sexta-feira, agosto 03, 2018

Modo e tempo


A ocasião era triste, há uma semana. As palavras do sacerdote, ditas na circunstância, não tinham gongorismos. Encerravam a simplicidade das coisas bem ditas, porque bem pensadas, sem a menor teatralidade. 

Como vivo essas cerimónias “de fora”, sem a menor sensibilidade à dimensão religiosa do ato, procuro isolar a parte da mensagem que resulta universal, isto é, aquilo que pode servir a crentes e não crentes. Aprendi que, das reflexões sobre a vida, quase sempre se pode extrair lições úteis, se o que é dito não estiver encriptado por um irredutível sectarismo filosófico. Sou frequentador apenas episódico dos momentos religiosos, a que sempre e só vou por deveres de respeito social, em ocasiões alegres ou tristes, nunca de obediência ritual. Às vezes, confesso, passo por imensas “estopadas”, que aturo com paciência protocolar. Porém, em outras circunstâncias, dou o tempo por bem empregue.

Foi o que agora aconteceu. O sacerdote falava do caráter “democrático” da vida, do facto de a todos nós serem proporcionadas, por igual, 24 horas em cada dia, competindo-nos, de certo modo, escolher como as usar. Esse foi o mote: o modo de empregar o nosso tempo. O discurso era feito de expressões comuns, não trazia preso a ele nenhum determinismo, eram palavras abertas, para pessoas livres, a quem apenas – o que não é pouco – se pedia sentido de responsabilidade na relação com os outros.

Por um acaso, eu havia cruzado aquele sacerdote há já alguns anos, em tempos seus bastante difíceis, porque as maleitas tocam a todos, ele não escapara a elas e eu fora ocasional testemunha desses seus dias complexos. Guardei, de então, a sua serenidade magnífica perante o que a vida podia trazer-lhe ao virar da esquina, desde logo, a hipótese da morte. Impressionou-me a calma com que, em contexto de total incerteza, olhava as coisas e as pessoas. Admirei-lhe a cultura sem alardes, o humor e o espírito fino de ironia consigo mesmo, a postura de quem se olhava sem magnificar o seu papel – e tenho visto como a sua figura é, afinal, tão importante para muitos. Percebemo-nos desde o primeiro instante, desenhando com facilidade o terreno que nos era comum, que afinal era imenso. Criámos amizade, visito-o, desde então, sempre que posso, leio muito do que publica.

Nesse dia, ouvi-o, pela primeira vez, numa homilia, porque coincidiu ser ele a celebrar a cerimónia a que eu devia estar presente. Foi na igreja do Cristo Rei, no Porto. Gostei muito das palavras do meu amigo frei Bernardo Domingues.

2 comentários:

Anónimo disse...

« ...a todos nós serem proporcionadas, por igual, 24 horas em cada dia, competindo-nos, de certo modo, escolher como as usar»

A ideia de liberdade de escolha ( ou livre arbitrio, como dizem os clérigos ) ainda existe ?!
Bem, talvez ela se aplique aos bafejados pela sorte de uma reforma dourada. Aos comuns mortais, duvido muito.

Cump.

MR

José Correia disse...


Caro MR:

-Sem sombra de dúvida !

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