhos que uma falta de um jogador da sua equipa ”não é bem” uma falta, que o adversário é o inimigo a odiar e combater. Aí está ele, o país sectário que finge que gosta de um desporto chamado futebol quando, no fundo, apenas pretende alimentar o culto acéfalo de uma religião criada em torno de um emblema qualquer, tal como pode ter uma obsessão em favor de um partido ou de uma igreja. E há muito quem leve isso a sério, como se essa adesão a uma cor fosse a coisa mais importante do mundo! E da vida! (E, coitados!, para eles, se calhar, é.) Eu, cá por mim, tendo também afetividade por um clube, gostando de o ver ter sucesso, mas estando muito longe de cultivar essa estima de forma doentia, gosto é de ver futebol. E muito!

Elogio do silêncio?

O descendente da família que ocupou hereditariamente a chefia do Estado português até 1910, personalidade estimável a quem o regime republicano até se dá ao luxo de conceder a amabilidade de um destaque honorífico na coreografia do seu protocolo, habituou-nos a vir a público, episodicamente mas sem regularidade, dizer de sua justiça sobre alguns temas da atualidade. Esse é um direito que democraticamente lhe assiste e que nos cumpre defender e respeitar - tal como a qualquer outro cidadão desta República democrática.

Como não faço parte de quantos - entre os quais conto alguns bons amigos - aguardam um ensejo, numa nova curva da História, para promover a restauração do regime derrubado vai para 108 anos, apenas alguma curiosidade faz com que, desde sempre, esteja razoavelmente atento ao conteúdo desses afloramentos discursivos. Dentre eles recordo coisas sensatas que lhe podem ser creditadas ao tempo da luta pela autodeterminação dos timorenses e, num polo algo contrastante, a sua criativa proposta para que se desistisse da realização da Expo98, a semanas da respetiva abertura. 

No cômputo global, o saldo desses pronunciamentos não parece, até ao momento, ter impressionado excessivamente o país - e daí a estranha ausência, quiçá injusta, de uma recolha escrita das suas ideias e propostas. Diria mesma, na minha perspetiva de republicano, que o que o herdeiro em causa tem vindo a dizer quase sempre me conforta, por não ter condições para ferir, nem ao de leve, a estabilidade do ”statu quo” que favoreço.

Uma coisa é clara: sinto os seguidores da crença monárquica quase sempre bem mais inquietos com o efeito público daquilo que surge dito pelo herdeiro da família Bragança do que ansiosos por acolherem o favor da sua palavra orientadora, como guia e estímulo para servir de alimento doutrinário à sua causa. Deixo o mistério da explicação deste facto para quem faz parte desse ramo de fé institucional a que o destino me poupou.

sexta-feira, agosto 10, 2018

Desprezo

Sinto um imenso desprezo - é essa a palavra - pela alarvidade de alguma comunicação social que contesta o uso da força democrática para salvar algumas pessoas das consequências potencialmente trágicas da sua teimosia e do seu desespero no quadro dos incêndios.

Loureiro dos Santos


Um dia, nos tempos em coincidimos numa aventura de aconselhamento universitário, em conversa com o meu saudoso chefe da “tropa”, o general Gabriel do Espírito Santo, vieram à baila nomes dos tempos do “verão quente” de 1975. Embora tivessem decorrido algumas décadas, o impacto desses dias comuns mantinha em nós fortes impressões sobre algumas figuras, embora nem sempre coincidentes. Ele conhecia-as mais de perto, eu tinha criado uma visão mais ligeira, feita nos corredores e nos episódios vividos no seio do MFA, por onde tinha “passarinhado” como civil fardado. 

Recordo-me de lhe ter então dito que tinha pena de não ter conhecido bem o general Loureiro dos Santos, de quem tinha uma excelente opinião, em especial depois de ter lido algumas reflexões teóricas que ele vinha a fazer sobre estratégia e política de defesa. Os olhos do “meu general” arregalaram-se: “O Loureiro dos Santos?! Ó homem! Esse é o melhor de todos nós!”

Luisa Meireles, uma jornalista cujo rigor, infelizmente, começa a ser muito raro na nossa imprensa, acaba de publicar uma excelente biografia de Loureiro dos Santos. Li-a de um trago. E através dela pude “recortar”(utilizando uma expressão do léxico das “informações”, que aprendi com Espírito Santo) a figura de Loureiro dos Santos, percebendo assim, não apenas as razões de algum do seu comportamento naqueles tempos revolucionários mas, principalmente, esclarecendo as motivações do seu posterior envolvimento governativo e em funções de chefia militar.

Loureiro dos Santos nunca foi verdadeiramente um político, mesmo quando exerceu funções dessa natureza. Percebe-se bem por este livro que foi sempre um militar, fiel às determinantes de uma condição que, para ele, foi muito menos uma profissão e muito mais uma vocação, um empenho quase obsessivo numa certa forma de ser servidor público. Pelo que a biografia de Luisa Meireles agora nos traz, confirmando o que dele já se conhecia, pode mesmo imaginar-se alguma angústia que o terá atravessado, nesses dias de abril, obrigado ao dever cívico da revolta contra o respeito hierárquico em que fora educado. Este livro ajuda-nos a entender bem que o 25 de abril não foi apenas, contrariamente à perceção comum, uma Revolução “de esquerda”. Foi também, para gente conservadora e patriótica como Loureiro dos Santos, uma revolta essencialmente ética e democrática. Sem gente como ele e como Ramalho Eanes, no seio do MFA, pergunto-me hoje se poderíamos ter escapado então a uma guerra civil.

quinta-feira, agosto 09, 2018

Boa cama? Boa mesa?

Olha-se para as duas “news magazines” que saem à quinta-feira e nota-se claramente que se “policiam” uma à outra, em matéria de temas. Como ambas já perceberam quem as compra, a sociologia empírica de quem as organiza segue uma lógica compatível com os potenciais interesses de consumo desses extratos sócio-económicos. 

Tudo normal e, sejamos justos, o resultado é jornalisticamente bastante apreciável, se comparado com produtos similares estrangeiros - embora apenas se dermos por adquirido que a deriva para temáticas mais “light” é uma coisa inevitável nos tempos que correm.

Com Sócrates fora da prisão a ficar fora de moda (e que belo filão que ele foi, por alguns anos!), deu imenso jeito que o processo tivesse derivado para os Espírito Santo - porque isso misturava, no imaginário do leitor, negociatas, crimes, inveja, glamour social e, claro, Comporta. E quem diz Comporta diz Alentejo, diz praias, restaurantes e “dicas” para “escapadinhas” (termo que ganhou dignidade familiar, depois de décadas em que significou apenas infidelidade hábil ao serralho), agora que o Algarve já está um tanto “démodé” e as coisas com um toque de rústico têm outro charme (o tal “brincar aos pobrezinhos”, frase de uma senhora que, sem o saber, passou a clássico).

Esta semana, imagino o que deva ter sido o sufoco pelas redações da “Sábado” e da “Visão” - e não só devido ao calor. Os tremendistas devem ter puxado por lá pelo destaque de capa ao fogo em Monchique, mas nota-se, claramente, que, em ambas as revistas, ele perderam a luta interna em favor da agenda da rapaziada do “bem-estar”. No fundo, foi a vitória do “mon chic” sobre Monchique! É que o “numerozinho” de Verão alentejano que estava há muito preparado para sair, nesta semana sempre gloriosa de agosto, ou “entrava” agora ou já não ia a tempo. E lá se ia a enxurrada de casas de dormidas e de restaurantes que agora fazem parte obrigatória destes “Time Out” rural, em que os semanários se converteram.

Mas é ou não verdade que essa informação “dá jeito” para quem viaja ou anda de férias? Claro que sim, e eu próprio não a dispenso, embora reconheça que, neste domínio, são-nos dados mais endereços do que verdadeira informação. É que as casas divulgadas são sempre “confortáveis”, ”serenas”, com uma piscina “para refrescar o fim das tardes” e os imensos restaurantes aparecem regularmente edulcorados pela positiva - nos pratos, na variedade ou no serviço. 

Ora o que eu, como regular leitor (e sou dos que compram ambas as revistas, sem falhas, desde os seus “número um”), gostaria de poder obter era uma apreciação relativa, notas sobre não só sobre o que se destaca, mas também sobre as deficiências e limitações de cada local, de dormida ou comida, enfim, algo que me ajude a escolher. Mas como, afinal, ali “tudo é bom”, quase sem falhas, estas revistas acabam por se parecer como o volume que o “Expresso” edita todos os anos, o “Boa Cama, Boa Mesa”, onde se misturam alhos com bugalhos, coisas excelente com locais sofríveis, num reino de adjetivação gongórica que não serve minimamente o utente, exceto para obter o número de telefone e para lembrar um nome qualquer num lugarejo.

Mesmo assim, boas férias! Ah! E querem saber?, comi ontem muito bem no “Museu do Arroz”, na Comporta! Descansem que, um destes dias, digo por onde, nesta geografia, se come menos bem, onde o serviço é medíocre, o ambiente menos agradável.

quarta-feira, agosto 08, 2018

Palermas

Já alguém pensou em lançar uma campanha de civilidade explicando que quem fala ao telemóvel em público, obrigando os outros a ouvirem as suas desinteressantes conversas - para a família, os colegas ou para o diabo que os carregue -, são apenas uns saloios mal-educados, uns energúmenos deslumbrados por um aparelho que acham que lhes dá estatuto, e que, no fundo e apenas, não passam de uns palermas? 

Quem por aqui me lê e se acaso assim procede quando está nos cafés e restaurantes, em salas de espera, nas praias, nos comboios e autocarros e em outros locais públicos deve “enfiar a carapuça”, porque isto também é eles, desculpem lá!

terça-feira, agosto 07, 2018

Especialistas e “especialistas”

De há uns tempos para cá, surgiu um número inusitado de escândalos com currículos, em especial pela invocação abusiva de títulos académicos e outros. Na verdade, todos sabemos que o mundo dos currículos é um palco para exageros, falsidades, alguns passíveis de fácil desmontagem, outros um pouco mais difíceis de destrinçar, tal o arrevezado de certas designações. As pessoas ficaram um pouco mais alerta, mas os riscos neste domínio continuam.

Mas há outra realidade que por aí anda e face à qual não tenho visto uma suficiente reação: é o surgimento de “especialistas em ...”, quer em jornais, quer principalmente nas televisões. Um título desta natureza confere àquilo que a pessoa diz uma autoridade automática, uma reverência intelectual. Ora o que se passa é que muitas dessas figuras apenas têm (quando têm) um curso ou uma qualificação académica num determinado domínio - o que é muito diferente de serem “especialistas”, que é uma designação que se pressupõe poder ser atribuída apenas a quem tem uma grande (e reconhecida pelos seus pares) experiência de investigação ou em atividade em áreas práticas do setor. 

Assim, convém estar muito atento: há especialistas e “especialistas”.

segunda-feira, agosto 06, 2018

Um fresquinho que corre


Imagino que a idade - e, neste caso, a minha - possa contribuir bastante para o modo como cada um “sofreu” a recente onda de calor. Devo dizer, com a maior sinceridade, que, a certo passo, comecei a preocupar-me sobre se aquilo por que estávamos a passar era compatível com a vida corrente de um país como o nosso, com a nossa situação geográfica, com a nossa pobreza relativa. Um país onde, por exemplo, o ar condicionado não é ainda, infelizmente, um bem comum muito difundido, em que os hospitais e centros de atendimento em matéria de saúde são o que são, em que de há muito se instalou uma visível “orfandade”, em que o cidadão olha para o Estado, e para a palavra deste, com alguma falta de confiança. Parece que isso agora se atenuou ou passou, que o clima “apanhou juízo”, pelo menos até ao dia em que algo de similar volte a passar-se de novo. E é isso que temo: que situações como a que vivemos nestes últimos três dias possam voltar a ocorrer no futuro e que não tenhamos aprendido a lição de que, como diria Dilan, os tempos estão a mudar. É que isso implica planos ativos de prevenção em caso de futuras ondas de calor, medidas de adaptação habitacional para contrariar os efeitos dessa inevitável deriva, educação maciça sobre os modelos de comportamento pessoal a adotar em casos futuros, etc. Um bom instrumento para nos “ajudar” a preocuparmo-nos seria a rápida divulgação de estatísticas fiáveis sobre as mortes “em excesso”, para os valores normais, que possam ter sido derivadas desta conjuntura. A boa notícia é que corre lá fora um simpático “fresquinho”. E, como dizia há pouco um amigo com gosto para o exagero, com ele até já parece setembro...

domingo, agosto 05, 2018

Miguel Chalbert


O Luis Gomes de Abreu, que o tempo já levou, falou-nos um dia de um colega e amigo, como ele também arquiteto, que estava a trabalhar em Angola. O nome dele era Miguel Chalbert.

Eu estava então colocado na embaixada em Luanda, mas nunca me tinha cruzado com ele por lá. Numa vinda a Lisboa, a mulher do tal Miguel, a Filomena, foi-nos apresentada e pediu-nos se podíamos levar ao marido já não sei bem o quê. Da conversa, recolhi a impressão de que ele estava desencantado e infeliz no seu “exílio” angolano. E fiz um retrato mental da personagem: um lingrinhas enfezado, deprimido e macambúzio, um imenso chato, perfil comum de alguns expatriados lusos que paravam por Luanda, à cata dos Kwanzas convertíveis nos então Escudos, que faziam o seu possível contentamento. Por isso, apiedámo-nos do amigo do amigo e levámos a encomenda, seguramente umas vitualhas para acalentar a boca, porque Luanda era então um imenso supermercado “do nada”.

Pouco depois, mandámos recado ao tal “solitário” Miguel Chalbert, convidando-o para jantar. Quando abrimos a porta, chegou-nos um gorducho bem disposto, ótima onda, humor de primeira, com uma gargalhada magnífica, grandes histórias, um companheirão, que passou a ser “peça” indispensável nos fins de semana no Mussulo e em Cabo Ledo, e nos jantares “soltos“ do pessoal da embaixada - pdo António Pinto da França ao Fernando Andresen Guimarães e ao Zé Stichini Vilela, com a Élia Rodrigues à inevitável mistura. E que foi também “adotado” pelo Vasco Correia Mendes, para as noitadas incontáveis da casa dos “Guedais”. 

Ouvir da boca do Miguel os episódios da guerra da Guiné - onde tinha tido um colega que, num grupo que fora a Alemanha e onde ele era “o único que falava alemão”, berrava aos colegas, na travessia das passadeiras “Atchung!”, versão lusa do “Achtung!” - era garantia de excelente companhia, de horas bem passadas, bem comidas e bem bebidas. A estucha que Luanda podia ter sido, nesses anos de recolher obrigatório e prateleiras vazias, acabou por se transformar, também muito graças ao Miguel, num tempo divertido, rico, de muito boa memória.

Falo agora do Miguel, porquê? Ora bem, porque a Filomena, a Mena, que também ficou muito nossa aniga, anunciou hoje no Facebook que o Miguel faz 75 anos. De lá roubei esta fotografia dos dois. 

A vida, nos últimos anos, tem pregado ao Miguel algumas partidas chatotas, mas tenho a certeza de que a sua inseparável gargalhada vai hoje ajudar a compor o dia festivo. Um imenso abraço para ti, “Miguelaço”, como cá na família, como sabes, és também conhecido.

José David



Acabo de saber, pelo facebook do Daniel Ribeiro, que morreu em Lisboa o José David. Conhecia o seu nome mas menos bem a sua obra como pintor quando, em 2009, fui para Paris. 

Pouco depois da minha chegada, o jornalista Daniel Ribeiro transmitiu-me um convite do José David para “uma bacalhauzada” na pequena casa que, com a sua mulher Françoise, ocupava ao fundo de uma artéria sem saída, creio que perto do boulevard Montparnasse. Recordo umas horas de conversa bem divertida, nesse ano de 2009

Falámos então das suas décadas de Paris e da sua obra, que estava ali por toda a parte, e fiz-lhe um desafio: expor na embaixada de Portugal, na rue de Noisiel. O José David ficou entusiasmado e, com a ajuda da Fátima Ramos, então conselheira cultural, montámos a “operação”, uns tempos depois. E foi uma bela exposição. Recordo-me que ele não quis que fosse uma retrospectiva do seu trabalho, como nós tínhamos sugerido, mas sim sobre o seu tempo artístico de então. No final, achei que era ele quem tinha tido razão.

Depois, ainda nos meus anos em França, fomo-nos vendo a espaços, algumas vezes na embaixada, ele com uma eterna bonomia e aquele seu bigode inconfundível, a Françoise com o eterno e terno sorriso que a idade ia tornando ainda mais bonito. Cruzámo-nos, há uns tempos, na Versailles. Abraços e promessas de um almoço que nunca se realizou. Agora já não vai ser possível. “Je vous embrasse, Françoise”.

sábado, agosto 04, 2018

Notícias da estação (3)

A Lena e o Chico têm sempre uns amigos curiosos lá por casa. Ontem, para jantar, numa noite de calor digna de “A noite de Iguana”, embora sem a Sue Lyon, estava lá a Arlinda.

A Arlinda nasceu na estrada da Papanata, mas há muito que vive em Darque, onde tem uma casa de petiscos. Para quem não saiba, Darque está para Viana do Castelo como Gaia para o Porto: fica depois da ponte Eiffel, logo a seguir ao Cais Novo.

Nestes dias em que o lugar onde a Arlinda vive está a “Darque falar” - como se diz em Viana - constou-me que se fala por lá bastante desta mulher, embora por uma razão estranha mas notável: a Arlinda levita.

Isso mesmo, levita! Em determinados momentos de concentração e com ambiente adequado, diz-se que a Arlinda, estando sentada, subitamente se eleva, ainda que apenas ligeiramente, acima do solo, mantém essa posição por uns segundos e depois desce, voltando à postura do comum dos mortais.

Sempre fui um cético quanto à teoria da levitação. Diz-se que alguns monges budistas são capazes desta habilidade, mas eu, cá para mim, sigo sempre a máxima de “ver para crer”. Ainda admiti que a Arlinda pudesse ter apanhado o jeito numa viagem ao Tibete ou ao Butão, mas parece que não! Terá sido mesmo lá em Darque, aprendendo com um convertido budista de Serreleis.

Quando ontem, depois do jantar, alguém me sussurrou que “parece que a Arlinda, daqui a pouco, é capaz de levitar”, fiquei de pé atrás mas de olho curioso na Arlinda, que, sendo uma rapariga bem pesadota de carnes, tornaria o propalado desafio da lei de Newton num caso muito sério.

O jantar já ia lá para a meia-noite quando, finalmente, ouvi uma voz informativa, em tom respeitoso, baixo: “A Arlinda está a levitar”. Olhei então para o sofá onde a Arlinda estava sentada e, de facto, pareceu-me vê-la pouco esticada para cima. Estaria mesmo a levitar? O balandrau que vestia, daquelas coisas largueironas com desenhos de cretones das cortinas, muito vulgar em algumas “velhoquistas” (expressão deselegante de um amigo meu para designar os adeptos do Bloco já entradotes na idade), não dava segurança absoluta de que se tratasse de uma levitação, pelo menos tal como vem nos livros.

A sala, contudo, parecia conquistada, num silêncio respeitoso, à volta da Arlinda, todos deliciados com o fenómeno. Ainda por cima, ocorrido dias depois da noite da lua rosada. Está a ser um Verão mesmo em cheio!

Só o Chico, junto de quem tentei desfazer as minhas dúvidas, é que acabaria por ser mais prosaico: “Levitou o tanas! Aquilo devem ter sido gases!”

Pronto! Com este balde de água fria no encantamento, acabei por ter de prolongar o meu ceticismo. Mas já decidi: daqui a dias, depois das festas da Senhora da Agonia, vou a Darque. É que se diz que lá é que a Arlinda levita mesmo a sério, na casa de petiscos dela, “A Tasquinha da Arlinda”, cujo nome diz-se, está a provocar uma irritação, sei lá bem porquê, na Ribeira de Viana.

Há bocado, falei disto a alguém que também esteve no jantar. Não se lembrava de nenhuma Arlinda por lá. Agora, fico na dúvida. Teria sido do calor? Ou do Muralhas?

sexta-feira, agosto 03, 2018

Que Brasil vem aí?

O Brasil de hoje vive marcado pelo fantasma de Lula. Só um milagre poderá possibilitar a sua candidatura. Se acaso viesse a ocorrer, as suas hipóteses de regressar ao Planalto não seriam poucas. Não sendo assim, há dúvidas de que o velho lema de que “Lula elege um poste” ainda seja válido (foi-o com Dilma Rousseff), que, da cadeia, consiga transferir os seus votos, mesmo para Fernando Haddad, antigo ministro da Educação e prefeito de São Paulo. Resta assim saber se o PT apoiará a candidata do seu eterno “compagnon de route”, o PC do B, que apresenta Manuela d’Ávila.

O PT deverá concentrar a sua luta nos Estados, num jogo de alianças para o futuro, com os territórios do Nordeste como espaço central de influência. Não vai querer perder o controlo da esquerda brasileira, pelo que tudo fará para anular candidaturas fortes que possam vir a crescer próximo dessa área, como seria o caso de Ciro Gomes. Trata-se de uma figura intelectualmente bem preparada, com experiência governativa, mas com uma incontinência verbal e uma arrogância intelectual que sempre o prejudicaram. 

Dizer que Marina Silva, recandidata e antiga ministra do Ambiente de Lula, é hoje uma personalidade de esquerda seria uma afirmação arriscada. Opera num registo charneira, com temas ambientais e um discurso social, que seduz pela genuinidade mas afasta pela relativa vacuidade. 

Marina Silva e Ciro Gomes estão condenados a ser candidatos “solitários” nesta campanha, em termos de apoios partidários – o que, desde logo, os prejudica nos tempos de antena, cuja dimensão temporal, no Brasil, depende do peso dos partidos que lhes formalizam apoio oficial.

No centro do espetro político – mas, ideologicamente, em termos europeus, claramente à direita - surgem as duas candidaturas mais “tradicionais” desta eleição: Geraldo Alckmin e Henrique Meirelles.

Alckmin é o político com mais experiência. Governador e prefeito de São Paulo, foi derrotado por Lula em 2008 e preterido partidariamente em favor de Aécio Neves, nas últimas eleições, ganhas por Dilma Rousseff. Apoiado pelo PSDB, o partido de Fernando Henrique Cardoso, conseguiu garantir o importante apoio do DEM, uma força mais conservadora (que já se chamou PFL e que teve origem na Arena, o partido apoiante da ditadura militar), bem como de um conjunto de outros pequenos partidos do chamado Centrão. Tem assim garantido o maior tempo de antena, o que não é despiciendo. Será isto suficiente para ganhar? Diria que as suas hipóteses são fortes, mas que fraco é o seu carisma, com uma imagem “usada” e sem o fator “novidade” de que Aécio Neves dispunha. 

Henrique Meirelles é um candidato que procura explorar a credibilidade criada junto dos meios empresariais, pelo tempo excelente que teve como governador do Banco Central ... escolhido e apoiado por Lula! Designado pelo MDB (antigo PMDB, que nasceu do MDB, a oposição permitida no tempo da ditadura), do desacreditado presidente Temer, não deve ter um caminho fácil, porque a força política em que se apoia é um partido estranho, que não oferece disciplina política e funciona numa pura lógica de ocupação do poder, sendo talvez esta a sua verdadeira “ideologia”. 

Resta falar do fenómeno Jair Bolsonaro. Dizer que é uma espécie de Trump é talvez demasiado simples. Tem em comum um certo primarismo no eixo do discurso, uma linguagem desbragada e politicamente incorreta, dirigida a um eleitorado simples, eticamente desblindado. O seu “fond de commerce” é o crescente sentimento de insegurança que atravessa toda a sociedade brasileira e a sua reiterada referência é a memória, que afirma como positiva, da ditadura militar que, em 1985, deu lugar à democracia que muitos brasileiros acham hoje que não funciona convenientemente. É talvez o único candidato da rutura, e isso beneficia-o, mas o real apoio às suas teses é uma imensa (mas preocupante) incógnita.

Há agora muitos meses pela frente, cenário de factos futuros que tudo podem condicionar. Mas há uma evidência: é um Brasil visivelmente desencantado, com escassa esperança, que agora parte para esta corrida presidencial. 

Notícias da estação (2)

Acho-o remoçado, o Sebastião Falcato, desde que é secretário de Estado dos Assuntos Sociais. Quem o viu e quem o vê! Conheci-o ao tempo em que era da JS de Sabugueiro, quando me convidou para lá ir falar sobre o “O queijo da serra na construção europeia”. Correu lindamente. Fiquei amigo dos cinco assistentes à palestra, que acabou com uma prova de aguardente de zimbro que o meu fígado ainda às vezes recorda. Cruzei-o ontem, aqui na praia. Disse-me estar a preparar-se para ir a S. Tomé, onde está em construção um centro de formação do CLCC. Eu não sabia o que era. Ele esclareceu: Clube Lusófono dos Crentes na CPLP. “Vou lá para a semana, antes que o Marcelo se adiante”. É prudente. Tem futuro, o Sebastião, podem tomar nota.

Modo e tempo


A ocasião era triste, há uma semana. As palavras do sacerdote, ditas na circunstância, não tinham gongorismos. Encerravam a simplicidade das coisas bem ditas, porque bem pensadas, sem a menor teatralidade. 

Como vivo essas cerimónias “de fora”, sem a menor sensibilidade à dimensão religiosa do ato, procuro isolar a parte da mensagem que resulta universal, isto é, aquilo que pode servir a crentes e não crentes. Aprendi que, das reflexões sobre a vida, quase sempre se pode extrair lições úteis, se o que é dito não estiver encriptado por um irredutível sectarismo filosófico. Sou frequentador apenas episódico dos momentos religiosos, a que sempre e só vou por deveres de respeito social, em ocasiões alegres ou tristes, nunca de obediência ritual. Às vezes, confesso, passo por imensas “estopadas”, que aturo com paciência protocolar. Porém, em outras circunstâncias, dou o tempo por bem empregue.

Foi o que agora aconteceu. O sacerdote falava do caráter “democrático” da vida, do facto de a todos nós serem proporcionadas, por igual, 24 horas em cada dia, competindo-nos, de certo modo, escolher como as usar. Esse foi o mote: o modo de empregar o nosso tempo. O discurso era feito de expressões comuns, não trazia preso a ele nenhum determinismo, eram palavras abertas, para pessoas livres, a quem apenas – o que não é pouco – se pedia sentido de responsabilidade na relação com os outros.

Por um acaso, eu havia cruzado aquele sacerdote há já alguns anos, em tempos seus bastante difíceis, porque as maleitas tocam a todos, ele não escapara a elas e eu fora ocasional testemunha desses seus dias complexos. Guardei, de então, a sua serenidade magnífica perante o que a vida podia trazer-lhe ao virar da esquina, desde logo, a hipótese da morte. Impressionou-me a calma com que, em contexto de total incerteza, olhava as coisas e as pessoas. Admirei-lhe a cultura sem alardes, o humor e o espírito fino de ironia consigo mesmo, a postura de quem se olhava sem magnificar o seu papel – e tenho visto como a sua figura é, afinal, tão importante para muitos. Percebemo-nos desde o primeiro instante, desenhando com facilidade o terreno que nos era comum, que afinal era imenso. Criámos amizade, visito-o, desde então, sempre que posso, leio muito do que publica.

Nesse dia, ouvi-o, pela primeira vez, numa homilia, porque coincidiu ser ele a celebrar a cerimónia a que eu devia estar presente. Foi na igreja do Cristo Rei, no Porto. Gostei muito das palavras do meu amigo frei Bernardo Domingues.

quinta-feira, agosto 02, 2018

Notícias da estação (1)


Ficou bem bonita, e dá imenso jeito, a nova ligação de Tróia a Setúbal, a recém-inaugurada ponte Bocage. Daqui a umas horas, irei por ela comer uns salmonetes de truz ao Poço das Fontaínhas (não vale a pena tentarem, já não há mesas para o jantar de hoje). Pena é que, àquela hora, não se consigam ver os golfinhos no Sado. Mas há, com certeza, gambuzinos pelo ar. Com este calor e em noite de lua cheia, os seus bandos veem-se mais do que bem.

quarta-feira, agosto 01, 2018

Ai não?!

- Olha lá! Não eras tu que te gabavas de ter um post por dia, no teu blogue, sem falhas, desde há cerca de 10 anos? Está a acabar quarta-feira e nada!

- Ai não?!

terça-feira, julho 31, 2018

O prurido dos Espírito Santo

Na zona da Comporta, há quem tenha saudades dos Espírito Santo. 

Não sei se se trata apenas de um mito rural, mas diz-se que, nesse tempo, havia desinfestações anuais dos mosquitos que nascem nos arrozais. E, com razão ou sem ela, credita-se essa ação aos Espírito Santo.

Hoje, quando, por ali, somos mordidos por um mosquito (e eles já chegam a Tróia). num restaurante ou numa esplanada, lembramo-nos logo do falecido grupo financeiro. É o prurido dos Espírito Santo.

segunda-feira, julho 30, 2018

24 horas na vida de uma mulher

Em casa do meu avô materno, no topo de um estante, havia um livro cujo título sempre me intrigou, mas que essa curiosidade, ainda de infância, nunca me levou a ler. Era o "Vinte e quatro horas na vida de uma mulher", de Stefan Zweig.

Há pouco, ao ver anunciada a demissão de Ricardo Robles, o vereador do Bloco de Esquerda na Câmara de Lisboa, lembrei-me de Catarina Martins, líder do partido. E das suas últimas 24 horas. E pensei em como apenas um dia e um imenso erro podem ter consequências devastadoras. 

Não vou aqui repetir, sobre o episódio imobiliário de Robles, o básico: o cidadão Ricardo Robles tinha todo o direito de fazer o que fez, o militante do BE Ricardo Robles estava moralmente impedido de tentar o negócio, depois do que tem dito sobre a especulação imobiliária em Lisboa. Por isso agora se demitiu.

Mas estas 24 horas, na vida de uma mulher chamada Catarina Martins, acabam por ser um tempo imenso. Ela devia ter cortado cerce o problema, mal se conheceram os factos, retirando de imediato a confiança ao vereador. Ora, ao vir a terreiro apoiar Robles, com os argumentos algo arrogantes que utilizou, a poucas horas dele próprio perceber que tinha de se demitir, acabou por piorar tudo, agravando, por falta de sentido e de "timing" políticos, uma das maiores crises que o BE atravessou desde a sua criação. O partido vai ter agora de lamber as feridas, esperando que o dia de amanhã obscureça a memória dos seus potenciais votantes, que, por estas horas, exibem um penoso embaraço. Uma coisa é certa: o Bloco vai pagar um preço, à esquerda.

É que Catarina Martins deve preocupar-se, e só, com os impactos à esquerda daquilo que se passou. Mas, se quer um conselho, deve "estar-se borrifando" para a turba da direita que lhe caiu em cima, para a "autoridade" moral de quem acha que tem, por herança genético-social, aquilo que poderíamos designar como o "monopólio do usufruto do bago" e há muito se arroga o direito de ser uma espécie de juíz de coerência do outro lado da barricada. 

Vemos agora a direita aproveitar o balanço e contestar uma alegada "superioridade moral" da esquerda. De facto, concordo que invocar isso não passa de uma palermice sem sentido, sendo que é, no entanto, um tema muito antigo, que surge à baila de quando em vez. Mas talvez valesse a pena interrogarmo-nos: por que será que nunca se ouviu, por uma vez que fosse, alguém ousar defender a existência de uma "superioridade moral" da direita? Talvez não seja por acaso...

FHC

Há uns anos, numa livraria de Boston, vi à venda um livro de memórias, em inglês, do antigo presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso. Como já então vivia no Brasil, optei por não comprar o livro, tanto mais que me parecia ser uma espécie de síntese biográfica, “para americano ler”. 

Nunca mais pensei na obra, até que há semanas, numa excelente livraria de Brasília, na qual passeava com um amigo, ao falarmos de FHC (como no Brasil é conhecido), ele me perguntou: “Leste “O improvável presidente do Brasil?” “. Perante a minha negativa, ofereceu-me o livro - que é a tradução do volume que eu vira nos EUA. E as férias servem para isto: comecei a lê-lo ontem, acabei há pouco as suas quase 400 páginas. E fico muito grato ao Manuel Lousada por me ter proporcionado esta leitura.

Tenho forte admiração por Fernando Henrique Cardoso. Acho que a sua presidência, que antecedeu a de Lula, fez muito bem ao Brasil e à sua imagem no mundo. Tive o gosto de o conhecer relativamente bem quando lá fui embaixador, e ele já não era presidente, e, desde então, com alguma frequência, tenho-o encontrado por Lisboa, cidade de que muito gosta. Ainda há pouco tempo nos cruzámos num restaurante.

O livro é uma obra equilibrada e serena, com o natural auto-elogio de quem vive contente consigo próprio e com aquilo que acha, e bem, que fez pelo seu país. Não encerra grandes novidades (embora a mim me trouxesse algumas), mas o relato ajuda a melhor entender o seu percurso intelectual, académico e político - desde um período mais radical à sua conversão à social-democracia. E apoia-nos bastante, e de forma equilibrada, na leitura da história contemporânea do seu país.

FHC foi amigo de Mário Soares, é-o de António Guterres e de Jorge Sampaio. Porém - e isto representa muito do que é o Brasil, sem quaisquer juízos de valor negativos associados, mas apenas como mera constatação - no glossário do livro, entre os muitos países citados, Portugal não surge mencionado uma única vez (Soares aparece uma vez). São estes pormenores que nos ajudam a educar a nossa perspetiva sobre o que, na realidade, valemos para os outros, Brasil incluído.

domingo, julho 29, 2018

Com reserva de mesa


Com a morte de Jonathan Gold, ouviu-se, um pouco por todo o mundo, um coro de elogios a um dos críticos gastronómicos que terá marcado uma geração do setor. Escrevi “terá” porque, embora, durante alguns anos, eu tivesse metido uma colherada no tema, o meu conhecimento da figura era bastante escasso: havia lido alguns (poucos) belos textos dele, sabia alguma coisa sobre o seu percurso, em particular que era muito bom naquilo que fazia, mas era tudo.

Embora, até um passado recente, eu próprio tivesse escrito, por alguns períodos, sobre restaurantes, em três revistas distintas, nunca tive a menor veleidade de assumir-me como “crítico gastronómico”. Sei as minhas limitações e gabo-me de conhecer o meu “princípio de Peter” (e isto, para quem não saiba, nada tem a ver com o bar de gin da Horta), Quando muito, chamei a mim próprio “gastrófilo”, isto é, alguém que gosta de comer e não se importa de ter a ousadia de partilhar com outros as experiências que vai tendo na restauração profissional. O que agora continuarei a fazer, “pro bono” e do meu bolso, no blogue “Ponto Come”.

Ao ler algumas coisas que, a propósito da morte de Gold, apareceram na imprensa sobre as pessoas que escrevem artigos sobre restaurantes, dei comigo a pensar que fui sempre muito feliz, nos anos em que operei (e fui pago para isso) naquele domínio. É que em nenhuma, repito, nenhuma ocasião fui pressionado para escrever sobre um determinado restaurante (nem sequer a título de sugestão), tive plena liberdade para escolher aqueles que me apetecia visitar e jamais me foi feita a mais leve observação sobre o teor das minhas críticas. 

Vou deixar aqui, com o meu reconhecimento, os nomes das três pessoas que, nos diversos momentos, me “contrataram” para essa gostosa tarefa: Edgardo Pacheco (Sábado), Catarina Carvalho (Evasões) e Pedro Luís de Castro (Epicur). De todos fiquei amigo, o que acho mais importante do que tudo..

sábado, julho 28, 2018

A minha ida à lua


Não sou muito de luas, mas ontem, ao ouvir que a próxima “boa lua” só seria daqui a 105 anos, tive um sobressalto: esta lua, com eclipse e tudo, não me ia escapar! É que, daqui a 105 anos, o céu pode estar nublado e nunca se sabe. 

Porém, o evento lunar coincidia com um jantar em casa de amigos, cujo menu evito detalhar, porque o país, em matéria de inveja, já teve a sua dose de fim-de-semana com “a minha casinha” do Robles. Fui assim para o repasto, mas sempre com a cabeça na lua. Pelo caminho, fui olhando à volta, mas nada de lua! Do lado, no carro, ouvi, a ironizarem: “Não é um eclipse? Então não se vê a lua!”.

Chegámos. O jantar lá avançou, o champanhe que antecedeu um belo alvarinho estava no ponto de fresco. A conversa e as vitualhas (não insistam, não digo o menu!) foram marchando, até que, sobremesa passada (grande ameixas do quintal da casa e umas cerejas de truz, queijos e gelado à parte!), o apelo da lua foi maior do que eu. 

Fui ao jardim e o céu dali nada tinha de excitante. Voltei para dentro, pedi desculpa e saí para a rua. Lua, nada! Meti-me no carro, abri o tejadilho (às vezes, as coisas caem do céu) e fui andando até uma daquelas rotundas sem saída, aí a trezentos metros. Olhei para cima e lá estava ela, ao fundo, rosada como uma moçoila corada perante um piropo (é proibido, eu sei!). Gandalua! Como não sou egoísta, voltei logo à casa, ao pessoal do jantar, e convidei todos a virem comigo (de carro, claro!), ver a lua, cujas maravilhas de aspeto fui descrevendo. Todos se acomodaram, cintos postos e lá fomos, para uma viagem para ver a lua.

Arranquei e, 20 metros depois, não mais!, um dos viajantes do passeio à lua exclamou: “Lá está ela!”.  E estava! A “olhar para nós”! Estaquei o carro. Saíram todos. A gozarem-me. Afinal, a lua via-se dali, quase da saída da porta, e eu, antes, tinha andado 300 metros até levantar a cabeça e olhá-la. A missão lua acabou um minuto depois. Aviada assim aquela bem sucedida expedição astronómica, perguntei se alguém queria “regressar” casa, de carro! E não é que duas senhoras se instalaram no banco de trás, só para terem o gosto de andarem os vinte de metros, conduzidas por um embaixador humilhado?! Saiu-me cara, em dignidade, esta minha ida à lua!

Robles SARL



O excelente negócio feito pelo deputado municipal do BE, Ricardo Robles - se, como parece plausível, tiver cumprido todas as determinações legais - é de uma legitimidade cristalina. Numa economia de mercado, as coisas funcionam assim e as mais-valias obtêm-se dessa forma. Nada, mesmo nada, a objetar. 

(Digo-o com a “autoridade” de quem, há pouco tempo, fez um ”negócio” precisamente ao contrário, isto é, em que fiz menos-valias, em que perdi dinheiro. Mas isso sou eu, que nessas coisas, sou um completo “nabo”...)

Há, porém, um ligeiro pormenor que introduz uma nota de diferença, quiçá de imensa incoerência, a este episódio. É que o BE, e o próprio vereador, na sua (também legítima) contestação radical ao mundo capitalista em que vivemos, que já percebemos que abominam e não aceitam (mas de que, pelos vistos, alguns deles se sabem aproveitar, e bem), têm estado na primeira linha da denúncia do surto de “especulação imobiliária” que hoje se vive na capital.

Ora isto tem um nome, feio. Mas entrei num “zen” de férias, mesmo para a indignação. Deve ser da lua em eclipse que está aí a chegar...

sexta-feira, julho 27, 2018

Vamos a contas


Este não foi um ano fácil para o governo, em especial para António Costa, sendo que o primeiro mostra, a cada dia, ser um quase heterónimo do segundo. A tragédia dos incêndios, e bastante menos a comédia de Tancos, acabou com o estado de graça mas ficou longe de desgraçar o executivo. O otimismo abrandou, mas não afetou a economia, soprada pelas exportações, pelo turismo nas ruas, com ambiente externo e BCE a ajudarem, pelo menos até ver. Centeno, com visível gosto, atou as mãos a si mesmo no Eurogrupo em matéria de défice, embora isso não deixasse de ter consequências nervosas no equilíbrio interno da Geringonça. Empochadas as recuperações salariais, PCP e Bloco, percebendo que algumas margens orçamentais afinal existem e só não são usadas porque é preciso edulcorar a imagem do novo bom aluno europeu (que agora até já tem um sorridente retrato), fazem a coreografia vocal da pré-rotura, mas não passam a soleira de uma crise, cujo efeito de “boomerang” temem. O Bloco é entretido com notas emblemáticas e alguns fogachos legislativos fraturantes, que, aliás, ajudam o PS a sustentar ideologicamente a sua própria ala que dele está mais próxima. No seio dos comunistas, António Costa bem pode acender uma vela a S. Jerónimo, porque o que depois dele virá saudoso aliado dele fará. No meio, o presidente preside, numa filosofia de ação que fica cada dia mais clara e que, no essencial, se pode resumir assim: estar ao lado do que estiver a correr bem, nada fazendo para que algo corra mal e depois logo se verá. E não é que me ia esquecendo da oposição? No CDS, a novidade passou, o discurso é errático, umas vezes mais liberal, outras ultramontano, já a roçar terrenos estranhos. No PSD vive-se um ambiente shakespeareano revisitado por Gervásio Lobato, com boa vontade, por Feydeau. Há por ali dois partidos. A abada eleitoral autárquica afastou Passos Coelho, a província ajudou a eleger Rio mas este não pacificou as hostes, onde a aldeia de Asterix (que tem um incendiário Obelix e tudo!) acantonada no grupo parlamentar vive num sebastianismo que, cada vez mais me convenço, acabará por fazer voltar o governante preferido da “troika”. Vão tentar apear Rio até ao final do ano, temendo a “limpeza de balneário” que este fará em S. Bento. Não sei o que o PS deva temer mais: Rio pode não ter muito jeito, mas exala genuinidade e sentido de Estado, enquanto Passos é um agregador automático da Geringonça. Por mim, não tenho dúvidas: António Costa é um excelente primeiro-ministro. Ponto.

quinta-feira, julho 26, 2018

As férias e eu

Há qualquer coisa de muito íntimo entre as férias e eu. E como já percebi. em definitivo, que não são elas que necessitam de mim, só posso concluir que sou eu quem delas precisa. E muito!

Sá Carneiro


Mário de Sá Carneiro foi uma das mais originais figuras da nossa literatura poética, na primeira metade do século XX. Da geração da revista Orpheu, viria a morrer em Paris.

Quando fui embaixador em França, procurei fazer-lhe uma homenagem, com a colocação de uma placa na casa que sucedeu àquela onde viveu, perto do Jardin du Luxembourg, mas, por razões práticas que não vêm ao caso, isso acabou por não ser possível.

Vejo agora surgir entre nós uma polémica sobre se os seus restos mortais devem integrar o Panteão nacional, a par dos de Mário Soares. Esta ideia, nascida no seio do PSD de Lisboa, parece-me ter pouco sentido, embora seja de louvar este inusitado empenhamento literário da força política que carrega a social-democracia no seu nome. Sá Carneiro tem obra, reconheço que meritória, mas muito inferior à de outros cuja colocação naquele lugar nobre bem mais se justificaria.

Aliás, no caso de Mário de Sá Carneiro, o assunto está, à partida, de certo modo resolvido. O seu corpo desapareceu do cemitério de Pantin, onde fora depositado por ocasião da sua morte, em 1949.

Nestas questões, algum juízo de justiça relativa deve sempre prevalecer. Por essa razão, e com o devido respeito, permito-me estranhar que o senhor presidente da República tenha vindo a terreiro equiparar a figura de Mário de Sá Carneiro à do indiscutível fundador da nossa Democracia. E, talvez ainda mais, que o seu assessor cultural, Pedro Mexia, o não tenha aconselhado melhor, neste “faux pas” (obviamente) literário. Não se compara o incomparável!

quarta-feira, julho 25, 2018

Teorizar os copos


O Bloco de Esquerda, na sua “universidade” de Verão, defende o “direito à boémia: necessidade de vida noturna para produção e radicalização cultural”. Belo programa! Vamos ser claros sobre aquilo de que se está a falar: copos, música, noitadas, “piquenas” & “piquenos”, talvez com uns charros à mistura. É isso, não é? 

Não tenho a menor objeção! Cada um diverte-se como quer, desde que não atazane a vida aos outros, e só lamento que a minha geração, com a louvável exceção dos Situacionistas, nunca tenha levado a teorização das suas noites muito a sério. Agora, ponho-me a imaginar o que seria uma discussão sobre isto no “Bolero” ...

Ontem, comentava o tema, em tom (confesso!) jocoso, com uns amigos e alguém lembrou: “Boémia? Também o Hitler gostava dela”. Fiquei banzado! Para além da Eva Braun, a vida sexual e lúdica do Führer nunca pareceu ser muito animada. E perguntei: “Mas o Hitler gostava da boémia? Não sabia”. A resposta foi: “Essa agora! Então ele não achava que tinha o direito à Boémia e até à Morávia?”

Portugal de pequenotes


Anda por aí um Portugal de pequenotes, de espíritos mesquinhos, enfim, um certo país de imbecis - para usar uma palavra redonda e de sentido unívoco.

Ver figuras públicas jogarem à política mais rasteira com a tragédia dos fogos na Grécia, com algumas outras a inquirirem de cátedra sobre o custo e a oportunidade da nossa ajuda de emergência ao governo de Atenas, causa-me uma imensa tristeza, como cidadão. 

Um sentimento que é do exato tamanho da deceção, por não ver os líderes políticos que lhes estão próximos, bem como os responsáveis pelos órgãos de comunicação social onde essas palermices foram ditas, pedir, muito simplesmente, desculpa.

São três e meia da manhã...

... e eu vou deitar-me com as coisas assim. Logo veremos!