domingo, março 30, 2014

Os encontros da política

Ontem, passei grande parte do dia em "trabalhos" de uma estimável Confraria de enófilos e gastrónomos. Como sempre acontece nestas ocasiões, na mesa onde abanquei fiz conhecimento com pessoas que nunca antes tinha cruzado. A conversa foi solta, como não podia deixar de ser, mas teve a saudável caraterística de fugirmos, com naturalidade, às temáticas potencialmente mais conflituais: não se falou de política. 

Evitar abordar temas de política e de religião - noutros meios acrescentar-se-ia à lista a saúde, questões de dinheiro e opinar sobre pessoas ausentes - é um ato de bom senso a qualquer mesa, quando na presença de gente que não conhecemos ou conhecemos menos bem. Há pessoas mais sensíveis face às suas convicções e uma ocasião pode ficar estragada se não soubermos preservar o respeito estrito pelo que os outros pensam. Já assisti a cenas bem desagradáveis neste domínio e, em duas ou três ocasiões, eu próprio cometi erros de que me arrependo.

Outras ocasiões, contudo, convocam precisamente a identificação social da opinião politica. Imediatamente após o 25 de abril, cruzei, numa rua de Vila Real, um colega de liceu que já não via há muitos anos. Demos fortes abraços, lembrámos algumas histórias antigas e perguntámos por conhecidos comuns. Foi uma daquelas conversas típicas destes reencontros, que têm substância para os primeiros 10 a 15 minutos, mas que se esgotam depois rapidamente, por falta de temas, devido ao facto dos mundos de cada um terem quase sempre limitados pontos de contacto.

Convém lembrar que se viviam, por esses dias, tempos ideológicos muito intensos. Muitos portugueses tinham despertado subitamente para a coisa política, assumindo-se face ao vasto leque de opções partidárias que a Revolução abrira. Esse meu amigo não escondeu a sua curiosidade sobre o lugar ideológico onde eu "estaria" e perguntou:

- Olha lá! E nas políticas, por onde andas? Mais às esquerdas ou mais às direitas?

Achei divertida a "fórmula" utilizada, tendo respondido com a verdade. De facto, logo concluímos que não andávamos pelas mesmas lateralizações ideológicas. Mas continuámos bons amigos.

sexta-feira, março 28, 2014

Tua

Há poucas horas, ao passar pelas obras da barragem na foz do rio Tua, que tanta controvérsia provocaram há cerca de dois anos, lembrei-me de um episódio comigo ocorrido em São Petersburgo, em Julho de 2012, aquando da reunião do Comité do Património Mundial encarregado de discutir a compatibilidade do prosseguimento daquela obra com o estatuto de "património mundial" do Alto Douro Vinhateiro. 

A mim, como embaixador junto da UNESCO, cabia-me defender naquela reunião, com base nas instruções recebidas, a continuidade da construção da barragem. Para tal, muni-me de todos os elementos técnicos disponíveis, tendo solicitado à empresa proprietária da barragem que enviasse à reunião um especialista qualificado, que me pudesse apoiar nas "alegações", durante o longo debate que então teve lugar. Era importante podermos ser totalmente transparentes sobre os trabalhos a executar.

Na altura em que a questão começou a ser discutida, pedi a esse técnico para se sentar a meu lado. Ao longo das minhas intervenções, solicitei-lhe esclarecimentos que me permitissem responder a questões colocadas, algumas delas de elevada tecnicidade. O ambiente era tenso, nada estava adquirido à partida, a posição de algumas entidades da UNESCO, bem como de certas delegações nacionais, por mais de uma vez ameaçou levar o sentido final da decisão para áreas distintas daquelas que eu tinha a obrigação de preservar. 

É nessas ocasiões negociais que o bom humor nos ajuda a "dessetressar". A certo ponto, uma das questões suscitadas prendia-se com o impacto visual da barragem. As alternativas não eram muitas, para além da possível modulação da cor da barragem. Foi então que, com um ar sério, e como se quisesse jogar essa hipótese no terreno negocial, me voltei para o qualificado técnico que me acompanhava e perguntei:

- Diga-me uma coisa, senhor engenheiro: e se avançássemos com a hipótese da barragem ser em vidro grosso, transparente, com a possibilidade de se verem os peixes?

O engenheiro achou que eu tinha ensandecido, arregalou os olhos, temeroso que a minha "loucura" se transformasse em proposta, e balbuciou:

- Em vidro, senhor embaixador?! Isso não pode ser! O vidro não aguenta a pressão da água, a barragem tem de ser em cimento!

Lá expliquei que não falava a sério... Com a graça, diminuí a tensão que nos atravessava e continuei a "batalha", que acabou por "sorrir às nossas cores", como se diz na bola.

A verdade mutável

Quantas pessoas, ao ouvirem ontem o ministro da Presidência afirmar que "não haverá reduções adicionais do rendimento dos reformados em Portugal", acreditaram, por um segundo, que isso pudesse corresponder à realidade? 

A palavra do Estado está hoje gasta, como nunca esteve, em Portugal. Ninguém, com um mínimo de bom senso, concede o menor crédito a uma garantia dada pelo primeiro-ministro ou por qualquer ministro, porque o justificativo da urgência financeira tem as costas largas para os transformar, dia após dia, em seguidores fiéis de Pimenta Machado, o antigo presidente do Vitória de Guimarães, que consagrou a expressão "o que é verdade hoje pode ser mentira amanhã".

Não sei se este governo se dá conta de quanto isso prejudica a imagem de seriedade do Estado, que lhe cumpre gerir. Podemos imaginar que isso lhe importe pouco, porquanto tem dado mostras de que a integridade da palavra pública não lhe interessa muito. Mas os efeitos deste comportamento, a prazo, são altamente danosos na relação de confiança que é essencial existir entre o Estado e os cidadãos. Hoje, todos nos "defendemos" do Estado, que sentimos ocupado por pessoas que detestam a máquina pública e, por essa razão, não têm o menor pejo em contribuir para o seu desprestígio.

Se pensarmos bem, chegou-se ao cúmulo de uma relação contratual entre dois privados, tutelada pela lei e gerida pela força dos tribunais, ser hoje bem mais sólida do que a relação que o Estado, suposto defensor do interesse comum, mantém com os seus cidadãos. Se há um objetivo que uma qualquer alternativa política deve impor a si mesma será tentar restituir aos cidadãos um mínimo de seriedade, de respeito pela palavra dada, enfim, de ética pública.

Diplomacia irónica

A discussão ia tensa, naquela reunião na União Europeia, nos anos 90. O embaixador belga, colocado em minoria numa questão que considerava essencial, reagiu com firmeza:

- Tant que la Belgique soit la Belgique, on n'acceptera pas ça!

O sorriso com que aquele seu colega, de um país vizinho, useiro da mesma língua, ouviu a frase, prenunciava uma resposta à altura. E ela veio, mordaz, jogando implicitamente com a conflitualidade interna belga, que ciclicamente ameaça a unidade do país:

- Alors, c'est pas grave, ça va pas prendre beaucoup de temps...

quinta-feira, março 27, 2014

A notação das agências

Há pouco, enquanto redigia um texto para um jornal, lembrei-me de uma história, que tinha esquecida na minha memória. Ela aí vai.

Estávamos em julho de 2011. O novo governo português havia tomado posse há cerca de duas semanas. O "memorando de entendimento" com a "troika" estava no início do seu processo de implementação. As agências de notação, reagindo ao anúncio das primeiras medidas, haviam, umas após as outras, e para surpresa de muitos, levado a cabo um "downgrading" de Portugal.

Um dia, na minha qualidade de embaixador em Paris, "puxei da pena" e decidi publicar no mais importante diário económico francês, o "Les Echos", um artigo (leia aqui a versão original e aqui a tradução) em que contestava as agências e procurava, entre outras coisas, sublinhar o que me parecia ser a contradição entre o início do processo de ajustamento e a sua decisão de, nesse momento, baixar a classificação do país, precisamente na véspera de uma ida aos mercados para "reciclar" a nossa dívida. Era uma época algo angustiante, em que eu ia dizendo mais ou menos o mesmo a todas as televisões e rádios a que conseguia fazer chegar a voz oficial portuguesa em França. Sem pedir quaisquer instruções a Lisboa, diga-se.

Num desses dias, fui desafiado a debater numa importante rádio e televisão noticiosa - já não sei se foi a BFM ou a LCI - com um representante da "Standards & Poor's". Por um instante, hesitei em aceitar o convite, dada a dúvida de estar à altura da tecnicidade do debate. Mas aceitei o risco, porque temia que a "falta de comparência" deixasse o homem da agência sem contraditório. O debate acabou por ser sereno e civilizado. A certo passo, confrontado por mim com a questão do facto de Portugal estar a cumprir precisamente aquilo que a comunidade internacional lhe pedira e a estranha atitude das agências de notação, o meu interlocutor foi muito claro: "É evidente que nós achamos positivo que Portugal esteja a corresponder, desde a primeira hora, àquilo que o memorando exige. Mas não nos compete avaliar a vossa vontade política e mesmo os eventuais efeitos, a prazo, da "receita" que vai ser aplicada ao longo dos próximos três anos. Nós avaliamos as consequências imediatas das medidas que agora vão ser postas em prática na vossa economia. E essas medidas, indo ou não no caminho certo, têm agora um efeito recessivo, porque contraem o mercado interno e afetam o crescimento económico. Esse é o mercado que avaliamos".

A partir desse dia, passei a perceber melhor as agências de notação e a fazer uma leitura um pouco mais sofisticada dos seus "humores".

quarta-feira, março 26, 2014

A diplomacia do Brasil

O "Público" insere hoje um artigo de Adriana Erthal Abdnur sobre a política externa brasileira, que julgo deveria merecer alguma reflexão. Nesse texto, é sublinhado que o Brasil se afasta cada vez mais de uma agenda "ocidental", de que o caso mais recente é a sua rejeição das sanções à Rússia, por virtude da intervenção na Crimeia. Essa posição, na perspetiva da articulista, culminaria uma deriva "sulista" que, cada vez mais, marca a agenda do Itamaraty.

Há muitos anos que reflito sobre isto e digo aos meus amigos brasileiros que eles estão a cumular dois obstáculos à sua mais do que justa reivindicação para acederem a um lugar de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

O primeiro obstáculo vem dos países do Norte. O alargamento do CSNU a novos países do Sul (consideremos "do Sul" a China e a Rússia) só poderá ter lugar se e quando tal inclusão se fizer de molde a não desequilibrar o atual sentido tendencial de voto no seio do Conselho. Para ser mais claro: só entrará para o CSNU um país do Sul que, no limite, dê garantias sólidas de que manterá uma orientação pelo menos neutral face à conjugação "ocidental" de interesses representada pelos EUA, Reino Unido e França. É injusto? É, mas é assim. Ora, a "excessiva" coreografia da diplomacia brasileira, que já deu sinais "negativos" quanto à questão nuclear no Irão e agora se indicia crítica na sensível questão ucraniana, funciona em claro desfavor das ambições do Brasil.

Mas o Brasil tem também "amigos de Peniche" nos restantes membros do Conselho. Rússia e China estão muito pouco interessados em deixar de ser os únicos a "representar" o Sul neste âmbito, com tudo o que significa de influência junto do "grupo dos 77" - para simplificar, os antigos "países não alinhados". Moscovo pode ter ficado grata com o gesto de Brasília, mas isso nem sequer lhe garante a boa vontade de Pequim. Talvez antes pelo contrário.

Não obstante o esforço voluntarista feito na elevação da sua voz diplomática um pouco por todo o mundo, o trabalho notável na Organização Mundial de Comércio e outras agências multilaterais, a sua constante atenção às operações de paz da ONU, o seu cuidado com as diversas agendas regionais (América do Sul, mas também Médio Oriente e outras), creio que o Brasil tem hoje à sua frente alguns obstáculos sérios nesse seu objetivo de ganhar a consagração institucional suprema à escala global. 

Um amigo diplomata brasileiro, muito crítico da atual linha política, dizia-me, já há anos, que o Brasil mantinha uma "diplomacia adolescente" - pela sua excessiva ambição, pela sua frequente precipitação, pela ânsia de pretender "ir a todas". Ele era capaz de ter alguma razão, embora eu considere que a "juventude" não é nada que se não cure com o tempo.

E, já agora, uma nota de sentido egoísta: Portugal tem tudo a ganhar e nada a perder com uma "subida" do Brasil na escala global das nações. Um dia posso explicar isto com mais pormenor, mas parece-me uma evidência.

Um debate europeu?

Em tese, percebe-se a ideia há dias adiantada pelo presidente da República no sentido da campanha para o Parlamento europeu dever ser aproveitada para um debate sereno sobre os caminhos futuros da Europa. Num mundo ideal, assim seria. Mas o chefe do Estado não desconhecerá que a temática europeia, em muitos aspetos, faz já hoje parte da política "interna" e que há uma imbricação quase inevitável entre aquilo que é do debate europeu e aquilo que releva da nossa política nacional. Eu diria mesmo mais: nunca como hoje as duas coisas estiveram tão ligadas e, entre nós, o processo de ajustamento ajudou a "meter tudo no mesmo saco". Se acaso os partidos da oposição à atual maioria se resignassem a seguir o conselho do presidente, estariam a desperdiçar um ensejo para contestar, precisamente, o que tem sido a atitude (e reparem que eu não digo "a política") dessa mesma maioria no terreno europeu, com consequências de grande monta no plano das políticas públicas internas. Ora isto é impensável, pelo que a campanha para as eleições europeias não pode senão ser um capítulo mais da luta política interna, tentando dar ao eleitorado uma primeira perspetiva daquilo que terá de ser decidido em 2015. Ou mesmo antes desse ano, se o chefe de Estado quiser entender dever tirar ilações, também elas extensivas mas porventura clarificadoras, daquilo que se vai passar no dia 25 de maio. O país do pós-troika ficaria bem melhor servido se os nossos credores externos pudessem beneficiar, desde já, de uma clarificação, que se torna urgente, do nosso quadro político. Para ser mais claro: deveria haver eleições legislativas tão cedo quanto possível. Recorde-se que o argumento da importância do cumprimento da legislatura foi quebrado pelo próprio presidente em julho do ano passado, quando estimulou a patética "semana do consenso", com a ideia de eleições antecipadas em meados deste ano. Se os resultados de 25 de maio mostrarem que há uma inversão clara na vontade dos portugueses, a atitude mais saudável seria a convocação de eleições legislativas. Digo eu, não sei!, como se diz na minha terra.

terça-feira, março 25, 2014

"Ni-ni"

A maioria dos observadores das eleições municipais francesas coloca o bom resultado obtido pelo Front National como o mais preocupante sinal do estado de espírito do eleitorado.

Não considero irrelevante esse facto, mas acho muito mais perigosa a deriva que se está a verificar no seio da direita democrática, representada pela UMP, que expressamente rejeita respeitar a "regra republicana" de aconselhar o voto, nos círculos onde os seus candidatos não possam ser eleitos, no candidato da área democrática que melhor colocado estiver para derrotar o representante da extrema-direita. 

A direita francesa confirma assim que passou definitivamente a não respeitar uma regra não escrita da política democrática desse país, que vigorou desde o fim da ocupação nazi e que, pela primeira vez, foi posta em causa pela liderança da UMP, titulada por Jean-François Copé, nas eleições legislativas de 2012. Para a direita, passa a valer uma linha já conhecida por "ni-ni" ("ni Front National, ni "front republicain" "). E não deixa de ser significativo que Copé seja agora seguido nesta orientação pelo antigo PM François Fillon, que, em 2012, usou uma formulação menos "neutral". Ao colocar-se numa equidistância entre a esquerda e a extrema-direita, como que equiparando-as em dignidade política, os conservadores franceses demonstram estarem crescentemente reféns de um eleitorado cujo "mainstream" se deslocou bastante para a direita. E isto não é uma boa notícia.

Termino lembrando duas coisas: que a esquerda apelou, em 2003, ao voto maciço no candidato da direita às eleições presidenciais, com vista a derrotar Jean-Marie Le Pen, e que também, no próximo domingo, a mesma esquerda apelou já a que o seu eleitorado vote nos candidatos da UMP, sempre que essa seja a forma de afastar candidatos do Front National. 

Impostos

A doutora Teodora Cardoso sugeriu a possibilidade de vir a ser criada uma nova imposição fiscal, desta vez sobre os levantamentos bancários, como fator estimulador da poupança. Soma-se assim à ideia de Vitor Bento sobre o assunto, embora este apenas limitasse o imposto aos levantamentos no Multibanco.

E que tal um imposto sobre a circulação de pessoas físicas, a cobrar por cada vez que saiamos à rua? Ou um selo anual de circulação? Que tal um concurso de ideias sobre novos impostos possíveis? Com a atribuição de automóveis aos mais criativos?

Em tempo: a "caricatura" da proposta da doutora Teodora Cardoso que acima fiz simplifica demasiado a substância daquilo que, de facto, foi por ela sugerido. Mea culpa.

Nação rebelde

Ao final da tarde de ontem, numa sala pejada, José Manuel Félix Ribeiro lançou o seu livro "Portugal - a economia de uma Nação Rebelde". Jorge Sampaio fez a apresentação.

Foi bonito que a data de 24 de março tenha sido escolhida para este lançamento. Trata-se de um dia que diz muito a uma certa geração portuguesa que lutou contra a ditadura. Em 1962, foi a tentativa de comemoração desse "dia internacional do estudante" que lançou as bases para a "crise" que incendiou a universidade portuguesa, sendo líder da RIA (Reunião Inter-Associações) Jorge Sampaio. Anos mais tarde, em 1969, José Manuel Félix Ribeiro seria uma das figuras mais em evidência nas lutas académicas de então. Foi bom vê-los juntos, numa sala onde estavam muitas caras comuns a ambos os tempos.

O livro é excelente, com leituras inovadoras sobre a inserção internacional de Portugal, dissecando sem meias palavras a situação que vivemos e lançando perspetivas, por vezes ousadas, sobre as saídas que o país deve escolher. 

segunda-feira, março 24, 2014

José Sócrates na TV

Só há pouco vi a entrevista feita a José Sócrates por José Rodrigues dos Santos, que altera de forma muito substancial o modelo plácido e de mero "compère" que vinha sendo utilizado pela sua parceira habitual de programa - modelo esse, aliás, similar àquele que é utilizado para os espaços de intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa, de Marques Mendes, de Morais Sarmento, de António Vitorino, de Manuela Fereira Leite, de Augusto Santos Silva, de Francisco Louçã ou de Bagão Felix.

Acho que a RTP merece ser felicitada pela introdução do contraditório na conversa, que a torna muito mais animada, mais viva, mas também mais exigente para o entrevistado e interessante para o espetador. É claro que alguns dirão que aquele espaço não é, em rigor, um espaço de entrevista, mas um mero contraponto para um comentário político, pelo que a fixação da agenda discursiva é da responsabilidade essencial do titular do programa. Pode ser que assim seja, mas acho que todos têm a ganhar muito mais com o prosseguimento deste modelo. Desde logo, o jornalismo, que está praticamente ausente dos outros momentos de comentário. E, depois, o próprio José Sócrates, que é estimulado a prestações mais afirmativas e menos complacentes com a sua "narrativa", o que lhe oferece uma oportunidade para mostrar o seu espírito combativo.

Resta-me uma dúvida: como vão passar as ser as "conversas" com Morais Sarmento, que a RTP "inventou" para equilibrar politicamente a contestada presença de Sócrates? E será que os outros interlocutores televisivos de políticos "na reserva" vão aprender com a excelente lição dada por Rodrigues dos Santos?

Em tempo: tinha-me "esquecido" que, neste país de "prós e contras", o tema Sócrates é um catalizador de comentários contrastantes, como o Acordo Ortográfico, as touradas ou a República.

Gastronomia

O leitor deste blogue não deve fazer ideia do que é a Agavi, mas é pena. Trata-se de uma interessante associação empresarial sem fins lucrativos, criada no Porto, destinada à promoção da gastronomia e vinhos, produtos regionais e biodiversidade. Desde a fundação da Agavi, em outubro de 2010, que integro o seu Conselho Superior, presidido pelo Doutor Daniel Serrão. Reuniremos no próximo dia 27 a sua assembleia geral.

Nesta jornada nortenha em prol das atividades do gosto, irei, dois dias depois, estar presente como "confrade de mérito", no "capítulo da Primavera" da Confraria dos Enófilos e Gastrónomos de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Carrazeda de Ansiães, cuja exigente "agenda de trabalhos" acabo de receber, subscrita pelo respetivo "Diretório de Notáveis".

Em contraponto com o post anterior, fica feita a prova de que o trabalho não é incompatível com atividades cuja dimensão lúdica se cruza com a promoção de valores de manifesto interesse cultural.

Responsabilidades

Há dias, ao aceitar mais um desafio profissional, que me obrigará a mais algumas (e, desta vez, mais longínquas) viagens, a acrescer às várias que já teria de fazer por virtude dos compromissos que tenho assumidos para os próximos anos, dei comigo a pensar que, de facto, esta minha atípica "reforma" está a ser bem mais movimentada do que alguma vez poderia pensar. Alguém sabe onde se vendem horas?  

domingo, março 23, 2014

Adolfo Suárez (1932-2014)

Morreu Adolfo Suárez. A Espanha ficou a dever-lhe uma importante fatia da sabedoria com que foi pilotada a transição do franquismo para a democracia. Como muitos personagens "de charneira", Suárez nunca se tornaria numa figura consensual no seu país. O seu mandato não foi pacífico, alguma direita e setores militares contribuíram para o fim do seu período como "presidente del gobierno", parte substancial da esquerda nunca o apreciou, não obstante ter sido ele quem correu o risco, então apreciável, de decidir legalizar o Partido Comunista, colocando assim termo a um tabu que dividia as "duas Espanhas". Por mim, recordarei sempre a postura de quem não cedeu, naqueles segundos dramáticos da "tejerada", à berraria do golpismo: a sua atitude de apoio a Gutierrez Mellado, com risco da própria vida, desenharam-lhe um lugar na História da Espanha democrática.

Patrões

Este fim-de-semana trouxe a novidade de uma carta de antigos presidentes da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP) em que é contestada a adesão do atual titular do cargo ao "manifesto" sobre a reestruturação da dívida pública portuguesa.

Este dissídio entre "patrões dos patrões" é uma novidade, mas não é uma surpresa. Com efeito, já se suspeitava que a linha seguida por António Saraiva, com origens muito diferentes das de todos os seus predecessores, não fazia a unanimidade destes, nomeadamente pelo seu comportamento no quadro da concertação social ao longo dos últimos anos. O "manifesto" deve ter sido a gota de água que fez transbordar o copo.

Quaisquer que venham a ser as consequências deste conflito para o movimento patronal - e não é de excluir que isto possa prenunciar uma qualquer "revolta" interna -, trata-se de algo bastante curioso, num meio pouco dado à exibição de clivagens.  

sábado, março 22, 2014

Metanoia

Hoje e amanhã estarei presente numa reunião da Metanoia - movimento católico de profissionais, convidado para proferir hoje uma conferência sobre o tema "A Europa dos cidadãos: passado, presente e futuro", intervindo amanhã num debate conduzido por Maria Flor Pedroso e Jorge Wemans. 

Olhar o mundo

Tive um grande gosto de ser hoje o primeiro convidado da nova fase do programa "Olhar o mundo", da RTP, desta vez a cargo de António Mateus. 

A questão russo-ucraniana e as reações ocidentais suscitadas, as eleições presidenciais na Guiné-Bissau e a possível entrada da Guiné Equatorial na CPLP foram os principais temas abordados. Ainda houve tempo para curtos apontamentos sobre as ameaças às liberdades na Turquia, a profunda crise na Venezuela, os equilíbrios nas eleições municipais francesas, a crise diplomática entre os países do Golfo, o agravamento da situação interna na Líbia, o modo como a política externa americana afeta a imagem do presidente Obama, a evolução recente do processo político em Moçambique e até a tragédia do avião malaio.

Ver o programa aqui.

Debate sobre a Europa

Foi uma conversa interessante aquela que ontem tive na Antena 1, lado-a-lado com o economista João Ferreira do Amaral, sobre os temas que ocuparam o último Conselho Europeu.

Pode ouvir o programa aqui.

sexta-feira, março 21, 2014

Um lagarto em Benguela


Recordo ter chegado a uma varanda, onde estavam sentadas três pessoas, num fim de tarde, com o sol já a cair. Para tal, tinha atravessado toda a casa, mobilada e decorada com grande simplicidade, sem quaisquer luxos. Os tempos, que eram de guerra, não estavam para isso. 

Sobre uma mesa, havia várias garrafas de cerveja Cuca, algumas já vazias, além de uma bela pratada de caju. Um rádio portátil, grande, de pilhas, daqueles com asa e lugar para cassetes, de onde saía um som forte e roufenho, dominava a cena. Ao lado, estava um exemplar, já com mais de uma semana, do jornal português, nessa altura trissemanário, "A Bola".

Era uma moradia de um só andar, numa rua de Benguela, no sul de Angola. Estávamos em 21 de março de 1984. Há precisamente 30 anos. Já perceberão por que recordo a data.

Eu tinha ali arribado poucos minutos antes, no avião da tarde da TAAG, ido de Luanda. Pousara a mala na residência do nosso cônsul-geral, Fernando Coelho, que me tinha ido buscar ao aeroporto e que, de imediato, me convidou a ir beber umas cervejas a casa de umas pessoas.

O Fernando tinha chegado a Angola semanas antes de mim, dois anos antes. Num posto muito difícil, isolado, nas complexas condições de vida que eram então as de Angola, ele tinha sabido estruturar uma eficaz rede de contactos, rapidamente passou a movimentar-se com grande à-vontade na sociedade local e, o que era mais importante, transmitiu segurança à inquieta comunidade portuguesa. Assumia uma atitude humana de grande simplicidade, às vezes numa postura que eu vi como algo arriscada no modo aberto como se expunha, recusando a distância profissional a que alguns colegas recorrem, para desenharem uma bolha de importância à sua volta. O Fernando era uma joia de pessoa e criava amigos com muita facilidade.

Alguns desses seus amigos de Benguela estavam ali reunidos, um dos quais me foi indicado ser o proprietário da casa. Eram todos angolanos: dois mulatos e um negro. Cumprimentaram-me, embora sem me prestarem grande atenção, quando o Fernando me apresentou: um diplomata, seu colega, que vivia em Luanda, onde trabalhava na embaixada. Estavam todos muito fixados a ouvir o relato de um jogo de futebol.

Tendo já na mão uma cerveja que alguém me estendeu e com acesso livre ao cajú, refastelei-me numa cadeira de braços e apreciei a cena: acompanhavam, pela rádio, o jogo que o Benfica estava a disputar com o Liverpool, no estádio da Luz.

O ambiente estava pesado. O Benfica perdia, e já estava na segunda parte, por dois golos. Toda a sala era benfiquista, ferrenha. Bom, toda não: eu era sportinguista, mas o Fernando tivera o prudente cuidado de não começar por referir a quem ali me acolhia esse despiciendo pormenor.

O que era mais curioso no grupo era constatar o modo como seguiam o jogo, quase como se estivessem na Luz. O relato, pela rádio, era muito bem feito, vivo, cheio de notas que, para quem nele estivesse concentrado, criavam uma imagem muito impressiva sobre aquilo que se passava em Lisboa.

Eu sabia muito bem que, em Angola, um pouco como em todas as outras antigas colónias portuguesas, a fidelidade aos nossos principais clubes tinha sobrevivido, intocada, aos respetivos processos de independência. Era uma espécie de afetividade que se autonomizara, em absoluto, dos processos descolonizadores. Não deixava de ser interessante assistir ao sofrimento daqueles angolanos, fanáticos benfiquistas de Benguela, que, inclinados sobre a mesa, bebiam as palavras do locutor português.

Mais do que isso: que se pronunciavam, com firme opinião, sobre o andamento da partida, as prestações de cada um dos jogadores do Benfica, as opções técnicas que iam sendo feitas pelo treinador. "Este Eriksson hoje só faz asneiras", comentava, irado e agitado, o único negro na sala. "O Maniche já devia ter saído! O gajo não sobe bem pela esquerda! Devia meter o Filipović!".

Outro dos presentes, um mulato mais velho, recomendava, por uma qualquer razão tática, a entrada de Shéu, que estava no banco de suplentes. Resposta do terceiro membro do grupo, o dono da casa, com uma gargalhada: "Esse tipo é do lado de lá, não presta!", sublinhando a origem moçambicana do jogador. Toda a gente riu, mais por nervoso do que pela pertinência da graçola.

Eu não tinha uma opinião técnica definitiva sobre nada, até porque era de outra "freguesia" desportiva. Conhecia quase todos os jogadores do Benfica, claro, mas não fazia a menot ideia se uns eram melhores do que outros para "dar a volta àquilo", como se clamava pela sala. 

E assim tudo continuou até ao final do jogo, comigo relativamente silencioso, entretanto já revelado como sportinguista, mas a assumir publicamente uma discreta simpatia, embora talvez não muito entusiasta, pela desdita dos encarnados naquela noite. O Benfica acabaria, no final, por encaixar quatro golos, como o Nené a salvar a honra do convento da Luz. A carreira do Benfica na taça europeia que disputava tinha, nesse ano, chegado ao fim.

Encerrado o jogo, desligado o rádio, com alguns ligeiros impropérios e comentários sobre a partida ainda a pairarem na conversa, numa desilusão que os minutos iam diluindo, surgiu de lá de dentro, da cozinha, uma senhora, mulata, muito vistosa, aparentemente a dona da casa, até aí discretamente ausente. Trazia, com um sorriso agradável e um claro alheamento quanto à jornada desportiva que havia mobilizado a sua casa, alguma coisa para jantarmos. Já não recordo o que foi, pelo que não deve ter sido coisa gastronomicamente memorável. A senhora regressou logo à cozinha, não nos acompanhando na mesa. Eram assim as coisas, por ali.

A conversa alargou-se então a outros temas. Aquele núcleo de benfiquistas de Benguela continuava triste pelo desfecho do jogo, mas foram muito simpáticos, mesmo algo cerimoniosos, para com o intruso forasteiro que eu ali estava a ser. O Fernando Coelho, visivelmente muito bem integrado no grupo, do qual resultava ser íntimo, animava a mesa e os espíritos, com a alegria contagiante de homem bom que sempre foi. 

O jantar terminou entretanto e era tempo de regressarmos à residência do Fernando. Agradecendo a amabilidade do acolhimento, despedi-me daqueles meus novos e fugazes conhecimentos e fui caminhando para fora de casa, em direção ao carro do Fernando. Este ficou um pouco para trás. Despedia-se do dono da casa, a quem, num tom de voz baixa mas não deliberadamente audível por mim, ouvi dizer: "É simpático, esse seu amigo. Pena é ser lagarto!"

Periscópio

"É Periscópio!" dizia o jovem da mesa ao lado, pelo telefone, ao amigo, pretendendo identificar o bar onde arrulha, com uma pequena, desde há minutos.

Logo levou, da nossa mesa, um berro corretor: "Procópio!" A educação do "jeunisme" atual nem o levou a agradecer. Mas lá corrigiu, ao amigo: "Parece que é Procópio!"

Parece?! Quem lhe atasse um arado!

Em tempo: se se apressarem ainda o apanham por aqui...

Queijos

Parabéns ao nosso excelente queijo!  Confesso que estou muito curioso sobre o que dirá a imprensa francesa nos próximos dias.