segunda-feira, dezembro 16, 2013

O duplo

- Não percebo a preocupação que andas por aí a espalhar pelo facto da política externa estar hoje dividida entre o Rui Machete e o Paulo Portas...

Fiquei um pouco surpreendido. Aquele meu amigo é um "institucional" e a última coisa que dele esperava é que achasse bem que a nossa representação internacional aparente ter, nos dias que correm, uma liderança bicéfala, tipo Bloco de Esquerda.

- Então tu achas bem que não se perceba quem é que, de facto, chefia a diplomacia portuguesa? Põe-te no lugar dos embaixadores estrangeiros em Lisboa?

- Essa agora! É facílimo resolverem isso, até pelo telefone...

- Pelo telefone? Diz lá então como é!

- É muito simples. No telefone, colocam uma gravação: "Seja bem vindo ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Se se tratar de questões de natureza política, carregue na tecla 1 e será encaminhado para o palácio das Necessidades. Se se tratar de questões de natureza económica, carregue na tecla 2 e será encaminhado para o palácio das Laranjeiras". Qual é a dificuldade?...

De facto...

domingo, dezembro 15, 2013

Exemplar

Sabia (não sou ingénuo) que o último post que publiquei iria suscitar reações. Escrevi-o com essa convicção (talvez mesmo com esse objetivo, devo confessar). Fiquei tão estimulado com alguns dos comentários suscitados que deixei que eles "pingassem docemente" por quase dois dias. Foi um interessante teste para se perceber melhor algum país que hoje somos. Leiam esses comentários (houve quatro que foram eliminados, porque, apesar de tudo, há limites para a linguagem admitida). É um exercício interessantíssimo. E exemplar! Por mim, diverti-me imenso, podem crer! E as "inscrições" sobre este tema ainda estão abertas até ao final do dia...

sexta-feira, dezembro 13, 2013

Coisas polacas

Nos tempos "da outra senhora", a variedade dos produtos ao dispor dos consumidores polacos não era muito grande. Tal como em outros países do "socialismo real", alguns tipos de fruta, eram considerados um bem quase raro. Contaram-me que, pelos Natais, todos os anos, o governo ordenava uma importação maciça de laranjas, oriundas de Cuba. Criou-se assim o hábito familiar, no dia 23 de dezembro, de presentear as crianças polacas com uma laranja. Esse hábito transformou-se em tradição. Hoje, além de haver mais liberdade e muitas mais coisas, há ainda mais laranjas no ritual dessa data, por toda a Polónia. Uma empresa polaca, detida por capitais portugueses, importará, nos próximos dias, de Portugal e de outras origens, 10 mil toneladas de laranjas, transportadas por 550 camiões, o que equivale a uma fila de 14 quilómetros de veículos. Uma fantástica operação logística para garantir que todas essas laranjas possam ser distribuídas no dia 23 de dezembro.

Nunca vi referido por nenhum órgão de informação que, em 2013, essa mesma empresa terá importado e vendido na Polónia seis milhões (não me enganei, são seis milhões!) de garrafas de vinho português? E que, desta forma, o vinho português representa hoje 28% de todo o vinho importado por aquele país.

O lesado

Estava à paisana. Cruzei-me com ele, há dois dias, na entrada de minha casa, cerca da hora de jantar. Identificou-se como agente da PSP. Muito educado, informou-me que tinha um mandado de detenção. Em meu nome. Por um instante, devo dizer, não "apreciei" excessivamente a ocasião. Por muita consciência tranquila que tenhamos, nunca nos sentimos muito à vontade numa situação destas.

Mandei-o entrar. Sentámo-nos e procurei analisar com calma o problema. O agente da PSP cumpria uma decisão. Um juíz havia decidido mandar deter-me, pelo facto de eu não ter comparecido a uma notificação sobre um processo. De facto, eu tinha faltado a essa intimação. Porquê? Porque, entretanto, havia recebido de um outro tribunal a informação de que o processo fora arquivado e, por uma presunção pateta, havia dado por adquirido que a presença à notificação já não era necessária, que teria havido um cruzamento da informação. Qual quê!? Cada uma dessas vias caminhava por si mesma, sem se ligar com a outra. E ali estava eu, prestes a passar uma noite numa esquadra, para ser presente na manhã seguinte a um juíz, que me notificaria sobre um processo que já estava arquivado. Perante a evidência do "misunderstanding", o agente policial tomou a sensata decisão de "desistir" da minha detenção.

Mas, afinal, que diabo fizera eu, para estar metido numa alhada dessas? Uhm! Não há fumo sem fogo, estarão a pensar alguns leitores. A coisa é, afinal, muito simples e, precisamente por essa simplicidade, bastante ridícula. Há meses, num terreno abandonado de que sou proprietário, no Norte, declarou-se um incêndio, provocado por um descuido de um vizinho. A GNR tomou conta da ocorrência, o Ministério Público instaurou um inquérito. Eu passei à qualidade de "lesado". Não mexi uma palha. Neste entretanto, ocorre o arquivamento do processo. E, agora, ali estava eu, o lesado, a contas com a Justiça. Ele há cada uma! (Julgo que o assunto se terá entretanto resolvido. Mas nunca fiando...)

quinta-feira, dezembro 12, 2013

Pacífico ou Atlântico?

Sempre achei muito importante saber pensar em "contra-ciclo". É o que fazem o investigador universitário português Bernardo Pires de Lima e o seu colega sueco Erik Brattberg, num blog do "The Huffington Post", ao ousarem escrever "Why the Atlantic, not the Pacific, may dominate the 21st century".

Deixo um extrato significativo:

To see why the Atlantic area will grow in relevance in coming years is not hard. While the old powers in Europe and North America might be in relative decline, they still share half of the global GDP and the world's strongest military alliance, NATO. At the same time, the Atlantic is also the home to two BRICS countries, Brazil and South Africa, and emerging actors such as Mexico, Nigeria and Angola. Their economic growth rates, global profile in oil and gas production, and military investments have already attracted the rapidly growing interest of China and India.

Leia-se o texto aqui.

Regras diplomáticas

Um colega que comigo coincidiu em Brasília, ao tempo em que eu por lá chefiava a nossa representação diplomática, enviou-me, para recordação, duas "instruções" que então eu distribuí por todos os funcionários.

A primeira tinha a ver com as comunicações recebidas na Embaixada:


"Qualquer comunicação escrita (carta, fax ou mail) dirigida a qualquer serviço da Embaixada, quer para o endereço geral, quer para um qualquer funcionário nessa sua qualidade, deverá, sem excepção, ser respondida. Em situação limite, em que o funcionário entenda que a comunicação não tem condições de ser respondida, deve ser sempre acusada a recepção."


A segunda prende-se com o "estilo" que eu entendia que os textos que seguem para Lisboa (e que são sempre assinados pelo embaixador) deviam assumir: 
  1. Não escrevam em estilo jornalístico. Escrevam como se tivessem que assinar “Nestrangeiros” (telegramas recebidos de Lisboa), isto é, linguagem totalmente neutral, pouco adjectivada, frases curtas e sem personalização, citando pouco e interpretando muito. Nós não concorremos com as agências noticiosas na busca dos factos: interpretamos.
  2. Não utilizem (nunca!) expressões brasileiras ou termos locais: “reforma tributária”, “reforma ministerial”, “inadimplência”, etc. Há termos portugueses para isto.
  3. Um telegrama tem de ser auto-explicativo, partindo-se do princípio de que quem o lê está a contactar com essa realidade pela primeira vez. Deste modo, não há “CPI” ou “MP” mas sim “Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)”, podendo, então, repetir-se a expressão “CPI” no mesmo telegrama. As “MP” são “Medidas Provisórias (MP)”, devendo sempre ser seguidas da explicação de que se trata de “iniciativas legislativas que o Governo submete ao Congresso com prioridade de apreciação”. Temos que ser didácticos e partir (sempre) do princípio que é uma pessoa nova que nos lê todos os dias.
  4. Procurem evitar referir nomes de pessoas, a não ser que sejam muito conhecidas ou importantes.
  5. Façam telegramas curtos. Ninguém lê em Lisboa mais do que página e meia. Quando possível, façam textos de menos de uma página.
  6. Façam parágrafos. Ajudam a ler.
  7. Não façam ironias ou graças nos textos: esse é o privilégio do embaixador… algum havia de ter !

quarta-feira, dezembro 11, 2013

Champions, claro!

Uma amiga comentava que o Sporting, ao contrário de outras agremiações que por aí andam, nem à Liga Europa vai. É pura verdade, mas isto tem uma explicação, aliás bem simples: connosco, Sporting, é tudo ou nada. O que for abaixo da Champions não consegue excitar-nos. Claro que vamos a jogo, mas apenas por um saudável espírito de participação, uma atitude olímpica, no essencial. E, normalmente, isso acaba por não dar! Os nossos rapazes, lá no fundo, pensam: "mas vamos nós transpirar a glória de um clube, que está eternamente fadado para outros voos, nestes torneiozecos de segunda?" E, pronto!, desinteressam-se, não correm, fragilizam a defesa, desguarnecem as alas, não armam o meio campo, atacam com estilo mas com displicência. Às vezes marcam golos, outras vezes não, a gente diz-lhes para se empenharem, mas eles, coitados, não sentem essa necessidade. Desincentivam-se, é isso! Essa, aliás, é a razão concreta que explica a nossa escassez de títulos: falta de motivação perante troféus que achamos, com óbvia razão, que estão abaixo das legítimas ambições de um clube como o nosso. Que querem? Fomos feitos para as grandes vitórias e, por isso, essa arraia-miúda das taças e coisas assim não é suficiente para nos mobilizar. E, claro, com uma atitude destas, às vezes não ganhamos, muitas vezes empatamos jogos e tempo, acontece até perdermos... com mais frequência do que seria aconselhável, por razões estatísticas, temos de convir! Resta-nos, contudo, uma singular consolação: com esta simples e desprendida atitude, temos vindo a dar oportunidade a outros clubes, a gente que sempre anda aí afoita, num afogadilho perante competições de terceira escolha, de (à sua medida, claro) se realizarem e atenuarem as frustrações dos seus adeptos. Se isso os alegra, quem somos nós para os criticar? Ficam contentes? Ótimo, contribuímos assim para a paz social, que é um bem público que cultivamos. É isso mesmo que estão a pensar: generosidade. É o que nos move. Estão a ver como compreenderam? Era assim tão difícil lá chegarem? Ah! Este ano é diferente: com o resto das agremiações desportivas portuguesas pelas ruas da amargura em que andam, a nossa responsabilidade perante a imagem do país face ao mundo obriga-nos a outra atitude. Falámos com os nossos rapazes e, pronto!, vamos arregaçar as mangas e aí vai disto! E viva o Sporting Clube de Portugal!

MoU

Há cerca de dois anos e meio, os portugueseses acordaram com uma realidade que foi o "memorandum of understanding", o acordo estabelecido entre o governo demissionário e a "troika", subscrito pelo PSD e pelo CDS, que garantia um financiamento ao país, tendo como contrapartida um conjunto de reformas e medidas a implementar no plano interno.

Na altura, ficou a ideia clara de que, para o futuro primeiro-ministro, o MoU representava uma "ajuda" à sua vontade de mudar radicalmente algumas coisas no país, que uma gestão política em tempos normais dificilmente conseguiria levar a cabo. Era, no fundo, uma versão da "suspensão da democracia" que a sua antecessora na liderança do PSD chegara a alvitrar como desejável. A frequente utilização da expressão "ir para além da troika" criou a ideia de que, para o novo governo, o MoU era (apenas) a base do seu programa ideológico, embora não suficiente. Entre a "troika" e o governo parecia assim haver como que uma identidade quase idílica, à espera de uns "amanhãs que cantariam" graças à sedução imparável dos mercados.

Com o tempo, curiosamente, o MoU parece esquecido. O país tem-se concentrado no debate das medidas concretas que vão surgindo - muitas das quais nem sequer se percebe se resultam ou não do MoU ou se são meras decisões que o tomam como pretexto.

Dou assim comigo a pensar que, aparentemente, ninguém ainda "fez as contas" sobre o que se aplicou (ou não) do MoU, daquilo que nele foi esquecido (presume-se por complacência, expressa ou implícita, da "troika"), dos resultados efetivos retirados da aplicação das medidas, dos "trabalhos a mais" executados, etc. Não teria interesse alguém - uma universidade e um jornal, por exemplo - trazerem a público esse inventário? Porquê? Desde logo, para que pudéssemos perceber como temos sido governados, isto é, se as duras políticas que estamos a suportar resultam apenas do que subscrevemos ou se há mais coisas que, a seu coberto, nos foram impostas. Depois, para podermos fazer um juízo comparado entre o que nos foi imposto e a sua resultante concreta em matéria de efeitos. E, finalmente, para procurarmos entender, até para melhor nos conhecermos, a razão pela qual algumas das coisas subscritas no MoU não foram avante.

Para um governo com interesse em ter uma afirmação perante a "troika", a grande vantagem de um exercício deste género seria dar ao país "munições" para poder confrontar as instituições internacionais. Em muitos casos, poderíamos argumentar com a má conceção do pacote de medidas e partir daí para uma maior - e mais legítima - exigência de uma flexibilização da austeridade que nos cai em cima. Mas, para isso, era necessário ter vontade política e ela, claramente, não existe.

terça-feira, dezembro 10, 2013

... e fundos

A urgência financeira, que dominou o debate público nos últimos anos, lançou uma nuvem de fumo sobre um tema da maior importância para o futuro do país, a médio prazo: a negociação das chamadas “perspectivas financeiras”, o quadro orçamental comunitário para sete anos (2014-2020), de onde dimanam os diversos fundos comunitários. É uma evidência que os fundos europeus contribuíram fortemente para o desenvolvimento do país, tendo a sua utilização chegado a ter impacto de cerca de 4% sobre o produto. A negociação dos quatro primeiros “pacotes financeiros” (o actual é o quinto) constituiu sempre uma das tarefas essenciais dos governos, com intensa implicação directa dos primeiros-ministros, pelo que o país não esquece o êxito dos dois “pacotes Delors”, da “Agenda 2000” e da negociação feita em 2007 pelo governo Sócrates.
 
A situação financeira em que Portugal vive, com retracção do investimento privado e a escassez de recursos orçamentais, leva a que os fundos comunitários constituam, na prática, o essencial do investimento público disponível para os próximos anos. Se, no passado, uma negociação firme sempre foi considerada fundamental, no momento especial que atravessamos ela teria sido ainda mais importante. Escrevo “teria” porque não foi. Estranhamente, não se viu o primeiro-ministro calcorrear as capitais europeias, como os seus antecessores envolvidos em processos negociais idênticos fizeram, nunca o então ministro dos Negócios estrangeiros deu sinais de estar minimamente mobilizado para o tema, apenas uns secretários de Estado surgiram, na fase terminal da negociação, a tentar rectificar pormenores do que já estava decidido.
 
Tenho uma explicação para o facto das coisas terem sido assim, para o que possa ter sido o “pensamento” estratégico do governo nesta matéria: “isto vai acabar como a Alemanha quiser. Ora nós precisamos de Berlim para nos dar a mão, no caso do ajustamento correr mal. Por isso, o melhor talvez seja não irritarmos os alemães com grandes reivindicações nos fundos europeus, dos quais nunca iremos tirar mais do que obteremos da posição de bem comportados no cumprimento rigoroso do programa com a “troika”. É melhor estarmos quietos!” E estiveram. Assim, sem serem um completo desastre, embora graças a outros, as “perspectivas financeiras” redundaram num pacote português apenas sofrível, disfarçado com a atribuição de uns “cheques separados” para criar uma espécie de “trompe l’oeil”, logo saudado pelo clube dos eternos beneficiários internos. E o assunto logo morreu, perante a distração do país.
 
E agora? Agora, como se diz na minha terra, o que não tem remédio, remediado está! Mas quer o governo dar um sinal de abertura para o estabelecimento de consensos de regime para os próximos anos? Se sim, deverá propor o estabelecimento de uma estrutura paritária com a oposição para a aplicação dos fundos comunitários até 2020, mas não optando por ser ele a escolher os “seus” socialistas. É assim que se procede noutros civilizados mundos…
 
* artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, dezembro 09, 2013

Porto!

Cenário: balcão de uma cafeteria no aeroporto de Pedras Rubras, Porto, ao final da tarde de hoje. Diálogo entre mim e a empregada:

- Queria um quarto de Pedras, natural.
- Está doente? 
- Não...
- Então não vai um fininho?
- A esta hora não.
- Olhe que lhe fazia bem. A água enferruja...
- Não, prefiro a água.
- O senhor é que sabe. E vai comer o quê?
- Não sei bem. Talvez um croissant.
- (Baixo) Os croissants já têm muitas horas. 
- Então o que é que aconselha? 
- Tenho aqui umas "sandes" de panado espetaculares. Frango ou porco?
- Não sei se me apetece um panado...
- Come um panado, sim senhor! Vá por mim...
- Pronto, está bem! Um panado de frango.
- Não se vai arrepender. Mas não vai comer o panado com Pedras, não é?
- Então? 
- Vai beber um fininho, tirado aqui pela Adelaide. Ainda me vai pedir outro, vai ver...

E eu, que tinha pensado "aconchegar" o estómago com um inocente croissant e uma casta Água das Pedras, saí dali depois de comer uma valente "sande" (era assim que estava no letreiro) com um imenso panado e um fino (só um, vá lá!). Muito bem tirado.

O comércio é arte e simpatia. No Porto.

Good bye, Lenin?

A impressiva imagem do derrube da estátua de Lenine, que figurava numa avenida de Kiev, está, compreensivelmente, a correr mundo. (A similitude com a queda da estátua de Sadam Hussein é inevitável, mas as diferenças são grandes). Trata-se de uma espécie de "bofetada" numa Rússia onde, diga-se de passagem, terão também já desaparecido, noutros dias de raiva, muitas dessas relíquias da antiga URSS. O ato é uma marca clara de que há hoje duas Ucrânias, uma seguidista face a Moscovo, outra desejosa de aproveitar a "boleia" histórica de um mundo europeu que hoje funciona como miragem. Ou, para usar a expressão cínica de um amigo que há pouco me falava de Londres, "a Europa está a passar pelo "efeito Gorbachov": gostam mais dela fora do que dentro".

A crise ucraniana é muito complexa, mas tem de ser resolvida na própria Ucrânia, só podendo nós esperar que o venha a ser de uma forma pacífica e com uma resultante final democrática. Lembro-me bem que, nos anos 60, Adriano Moreira nos falava muito nas "zonas de confluência de poderes". Referia-se então às áreas geopolíticas da Guerra Fria onde o braço-de-ferro entre os Estados Unidos e a URSS prosseguia, muitas vezes quase à revelia das vontades nacionais. Essa Guerra Fria acabou, mas muito do que ela gerou está ainda por resolver. Mas não deixa de ser quase uma ironia que Ialta, onde o mundo foi dividido entre a Rússia e o ocidente no termo da Segunda Guerra mundial, seja uma cidade da Ucrânia.

domingo, dezembro 08, 2013

A boneca dos Correios

Foi na quarta-feira. Uma boneca pequena, de pano, estava pousada ao lado do balcão. Quando entreguei a carta, soou-me estranha a pergunta: "Não quer levar essa boneca, para oferecer a uma criança?". Gelei, por um segundo: minutos antes, soubera que uma pessoa próxima perdera uma criança, a horas do parto, pelo que eu próprio estava um pouco de luto. Uma boneca, noutro contexto mais feliz, poderia significar uma prenda. Mas logo me refiz. Estava na estação dos correios do aeroporto de Lisboa.

(Os Correios eram uma instituição com simbolismo, na minha juventude, lá por Vila Real. As "senhoras" dos correios eram gente conhecida, quando nos abeirávamos dos balcões perguntavam-nos pelos estudos e pelos pais. Mais tarde, conheciam os meus vícios filatélicos, guardavam as novas emissões, os envelopes "do primeiro dia". Até os  carteiros faziam parte da nossa paisagem urbana, conheciamos-lhes os nomes, estranhávamos quando iam de férias, surgiam impecáveis nas suas fardas - hoje alguns que me entregam cartas assustam, pelo aspeto, mas admito poder estar a ser injusto.)

Bonecas à venda, nos Correios? Olhei o homem, face ao que me pareceu ser o insólito da proposta. Mas logo concluí que o "defeito" era meu. Raramente entro numa estação de correios. Por detrás e ao lado do homem havia uma parafernália de coisas para vender. Aa cartas pareciam um mero acessório, naquele mundo de quinquilharia em que os antigos CTT se transformaram. Registada a carta, o homem não desarmou: "Não quer um bilhete da lotaria?". Parecia que a sua "performance" dependia das vendas que fizesse. Fiz que não com a cabeça. Mas não resisti e, com um sorriso, perguntei: "Tem ações dos Correios para vender?" Atrás de mim, um cavalheiro respondeu por ele: "Isso é que é um bom negócio". É verdade: os Correios são um bom negócio. Exceto para os portugueses, cujo Estado deixou de possuir uma importante empresa de serviço público que, além disso, lhe era rentável.

sábado, dezembro 07, 2013

Em tempo

Está a tornar-se um pouco bizarra a coreografia desculpabilizante a que se está a assistir nas últimas horas, a propósito do caso do voto na ONU, em 1987. É um espetáculo triste virem à baila nomes de funcionários diplomáticos que intervieram nesse processo, como se, pela confusão, se conseguisse salvar, não a "honra do convento" de Nossa Senhora das Necessidades, mas a imagem dos verdadeiros responsáveis pelo sentido do voto - independentemente de qualquer juízo sobre a importância objetiva desse mesmo voto.

Os diplomatas obedecem a uma cadeia hierárquica, executam uma política externa que lhes é determinada por quem tem legitimidade política para o fazer e que, em derradeira instância, deve responder pelas suas decisões. Os diplomatas aconselham mas não "produzem" política externa.

Quem conhece como estas coisas funcionam sabe que o diplomata que intervém numa comissão de um órgão multilateral como é a ONU atua sob uma instrução recebida do seu embaixador, ao qual, por sua vez, chegaram orientações oriundas da direção política, em Lisboa. Muitas vezes as instruções são genéricas, outras vezes são detalhadas, em alguns casos mesmo num "micro-management" irritante. Na frente lisboeta da decisão - que, dada a sensibilidade política do tema em causa, deve ter sido ponderada ao milímetro, porque ninguém fica "isolado" com os EUA e o Reino Unido sem ser como resultado de uma opção política muito refletida - fazem parte o diretor-geral político-económico (era assim que se chamava, à época), o ministro dos Negócios Estrangeiros e, naturalmente, o primeiro-ministro de então. Não me passa pela cabeça que qualquer destas três figuras possa ser tentada agora a fugir às suas responsabilidades. E, repito, não é para aqui chamado qualquer juízo de valor sobre a temática, em si mesma. Essa é outra questão.

Porque é que tenho estas certezas - e não outras - sobre este assunto? Fui embaixador na ONU, na OSCE e na UNESCO e, noutro quadro de responsabilidades, passei anos a dar instruções a representações portuguesas junto da União Europeia, da OCDE, do Conselho da Europa e da OMC. Sei, por isso, do que falo, mas, repito, apenas no tocante ao "processo decisório".

Votar no carrasco?

É já para o ano que a Comissão Europeia vai mudar. Portugal vai poder indicar um comissário, coisa que não aconteceu durante os últimos 10 anos (os poderes europeus cooptaram um nome de nacionalidade portuguesa e o nosso país não teve oportunidade de escolher o seu comissário). E vai poder pronunciar-se sobre o nome do futuro presidente da Comissão Europeia, figura cuja posição e atitude perante as políticas da União não nos pode ser indiferente, atendendo à continuação da nossa dependência da boa vontade de Bruxelas, nos tempos que aí vêm.

O governo tem vindo a justificar que, não obstante todos os seus "esforços" (fomos testemunhas do episódio da sua proposta de 4,5% de défice, que terá sido reconduzido a 4% por recusa desses credores), é da inflexibilidade das instituições da "troika" (em que a Comissão Europeia tem um papel decisivo e até punitivo) que se deve o facto da vaga de austeridade que se abate sobre o povo português não poder ter sido atenuada.

Por tudo isto, resulta natural que o governo português, chegado o momento de dar o seu voto para a escolha (que terá de ser unânime entre os governos, como se sabe) do futuro presidente da Comissão se incline para o candidato em cujo programa possa figurar uma leitura mais flexível, menos penalizante e gravosa das medidas de austeridade que nos são impostas. Ninguém compreenderia que o governo, apenas por solidariedade ideológica no âmbito das linhas partidárias europeias, viesse a inclinar-se em favor de um candidato que fosse adepto de uma linha que mantivesse a mais estrita e condicionante leitura dessa austeridade.

Por essa razão, a lógica apontaria para que Portugal, na sua postura europeia - em declarações, artigos e tomadas de posição nas instâncias adequadas - fosse desde já deixando claro que o seu voto irá para o candidato, com condições de ser eleito, que afirme e se comprometa a demonstrar uma sensibilidade para um tratamento ponderado da situação dos países europeus com maiores fragilidades macroeconómicas, que, no nosso caso, possa vir a atenuar o atual sofrimento do povo português. Se acaso procedesse de forma contrária, optando por um nome da linha económico-financeira mais dura, o governo estaria simplesmente a votar no carrasco dos portugueses. Acho que devíamos estar muito atentos a isto.

Argel antes de abril

"Amigos, companheiros e camaradas, esta é a Rádio Voz da Liberdade". Era assim que, duas vezes por semana, antecedido de um coro das "canções heróicas" de Fernando Lopes Graça, nos chegava pela noite a emissão da rádio que, de Argel, divulgava a mensagem da Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN). O endereço que nos era oferecido para correspondência ("rue Auber, 13, Alger, Argélia") era então uma referência forte da luta exterior contra a ditadura.

Para o jovem estudante de liceu que eu era, nesses anos 60, com o ouvido colado à rádio para não despertar ouvidos hostis nos silêncios da madrugada de Vila Real, posso imaginar a curiosidade sobre quem seriam as vozes que, num tom épico, "conclamavam" as "massas populares" para, no dia seguinte, "saírem à rua" e derrubarem a ditadura - o que a dura realidade desse dia seguinte sempre teimava em desmentir. A mais marcante dessas vozes era Manuel Alegre - de quem, à época, creio que não conhecia sequer o nome.

Ontem, em Argel, passei por lá, pela "rue Auber", que agora se chama Mohamed Chabani, situada na zona antiga de uma cidade onde, a cada canto, surgem edifícios belíssimos de uma arquitetura colonial francesa onde se pode presumir uma vida urbana excecional. As coisas mudaram bastante, como a fotografia do estado do "nº 13" bem o demonstra.

Por uma curiosidade que sempre tive por esse tempo argelino da nossa vida política - Argel foi o mais importante centro da Oposição à ditadura, seguido de Paris, do Rio e S. Paulo e de Moscovo - fui ver também o (que deve ter sido o) imponente edifício em cujo 5º andar a presidência argelina instalou o general Humberto Delgado, depois da sua chegada, em 27 de junho de 1964. É o 118 do boulevard Salah Bouakouir, sede da Junta Revolucionária Portuguesa, de que também deixo uma foto.

sexta-feira, dezembro 06, 2013

Mandela, nós e os ingleses

Numa inóspita sala de embarque de um aeroporto, dizem-me de Lisboa que, na blogosfera portuguesa, "se ha armado un follón" (uso a linguagem do local onde estou) a propósito do voto negativo que Portugal deixou nas Nações Unidas, perante uma resolução na Assembleia Geral, em dezembro de 1987, que incluía o pedido de libertação de Nelson Mandela. Já há semanas o assunto havia sido ressuscitado na nossa imprensa, depois de, em tempos, o deputado António Filipe o ter referido. Portugal aparece isolado nesse voto com os EUA e o Reino Unido.

Devo dizer que não entendo o espanto. Numa leitura extrema do que considerava ser o seu compromisso nas trincheiras da "guerra fria", Lisboa seguia, por esses tempos, uma linha de constante colagem às posições britânicas. Pergunto-me mesmo quantas vezes, numa contabilidade de tomadas de posição neste domínio, o nosso país - repito, por esses tempos - deixou de acompanhar Londres.

Desde então, as coisas mudaram muito. Um dia de 1997, em Bruxelas, depois de eu ter anunciado à imprensa uma posição que assumira nas negociações do tratado de Amesterdão, um jornalista belga perguntou-me: "Coordenou essa posição com os ingleses?" Devo ter mostrado uma cara surpreedida, pelo que o homem continuou: "Vocês não se articulam sempre com eles antes?" O curioso é que eu nem sequer sabia que posição o Reino Unido tinha na matéria. Continuávamos a ser "the oldest ally", mas, desde 1995, deixáramos de ser "the oldest follower".

quinta-feira, dezembro 05, 2013

Portugal - ascensão e queda

Não dá! Anteontem, ao final da tarde, tinha quatro compromissos, precisamente à mesma hora. Um deles era, como agora se diz, incontornável. Dois outros eram ocasiões "sociais", uma delas para honrar uma amiga que muito prezo*.Outro ainda era o lançamento do último livro do meu amigo Jaime Nogueira Pinto, "Portugal, ascensão e queda". Falhei o encontro. Chegado a casa, tinha o livro à minha espera. Vou ler. Mas o mistério continua: como é que o Jaime Nogueira Pinto organiza os seus dias e horas, por forma a publicar a este ritmo?

* o que um lapso suscita, conforme os comentários

quarta-feira, dezembro 04, 2013

Argel

Amanhã, farei em Argel, no "Institut Diplomatique et de Relations Internationales", uma palestra sobre o tema "Mediterrâneo - o diálogo entre as margens", para explicar a atividade do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa. A palestra insere-se no quadro de uma visita oficial, para contactos com o Ministério dos Negócios Estrangeiros e outras entidades locais.

Já não vou a Argel há alguns anos, uma cidade cuja carga histórica compreendi melhor aquando da minha estada em França. Estou com alguma curiosidade em revisitar a belíssima "cidade branca", embora o tempo de permanência não dê para grande turismo.

Em tempo: constatei, in loco, que a bela Place des Martyrs, que a foto mostra, é hoje um imenso estaleiro para a construção do metro de Argel. Quem constrói? A "nossa" Teixeira Duarte, ora bem!

terça-feira, dezembro 03, 2013

A fechadura

Foi há cerca de uma hora. Ele estava com um "pifo" medonho, à saída do bar. Achei que devia levar aquele amigo. Chegado a casa, tentou abrir a porta do automóvel, mas a fechadura tem um truque:

- Tens de pressionar duas vezes. Só funciona à segunda.

Olhou-me com um ar estranho. 

- Arranjas cada carro! Como é que se faz à terça?

segunda-feira, dezembro 02, 2013

A ver navios

Nos muitos anos em que férias foram para mim sinónimo de Viana do Castelo, os Estaleiros faziam parte da paisagem de fundo. Amigos do meu pai trabalhavam "nos Estaleiros", raramente havia uma família de alguém conhecido que não tivessem gente ligada a essa indústria central na vida da cidade, atravessava-se os Estaleiros, de onde saíam sirenes e barulhos estranhos, para ir à praia norte, onde se dizia que as virtudes do iodo compensavam a ventania das tardes desabrigadas, logo que passado o Campo. Na minha memória, os Estaleiros fazem parte da identidade de Viana tanto quanto as lavradeiras da Senhora da Agonia, as montras do Valencinha da Praça ou do Eugénio Pinheiro, os doces do Natário, o mazagran do Límia Parque ou do Girassol ou o escadório de Santa Luzia. E, mais modernamente, a fama dos ouros da ourivesaria Freitas ou os advogados espertalhotes do prédio Coutinho, para dar dois exemplos de sentido contrário.
 
Com tudo em crise por aí, só espantaria que os Estaleiros não seguissem a sina da pátria. A espaços, Viana apareceu nas televisões com façanhudos operários reclamando de problemas na empresa. Com os empregos em risco, percebi entretanto que se justificava amplamente serem façanhudos. E com a gestão errática dos últimos anos - em que "dom Sebastião" oscilou entre os russos, os Açores, Hugo Chavez e, agora, as ventoínhas da nossa poluição visual (uma das quais já emerge lá pela zona) -, assistimos a decisões e contra-decisões ministeriais (com trapalhadas europeias à mistura) que, para o cidadão comum como eu sou, têm um ar de ligeireza e de aparente irresponsabilidade. Ou os estaleiros são para fechar ou são para ter futuro. Este vai-e-vem de manifs e de declarações oficiais com ar de Estado, com os Estaleiros a ver navios, é que tem de acabar. 

Comentários

Vão regressar os comentários a este blogue. Infelizmente, dada a recorrente natureza de alguns, visivelmente estimulados pelo fenómeno Trump...