(Dedicado ao Tiago Moreira de Sá)
Por ocasião das negociações dos tratados de Amesterdão e de Nice, regressou ao debate europeu a questão das chamadas “cooperações reforçadas”, também chamada de “integração diferenciada” ou de “Europa a várias velocidades”. O tema já andava nas conversas há vários anos. Alguns lembrar-se-ão também da tese dos “círculos concêntricos”. Por que surgiu e, depois, ressurgiu?
Na lógica comunitária original, todos os países deviam avançar ao mesmo tempo, com a Comissão Europeia no centro, como impulsionadora das políticas comuns e das propostas para o seu aprofundamento, que teriam de passar depois pelo Conselho (isto é, pelos governos nacionais) para aprovação.
A Europa original, dos “seis”, tinha, além de um corpo modesto e pouco ambicioso de políticas, uma relativa homogeneidade em termos de desenvolvimento. Em todos os membros desse “clube de ricos” (comparado com o resto do continente) havia regiões mais pobres, para cuja tentativa de “ratrappage” da média de desenvolvimento das restantes regiões foi criada a “política regional”, no fundo, medidas de discriminação positiva para as favorecer, através da alocação de fundos. E, claro, havia também a “Política agrícola comum”, a famosa PAC, que levava quase metade do orçamento comunitário, mas que era considerada “identitária” pelos que “mandavam” nas Comunidades Europeias (leia-se, Alemanha e França).
Os alargamentos significaram a entrada no “clube” de sócios com diferentes ideossincrasias. O Reino Unido, que tinha decidido inicialmente permanecer fora do projeto, para proteger a sua identidade e autonomia decisória, percebeu, durante o período áureo das “trente glorieuses” (“années”, os trinta anos iniciais de grande sucesso do projeto), que, por razões estritamente económicas, não podia ficar de fora. A França, o mais vitorioso de todos os derrotados na Segunda Guerra, que percebia que tinha a “inferioridade” alemã nas suas mãos, resistiu quanto pôde a que Londres aderisse. Mas o mercado britânico, importante para os alemães, acabou por se impor.
Viria a entrar também a Dinamarca, embora sempre muito desconfiada do imenso vizinho germânico do Sul. Depois, pela sua imbricação inescapável com o Reino Unido, a Irlanda integrou o grupo. Trazia consigo a primeira exceção: era o único não-membro da Nato. O fim da ditadura na Grécia dos coronéis levou a que um segundo país pobre (depois da Irlanda) entrasse no ”clube dos ricos”. O preço era, contudo, barato: a densidade das políticas, por esse tempo, era muito limitada, pelo que os custos desses alargamentos eram marginais.
O fim das ditaduras ibéricas levou a um novo esforço. Tal como no caso grego, havia que apoiar essas duas novas democracias, reforçar a sua estabilidade, o que era também um interesse geral da paz europeia. Mas eram, igualmente, novos mercados não despiciendos para os produtos da Europa desenvolvida - 50 milhões de habitantes. Portugal, pela primeira vez, ficava num corpo de alianças comum com a Espanha, mas poucos por cá notaram isso.
Caiu, entretanto, o muro de Berlim. E alguns Estados neutrais que, nunca tendo estado sob a tutela de Moscovo (alguma doutrina divide-se quanto ao caso da Finlândia), pediram a adesão, para ficarem sob o chapéu tutelar da Europa das liberdades e da economia de um mercado que, centrado em Bruxelas, parecia caminhar para vir a ser uma grande potência autónoma, quiçá mesmo política, no termo da Guerra Fria. Não eram membros da Nato, para a qual a Espanha fora já cooptada? Isso contava menos, num tempo em que se pensava que a Rússia ia ser “outra”, pelo que não impedia que, com a Irlanda, viessem a dar força a uma ala “neutralista” dentro daquilo a que se passou a chamar-se, entretanto, União Europeia. Aliás, vendo bem as coisas, funcionavam já numa espécie de “neutralidade colaborante” para utilizar a designação hipócrita cunhada pelo oportunismo de Salazar, durante o conflito de 1939/1945.
Por essa altura, e regresso à questão inicial, começou a constatar-se que alguns parceiros pareciam não estariam disponíveis para avançarem à velocidade dos outros. O corpo de políticas comunitárias ia-se aprofundando e aquilo que passou a decidir-se em Bruxelas era cada vez mais relevante. E um órgão proto-parlamentar, inicialmente meramente retórico, como era o Parlamento Europeu, passou a reclamar poderes e a decidir, cada vez mais, com base na representatividade demográfica dos Estados. Ora isso afetava o equilíbrio original dentro do “diretório”, que tinha voto igual no Conselho e o direito a indicar dois comissários europeus, ao contrário dos restantes Estados. A “décrochage” entre as potências que, na Europa, fazem o papel de grandes desagradava a Londres, mas também a Paris.
O Reino Unido, claro, mostrou-se logo à frente de todos os relutantes. Embora fosse um dos vencedores da Guerra Fria, como potência subsidiária do “amigo americano”, a ideia de uma “Europa-potência”, que, com razão, pressentia ir ser tutelada pelo “eixo franco-alemão”, que o Tratado de Maastricht prenunciava, não lhe agradava, tanto mais que o via como desafiador desse poder que era a sua “special relationship” com o outro lado do Atlântico. A sua vontade de promover, com rapidez, um imenso alargamento aos Estados saídos da anterior tutela soviética demonstrava bem o que desejava que a futura Europa viesse a ser. E os seus “opt-out”, garantidos em Maastricht, tidos como vitórias da soberania de Westminster sobre a tendência centralista da rue de la Loi, lá por Bruxelas, faziam pressentir a sua resistência ao aprofundamento do projeto. A sua auto-exclusão do chamado “protocolo social” havia, aliás, representado a sua verdadeira primeira “fuga” ao “template” comum. O Brexit, anos mais tarde, representaria o “opt out” final.
Já antes disso, também o acordo de Schengen, que (recordo) não era comunitário, causara engulhos a Londres. Se o Mercado Interno, que o Ato Único Europeu consagrara, era do seu pleno interesse, a “quarta liberdade”, que era a livre circulação de pessoas (depois das mercadorias, dos capitais e dos serviços - terrenos onde só tinha a ganhar), contrariava o seu perfil orgulhoso e controlador de ilha soberana. Relutantemente, porque a geografia é o que é, a Irlanda teve então de ir pelo mesmo caminho. Outros países ficaram também de fora, menos por vontade própria e mais pelo facto dos outros não confiarem na sua capacidade de controlarem a porosidade das suas fronteiras. Foi o caso da Itália e da Grécia - e sei do que falo, porque presidi a longas reuniões em que foi fixado o “road map” que viria a permitir a sua posterior entrada.
E, depois, claro, temos o caso do euro. Alguns países entenderam que a adesão a uma moeda única europeia feria uma sua marca de soberania tida por essencial. Reino Unido, Dinamarca e Suécia, dentro da Europa “a quinze”, decidiram não fazer parte do projeto. Outros, dos futuros alargamentos, pensaram de forma diferente e juntaram-se à moeda comum.
Na realidade, por muito que se fale hoje de ”cooperações reforçadas”, e tendo embora havido casos posteriores de agregação de países em torno de certas políticas, a realidade é que Schengen e o euro ainda são, na prática, aquelas que realmente contam. Teremos, de futuro, outros modelos na defesa, mas os seus contornos efetivos estão ainda por definir. Os mecanismos das “cooperações reforçadas” que os tratados de Nice e de Lisboa prevêm distinguem-se, aliás, destes modelos, que o linguarejar europeu crismou como “cooperações reforçadas pré-determinadas”. Sempre fui de opinião de que as “cooperações reforçadas” funcionavam mais como uma espécie de “ameaça” para forçar alguns a seguirem o caminho dos outros, acenando com os riscos decorrentes da sua não inclusão.
Vale a pena lembrar que Portugal esteve, desde o primeiro momento, em todos os modelos de integração diferenciada. Foi sempre, da nossa parte, uma decisão essencialmente política. Sendo um país geográfica e economicamente periférico, um juízo de razoabilidade levou diferentes executivos portugueses a considerarem que “falhar” a essa “chamada”, logo no momento inicial, seria um erro histórico, porque poderia configurar oportunidades perdidas. Ficar fora do “comboio” da integração plena, para um país muito frágil, em todos os domínios, como Portugal sempre foi e continua a ser, poderia ser um “suicídio” irresponsável. Não tenho hoje a menor dúvida de que estivemos certos ao tomar essas decisões.
A Europa vive hoje sob pulsões de desagregação, quiçá sob tentações de agregação “separatista”, de raiz voluntarista, motivadas por um ambiente raro de crise e acrimónia. Não tenhamos ilusões: por muito que proclamemos o nosso europeísmo “à outrance”, por muito “beneluxenses” que nos queiramos mostrar, o original valerá sempre mais do que a cópia... Mas quem é que mede isso, perguntarão alguns, de “peito feito”? A Alemanha. Berlim é o proprietário da “árvore genealógica” da família europeia. E a França? A França é dona dos castelos de uma aristocracia arruinada e tomara Macron conseguir controlar os seus “gilets”, que têm a cor do sorriso com que hoje enfrenta Angela Merkel nos Conselhos Europeus.
Façamos todo o “barulho” que entendamos dever fazer, coloquemos todas as nossas cartas de responsabilidade sobre a mesa, mas, neste tempo sem futebol, lembremo-nos sempre da frase histórica de Gary Liniker: “O futebol é um jogo de 11 contra 11 em que, no final, ganha sempre a Alemanha”. E é ela que, nas últimas décadas, escolhe os jogadores, nunca o esqueçamos também!