segunda-feira, junho 28, 2021

A pandemia e os Estados frágeis


Numa parceria entre o Clube de Lisboa, a que tenho o gosto de presidir, e o g7+, uma organização que é composta por mais de 20 países que passaram por situações de conflito, organizamos, durante o dia de hoje, a 2ª Conferência bienal sobre Estados Frágeis.

A pandemia, as vacinas e a solidariedade internacional neste domínio, com o papel da comunidade internacional neste contexto, são o tema genérico desta conferência, em que participa um importante número de especialistas de vários países.

Pode aceder livremente a este debate através da consulta do site do Clube de Lisboa.

domingo, junho 27, 2021

… e mudemos de assunto, sim?


”Mas isto é um canto e não um lamento
Já disse o que sinto e agora façamos o ponto
E mudemos de assunto, sim?
E mudemos de assunto, sim?
E mudemos de assunto, sim?”

(Sérgio Godinho)

Tapadinha



O Atlético Clube de Portugal é uma simpática agremiação (quanto mais não fosse pelo facto do seu nome acabar em “de Portugal”, como só num grande clube português se encontra) criada pela fusão do Carcavelinhos com o União, nos anos 40 do século passado. Por ali perto está a sede do Cascalheira, um “clássico” nas metáforas futebolísticas…

O Atlético chegou a ter uma presença regular na categoria maior do futebol português, tendo entrado em declínio nos anos 80. Daquele clube saiu uma das grandes glórias do futebol português, Germano. E nomes como Imbeloni e Ben David, que a minha geração recorda, também andaram por ali. Lá jogou ainda, na parte declinante da sua carreira, um dos maiores guarda-redes da história do nosso futebol, Carlos Gomes.

O curioso “pombal” que a fotografia mostra são as bilheteiras da Tapadinha, num modelo que era comum a muitos estádios antigos. 

Constatei que o “Tapadinha”, um restaurante russo que já tem muitos anos, que em tempos conheci com uma bela oferta de vodkas, ainda por ali está. “Nazdarovia!”

Alcântara, um bairro com uma inigualável importância na história dos movimentos sociais em Lisboa, foi muito afetado, na sua integridade urbanística, pela renovação profunda por que a área passou, desde o desenho da Avenida de Ceuta, que está hoje sobre o “caneiro de Alcântara” (convém de lembrar que “Al Qantara”, em árabe, significa “ponte”), até aos acessos e colocação dos pilares da ponte sobre o Tejo, que descaraterizaram muito a zona.

Gosto muito de passear por aquelas ruas. Na Alcântara de hoje, ainda é possível descortinar o que deve ter sido aquele importante bairro operário.

Bolas e coisas assim

Posso dizer uma “barbaridade” futebolística? Gosto de Fernando Santos e da forma como ele conduz a seleção nacional. 

Posso dizer uma segunda “barbaridade”? Gostei sempre da forma como Luiz Filipe Scolari fez o seu trabalho. 

Pronto! Aliviei-me de sinceridade.

O silêncio é de ouro


O senhor almirante, que se tem ilustrado na feitura de escalas de vacinas e outras dimensões de natureza logística, pelas quais o país lhe está muito grato, talvez devesse ficar por ali. A frase, a ser verdadeira, é preocupante na boca de um oficial general das nossas Forças Armadas.

Cimas


Há muitos anos, quando criança, nos intervalos dos jogos de futebol no campo do Calvário, em Vila Real, lembro-me de ouvir, com a voz grave e pausada da locução da época, um anúncio aos então afamados relógios Cyma.

Essa publicidade tinha um lema que, ao que me dizem, ecoava então um pouco por todo o país: “Acima de Cyma, só Cyma!”, para sublinhar a qualidade dita insuperável desses relógios. Depois da frase, o locutor dizia o nome e endereço da casa de relojoaria de Vila Real onde se comerciavam os aparelhos.

Lembrei-me disto ontem, acabado de jantar no Cimas, sobre a estrada que liga os Estoris (uma fórmula antiga de que gosto muito) a Cascais. Este antigo “English Bar“, hoje “Restaurante Cimas”, sob a mão competente de José Manuel Cimas Sobral, continua a ser um marco impressivo da restauração portuguesa.

Agora com um novo espaço num terraço superior, que neste bom tempo substitui a bela sala de madeiras que lhe fez o nome (o restaurante, imaginem!, existe de 1952!), o “Cimas” é sempre um porto seguro de excelente restauração. É barato? Não é. Mas, posso dizê-lo, tem uma relação qualidade-preço muito boa. E todos os restaurantes de qualidade, como é manifestamente o caso deste, merecem ser destacados.

Ecoando a publicidade de outrora, apetece-me dizer, depois da magnífica experiência que tive na noite de ontem, de que deixo uma despretensiosa imagem fotográfica: "Acima de Cimas, só Cimas”!

sábado, junho 26, 2021

A diplomacia e a defesa da integridade do país

Vale a pena começar o que vos quero dizer dando algumas breves notas relativas ao modo como a nossa estrutura de representação oficial externa foi evoluindo. 

Durante muito tempo, e Portugal não foi exceção àquilo que se passava um pouco por todo o lado, a representação do Estado sediada no exterior era cometida a personalidades da confiança pessoal do titular da soberania. Às vezes, essas figuras eram colocadas numa capital específica, na qual dispunham de alguma eventual influência. Em outras vezes, pela adaptabilidade da suas qualificações ou rede de contactos, entravam em itinerância entre as escassas missões diplomáticas que o país possuía. Nunca parece ter havido, por essa altura, qualquer limite temporal para o exercício dessas funções desses enviados do soberano. 

No início, as elites nacionais relevantes para tal fim eram figuras da aristocracia, com redes de relações, familiares e outras, além de um nível de educação e cosmopolitismo necessário à frequência das cortes estrangeiras. Eram também dessa extração os plenipotenciários que transportavam a palavra do chefe do Estado para as conferências internacionais quando estas ocorriam.

Não sei se há dados que permitam avaliar se esse papel do enviados externos, escolhidos pelo titular da soberania, era pior ou melhor assumido, até porque o único juiz da qualidade dessas escolhas acabava por ser o próprio soberano, na ausência então de um qualquer outro modo de responsabilização pública.

Há também que registar a curiosidade, às vezes pouco conhecida, de, por muitos anos, serem os próprios representantes diplomáticos a suportarem o custeio financeiro das missões, o pagamento ao seu pessoal e as suas despesas correntes de funcionamento. A honra e o prestígio de representar o seu rei e o o seu país seriam, talvez, a necessária retribuição para esses gastos.

É muito interessante notar que, mesmo a partir do momento em que o poder pessoal dos reis, na gestão da coisa pública, se foi atenuando, com o fim do Antigo Regime e pela crescente intervenção da representação democrática na formação e alternância dos governos, o papel do enviado diplomático foi mantido, formalmente, vinculado ao titular da chefia do Estado.

A criação de um corpo profissional, de uma “carreira”, para sustentação funcional da máquina de representação externa do Estado, não significou, durante muito tempo, que a alguma dessas pessoas, desses funcionários, fosse cometida a responsabilidade máxima de titularidade diplomática num determinado posto. Mesmo quando - e lembremo-nos de Eça de Queiroz - começou a haver concursos para a admissão de “bacharéis” para o exercício de funções consulares ou outras, nunca, repito, nunca se colocou a hipótese dessas pessoas poderem vir a exercer o cargo de embaixador. Aos funcionários que eram recrutados para a máquina pública externa competiam funções que eram sempre inferiores às dos titulares diplomáticos de confiança pessoal do chefe de Estado, sempre obrigatoriamente seus superiores. Posso estar enganado, mas creio poder afirmar que, em Portugal, a personalidades oriundas da “carreira” só foram confiadas chefias de missões diplomáticas durante o Estado Novo.

Ainda antes, e com o advento da I República, as figuras da aristocracia que chefiavam embaixadas ou legações foram substituídas por personalidades republicanas, com algum prestígio político ou cultural. Com o rei afastado e os títulos nobiliárquicos abolidos, essa “revolução” teve algo de natural.

Embora a máquina diplomática pudesse já ter alguma profissionalização a níveis abaixo da chefia de missão, acabando isso por representar um laço de continuidade na representação do Estado junto de um determinado país, na prática, por essa época, a embaixada “era” o embaixador. Essa realidade prolongou-se por muitos anos e alguns de nós, que estivemos bastantes anos na carreira, ainda nos lembramos de que alguns postos, sobretudo unidades mais isoladas e menos visíveis, continuavam a ser estruturas quase “unipessoais”.

É também importante notar que as legações e embaixadas, as duas designações de então, eram muito poucas. Com escassas exceções, estavam maioritariamente situadas na Europa, com as mais importantes acreditadas junto das potências relevantes, em que a Santa Sé figurava como tal.

Daí que a cultura diplomática prevalecente também fosse, essencialmente, europeia. Se repararmos bem, se há algo em que o mundo ainda não se “descolonizou” foi na liturgia diplomática, nesses “rituais de entendimento”, como bem os designou o embaixador José Paulouro das Neves , que eram e continuam a ser tributários da tradição diplomática e da prática protocolar criadas na Europa. Esse “esperanto” do relacionamento internacional, de origem europeia, não foi nunca seriamente contestado.

A diplomacia portuguesa, ao longo da sua história, apontou sempre para a necessidade de manter certas embaixadas junto dos “powers that be”, embora as representações consulares, para apoio ao comércio (nesse tempo, a importância do apoio à diáspora estava longe de ser reconhecida como um objetivo), fossem comuns em várias outras paragens. Só com a multiplicação de novos Estados, na segunda metade do século XX, fruto das descolonizações e da afirmação de novas nacionalidades decorrentes da fragmentação de anteriores unidades estatais, foi necessário acorrer a outras geografias para a defesa dos interesses nacionais.

É nesse período que se constata que a algumas personalidades que faziam parte das estruturas diplomáticas permanentes era dada, pela primeira vez, a possibilidade de virem a chefiar missões diplomáticas - de início, naturalmente, as de menor importância. Para as grandes embaixadas e legações, o modelo tradicional de escolha continuava a prevalecer.

Durante muitos anos, aquilo a que agora é vulgar chamar de “embaixadores políticos” foi a regra, os embaixadores “de carreira” eram a exceção. Foi durante o Estado Novo que esta relação começou a inverter-se, em que o poder político percebeu que já estava criada uma estrutura de representação externa do Estado de uma qualidade na qual podia fazer confiança. E, dessa forma, foi-se crescentemente dispensando a busca na sociedade civil, em geral na classe política, de outras personalidades para exercer essas funções.

Com a Revolução de Abril, terá havido, inicialmente, uma tentação de preencher a representação externa do Estado com gente “de confiança” da democracia. Há rumores de que, mesmo para níveis intermédios da carreira, houve quem pensasse fazer entrar figuras políticas, com o argumento de que, por anterior impossibilidade de acesso, a uma certa geração havia sido vedado o acesso à carreira. Por outro lado, vozes havia que entendiam que a diplomacia profissional estava de tal modo conluiada ideologicamente com o regime derrubado que era necessário “saneá-la” radicalmente. Nenhuma dessas ideias prosperou. Os “saneamentos” foram muito escassos, o novo regime rapidamente percebeu que, não obstante grande parte da carreira poder ser então tida como conservadora, ela poderia ser reconvertível para o serviço da democracia. E essa perspetiva não só vingou como se mostrou correta.

Constata-se que, ao longo deste quase meio século de vida em democracia, os diversos poderes políticos escolheram um total de 31 personalidades externas à carreira para a chefia de embaixadas. Com naturalidade, a entrada dessas figuras foi mais intensa nos anos imediatamente posteriores a 1974, passando, a partir de então, a significar uma percentagem cada vez menor no conjunto dos chefes de missão. Neste dia em que lhes falo, apenas uma missão multilateral portuguesa é titulada por alguém que não entrou por concurso para a carreira diplomática. 

Não quero fazer aqui um balanço, que seria algo delicado e polémico, sobre o valor acrescentado que aquele conjunto de figuras trouxe para a ação externa do Estado, bem como para o prestígio do país. Como profissional diplomático, orgulhosamente “de carreira”, nunca tive dificuldade de reconhecer, com a maior franqueza, que houve personalidades recrutadas fora do MNE cuja qualidade acabou por ter consequências muito positivas para o trabalho da nossa diplomacia. Outras, sem deslustrarem, não trouxeram uma contribuição que se possa dizer que não pudesse ser feita pelos profissionais da “casa”. Muito poucas - mesmo muito poucas, felizmente! - se revelaram-se nefastas ou perniciosas para a imagem e serviço do Estado que haviam sido chamadas a servir. Mas assumo a arbitrariedade deste meu juízo global, mesmo sem “naming names”. Um último apontamento sobre este tema: a algumas dessas figuras escolhidas fora da carreira foi, a certa altura, dada a possibilidade de integrarem o serviço diplomático corrente, circulando entre postos, numa total equiparação aos diplomatas “de carreira”.

Gostava de voltar à questão da diplomacia que tínhamos, no final da ditadura. Quando, em 1975, entrei para o serviço diplomático, cerca de um ano decorrido desde a Revolução de Abril, tínhamos acabado de sair de um período extremamente complexo para a vida diplomática portuguesa. Todos sabemos que os tempos das duas guerras mundiais haviam sido muito exigentes para a nossa ação externa. Mas há que convir que, logo após a entrada de Portugal para a ONU, em 1955, o desafio criado pela tentativa de escapar à pressão internacional para forçar a descolonização dos territórios ultramarinos portugueses, num tempo em que as antigas potências coloniais rapidamente desapareciam pelo mundo, criou uma nova e não menos difícil trincheira diplomática. Portugal, um pouco por toda a parte, com apoios declinantes, passou a estar sob uma constante barreira de fogo político, em especial no plano multilateral, mas com incidências, mais ou menos sérias, em algumas dimensões bilaterais. Tudo havia começado com a questão da Índia portuguesa, logo seguida das situações dos domínios portugueses em África, em especial após o início, em 1961, das guerras coloniais.

Nesse muito difícil contexto, e sem trazer para aqui juízos de valor sobre a questão política que servia de pano de fundo, há que reconhecer que a diplomacia portuguesa se portou extraordinariamente bem. A nossa diplomacia fez exatamente aquilo que lhe era destinado fazer, que era levar à prática o mandato que o poder político lhe determinava. Não era à diplomacia que competia questionar a política externa do regime, podendo nós imaginar que, muitas vezes, alguns desses nossos antigos colegas se devam ter interrogado sobre se o que estava a ser feito era aquilo que melhor protegia o que interpretavam como sendo os interesses essenciais do país. Muitos, creio que a maioria, estariam sintonizados ideologicamente com a tarefa diplomática que eram levados a implementar. Outros, em bom número, eram apenas “civil servants” disciplinados. Alguns terão calado as suas dúvidas, porque os tempos políticos não ajudavam ao questionamento das orientações. Uns seriam mais competentes, outros menos. Na globalidade, o trabalho produzido, visto a esta distância, parece ter sido, em termos profissionais, de indiscutível qualidade. Não parece ter sido pela diplomacia que esse Portugal político foi derrotado na sua “guerra colonial”.

Esta dialética entre o exercício da função diplomática e as orientações da política externa leva-me ao ponto a que agora quero chegar: são os diplomatas “produtores” de política externa, nomeadamente num contexto democrático? Podem os profissionais ter como legítimo objetivo influenciar a ação externa do país, embora não tenham atrás de si a legitimidade própria dos atores políticos?

Sempre fui de opinião que os diplomatas não devem considerar-se a si próprios como meros “locutores de continuidade” de uma política externa que lhes é ditada. Entendo que os diplomatas podem e devem aportar, para a reflexão sobre a postura externa do Estado que servem, aquilo que é o fruto da sua experiência, como depositários que são da continuidade de uma cultura de ação política de que são executores, mas também cultores, ao longo dos vários ciclos políticos, na alternância que a democracia permite e promove. Devem, contudo, dar esse contributo dentro das paredes oficiais, cuidando em não serem fautores e potenciadores de divisões públicas.

Estão aqui nesta sala pessoas que representaram o Estado português durante muitos anos. Estou certo que todas elas reconhecem que, ao final de algumas décadas de representação do Estado, todos acabaram por criar uma espécie de feeling sobre o que é o interesse português, independentemente dos vários ciclos de governo.

Ao longo da minha vida de quase quatro décadas ao serviço da diplomacia, fui chefiado por 21 ministros dos Negócios Estrangeiros. Com escassíssimas exceções, nunca senti particular dificuldade em representar a “voz” do Estado, mesmo em ciclos políticos contrastantes. Em algumas circunstâncias, e não foram muitas, discordei da orientação decidida pelo governo de turno, em determinados assuntos. Calei essa discordância, porque entendi não ter o direito de, nesses momentos, tornar pública a minha divergência de opinião. Se então me apetecesse contestar as determinações oficiais, deveria ter saído da carreira e vocalizar a minha posição no exterior. Como essas determinações não foram ao ponto de ofender, no limite, a minha consciência e aquilo que era a minha leitura do interesse português, embora as entendesse flagrantemente erradas, calei-me. Uma delas, como adivinharão, foi a organização da Cimeira das Lajes, em 2003.

Acho que deve fazer parte da nossa postura, como diplomatas, com coluna vertebral e com sentido do interesse público, ter a coragem de dizer sempre ao poder político aquilo que pensamos. Criámos um património de memória e de defesa do interesse do pais. Mas não temos o direito de o impor. Se o poder político entender não aceitar a nossa posição, devemos fazer aquilo que ele determine. É ele quem tem a legitimidade política, por mandato democrático, para nos dar as orientações. Não temos uma qualquer legitimidade que nos permita arrogarmo-nos a ser uma espécie de guardiões do templo. Felizmente, no Portugal democrático, os ciclos políticos não têm trazido mudanças radicais à nossa postura internacional - e isso, vale a pena dizer, facilita-nos bastante a vida.

Um dia, o meu amigo João Rosa Lã, ao tempo em que era embaixador na Haia, referiu-me que a Holanda tinha acabado de publicar um livro branco com uma reforma muito significativa da sua política externa. Pedi-lhe um exemplar, por curiosidade. Não tenho dificuldade em entender que as políticas públicas de um país possam ser objeto de revisão, mesmo que radical. Mas, devo confessar, faz-me uma certa impressão que uma política externa, um quadro de prioridades no terreno bilateral e multilateral, com expressão ao longo de muitos anos, possa ser objeto de uma redefinição drástica, que, de certa maneira, afeta aquilo que já é um certo património histórico do país. Os holandeses não entenderam assim e repensaram, por essa altura, a sua política externa, a sua hierarquia das prioridades, a começar pela rede diplomática e certas políticas que lhe estavam associadas. A verdade é que de um país que, um dia, decidiu promover, pelo mundo, uma mudança do nome pelo qual era conhecido, passando de Holanda a Países Baixos, tudo é possível… Acho, contudo que seria muito difícil para nós, em Portugal, como que “parar para obras” e decidir: «Ora vamos lá repensar a nossa política externa, para ver se o nosso relacionamento deve ser mudado, com este ou com aquele país, com esta ou aquela organização», anunciando isso por escrito! Mas cada um é como é!

Não sei se já se deram conta, mas creio que só há um único elemento que foi preservado na política externa portuguesa, da ditadura para a democracia: a relação transatlântica. Com essa exceção, nenhum daqueles que hoje são considerados os eixos da nossa ação externa - Europa, língua e lusofonia - existia antes do 25 de Abril: a relação com a Europa comunitária era muito incipiente, aquilo que hoje podemos qualificar como o pilar do mundo que fala português não se colocava, obviamente, do mesmo modo. Porém, a prioridade dada à NATO, às relações com o Reino Unido e os Estados Unidos, com as Lajes de permeio, já estava bem inscrita na nossa agenda externa.

Há dias, ao comentar isto, alguém me disse, com um ar muito natural: «É muito simples perceber a razão pela qual isso se passou assim. O 25 de Abril foi feito por militares e os militares portugueses são tributários de uma cultura NATO». Nesse instante, recordei-me do momento, algo bizarro, que havia sido a presença do general Vasco Gonçalves, como primeiro-ministro, numa cimeira da NATO, em Bruxelas. Evidentemente, nós sabíamos que, a Portugal, havia sido retirado o acesso aos códigos nucleares da organização. Mas a presença de tão idiossincrática figura naquela reunião, provava, se tal fosse imperativo, a importância basilar do relacionamento transatlântico, a preservação de um elemento fundamental da nossa postura geopolítica, resultante do lugar do mundo onde continuávamos e continuamos, com ou sem Revolução.

Somos um país antigo e somos um país, em regra, com uma atitude externa bastante previsível. O mundo sabe quem somos e como, em geral, nos comportamos, perante as coisas do mundo internacional. Não está na nossa natureza mudar, radicalmente, de postura externa. A nossa dimensão, aa nossas dependências, bem como a nossa fragilidade relativa não recomendam que isso se faça, com ligeireza.

Porém, refletir sobre a nossa política externa, questionar serenamente a sua evolução, olhá-la e adaptá-la de uma forma diacrónica, isto é, não pensarmos que “isto é assim e vai ficar sempre assim”, pode e deve fazer-se. Por exemplo, numa área que julgo conhecer bem, o relacionamento com a União Europeia, devemos refletir permanentemente sobre a adequação da nossa atitude a cada tempo, tanto mais que a União, ela própria, muda constantemente de natureza e é importante que meçamos o modo como nos devemos comportar face a essas mesmas mudanças.

Por exemplo, acho que é da maior importância, sem grandes estados de alma, fazermos uma contínua reflexão sobre a nossa política de alianças dentro da União Europeia. E fazê-lo de maneira fria, como todos o fazem: umas vezes estamos com a Espanha nuns dossiês, em outros afastamo-nos, de outras vezes aproximamo-nos da Alemanha, outras da França. A defesa ótima dos nossos interesses a isso obriga e não surpreenderá ninguém que o façamos. Todos o fazem.

Um caso muito interessante, e pouco abordado entre nós, tem a ver com o relacionamento com o Reino Unido. Não quero especular muito sobre isto, mas diria, num caricatura que é um “understatement”, que Londres, por mais de dois séculos, sobredeterminou a nossa postura externa, em termos que chegaram a ser, na prática, de uma quase tutela.

Creio que em 1987, destacado para uma reunião comunitária sobre questões de desenvolvimento, a ter lugar no Luxemburgo, e perante uma agenda que teria aí uma dez pontos, recebi instruções sobre três ou quatro deles e, quanto aos outros, foi-me dito: «É seguir os ingleses». Devo dizer que, naquele instante, que nunca mais esqueci, como que gelei. Percebi que o “comodismo” diplomático podia ir ao ponto de dispensarmos ter posição própria, talvez por se considerar que os assuntos em causa não eram do nosso interesse direto, pelo que seria prudente seguir a linha de um país cujas posições, em regra, estavam próximas das nossas.

Os britânicos “raptaram”, durante muitos anos, parte significativa da capacidade decisória portuguesa na área externa, connosco a considerar, numa avaliação simplista, que, ”seguindo os ingleses”, tínhamos basicamente preservados os nossos interesses. Essa atitude representava aquilo que é, precisamente, o contrário daquilo que, mais tarde, aprendi que um país deve fazer na gestão da sua politica europeia: sair da preguiça da agenda egoísta e criar uma filosofia sobre a generalidade dos assuntos, numa coerência global de atitude.

Quando estive colocado na nossa embaixada em Londres, no início dos anos 90, dei-me conta de que comunhão dos nossos interesses com o Reino Unido era apenas, e cada vez mais, um mito. Lembro-me bem das dificuldades com a questão de Timor, em que o Reino Unido estava, quase por sistema, do outro lado da barricada. E, em muitos outros dossiês, salvo em temáticas de política externa e de segurança, em que a questão transatlântica viesse à baila, o nosso afastamento era cada vez mais significativo. Nos anos em que, depois de sair de Londres, tive responsabilidades política na área dos assuntos europeus, em tempos em que Portugal sublinhava bastante a sua postura integracionista, o Reino Unido passou a estar, crescentemente, bem distante das posições de Portugal.

E aqui regresso à questão dos interesses portugueses. Identificá-los, aculturá-los, preservá-los e promovê-los foi sempre uma das grandes preocupações que tive na minha vida diplomática, nela incluindo a passagem pela política.

Quando entrei para a diplomacia, posso agora revelá-lo, era um anti-europeu. E era-o por uma razão muito simples: vinha da esquerda e o setor da esquerda portuguesa de que eu então me sentia próximo não era, por natureza, europeísta. Porém, não sendo comunista, percebi, a certa altura, que a minha postura acabava por ser, nesse domínio, bastante similar à do PCP. E isso não só me incomodou como me levou a interrogar-me sobre a correção dessa minha posição.

O meu anti-europeísmo de então, vim a constatar, era uma reação epidérmica e algo primária, numa lógica simplista de que, no processo decisório europeu, nunca devíamos partilhar decisões. Devíamos, ferozmente, guardar para nós a capacidade de decidir em tudo quanto nos dissesse respeito. Os interesses portugueses eram sempre melhor defendidos do lado de cá do Caia. Para lá do Caia, os interesses eram outros, só por acaso coincidentes com os nossos. Era uma perspetiva totalmente errada: os nossos interesses são sempre melhor defendidos numa atitude pró-ativa, envolvendo os outros e envolvendo-nos nós mesmos naquilo que são os interesses dos outros. Com o tempo, vim a entender que o conceito de independência, e a capacidade de defender essa independência, têm uma expressão muito diferente no mundo atual. Se há conceitos que mudaram com o tempo, e que dependem muito das circunstâncias, esse são a independência e a soberania.

Uma vez, nos anos 60, numa aula do então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, perguntei ao professor Adriano Moreira se, duas ou três décadas depois, ele via como possível que o Ultramar português se tornasse independente. A pergunta era delicada, mas o professor Adriano Moreira teve arte para lhe dar a volta: «Se o meu amigo me conseguir dizer, hoje e agora, qual será o conceito de independência daqui a 30 anos, terei o maior gosto em responder-lhe.» Era uma fuga à questão mas, de certo modo, era verdade.

O que é hoje, para um Estado como Portugal, ser independente? Éramos mais independentes, como Estado, quando éramos um país isolado, “orgulhosamente sós”, durante os últimos tempos do período colonial, em que vivíamos debaixo de uma pressão internacional fortíssima? Ou será que somos hoje mais independentes, mais capazes de influenciar o nosso futuro, quando conseguimos atuar, dentro e com a União Europeia, afirmando-nos em múltiplas dimensões multilaterais? Temos hoje uma maior capacidade internacional ou não? Não tenho dúvidas de que, mau grado novas dependências que entretanto possamos ter criado, a nossa posição no quadro internacional é bem mais confortável do que nesse tempo tenso. E que este novo quadro, se bem que mutante e exigente, é muito mais favorável para a defesa prática dos nossos interesses.

É para mim claro que todos os contextos em que haja dinâmicas que não possamos, autonomamente, controlar, são fautores de riscos - e a participação nas instituições europeias não está isenta de perigos. Um espaço de participação em modelo de partilha de soberania tem sempre dificuldades, agravado, no nosso caso, pela nossa dimensão, pela nossa fragilidade financeira e pelo poder institucional limitado que é o nosso. Talvez por isso continuo, às vezes, a ter algum tropismo soberanista - e tive-o muito claramente quando negociei dois tratados da União Europeia. Nunca consegui ser muito concessionista, nem nunca fui atraído pelas derivas do hiper-federalismo. E continuo a ser adepto, não apenas de reservas de competência nacional muito claras, em áreas de soberania, como na preservação de uma capacidade mínima de influência no processo decisório.

Por essa razão, tive sempre muitas dúvidas, em matéria de revisão instutucional de tratados, na questão da redução do poder de voto no Conselho, em cedências no número de deputados ao Parlamento Europeu, na importância de manter um Comissário. Tive sempre imensas dúvidas em fazer concessões em relação a isso. Tanto mais que sempre vi aqueles Estados que procuram “segurar as rédeas” da União muito interessados em reforçar o seu poder. Se eles, que são, por natureza e pelo seu poder económico e demográfico, muito poderosos vivem, em permanência, mobilizados para garantirem a preservação dessa força, por maioria de razão um Estado menos forte, com mais fragilidades, situado frequentemente fora do mainstream decisório prevalecente em Bruxelas, precisa de preservar alguma capacidade de controlo da sua posição.

Neste bosquejo pela nossa postura externa, como é que a diplomacia portuguesa se tem portado? Acho que se tem portado, basicamente, bem. Sempre? Nem sempre: temos, como é natural, alguns altos e baixos. Vou ser muito franco - e julgo que abro aqui “o livro” de uma forma que ninguém antes fez. Temos gente que trabalha muito bem, como também temos gente que trabalha menos bem. Temos gente que é capaz de defender, com afinco, os interesses nacionais e outra que, não operando contra o interesse nacional, o não cultiva com o afinco com que deveria fazê-lo. Mas, em termos gerais, considero que o país está bem representado e que há hoje uma maior responsabilização, uma maior transparência naquilo que cada um faz, pelo que a meritocracia me parece mais afinada. E isso é bom.

A Europa é disso um bom exemplo. Não teria sido possível a Portugal ter um presidente da Comissão Portuguesa se o nosso país não tivesse tido, ao longo dos anos, dentro da União Europeia, um comportamento altamente responsável, eficaz, com presidências rotativas muito bem executadas, com forte sentido de responsabilidade, com pessoal respeitado, com uma presença muito ativa. Não somos “os melhores do mundo”, mas tivemos sempre, no nosso seio, gente de muito boa qualidade, que ajuda a prestigiar, pelo mundo, o nome do país.

Infelizmente, acho que não temos uma cultura, dentro da carreira diplomática, de permanente reflexão sobre o que são os interesses portugueses e a melhor maneira de os promover. Fica a ideia de que é por “osmose“ que vamos absorvendo o que interessa salvaguardar. Ora essas coisas têm que ser mais discutidas, refletidas, as pessoas têm que estar conscientes de que há uma matriz comportamental que representa os interesses do país. E deve haver maior accountability, consequências negativas para quem não leva as coisas com o indispensável rigor, efeitos positivos nas carreiras para quem é profissionalmente competente. E devemos todos estar conscientes da “linha” que nos compete defender, sem ambiguidades e, em especial, sem “achismos”. Recordo-me sempre de um raspanete que dei a um adido de embaixada a quem, um dia, escassas semanas depois de ele ter entrado no MNE, apanhei, ao telefone, em conversa com uma embaixada estrangeira em Lisboa, a dizer, com total irresponsabilidade, “Portugal pensa que…”

Há países que fazem isso muito bem. O Reino Unido, por exemplo. Vi fazerem isso agora, em tempo de Brexit, num dos seus momentos mais caóticos na sua presença internacional. A diplomacia britânica tem uma consistência e uma constância admiráveis, por mais abstrusa que seja a tarefa que lhe cumpra executar. E, ao contrário de outros países, nunca assisti, em conversas com colegas britânicos, à emissão de opiniões à margem da posição oficial do seu governo. E, acreditem, há muito que aprendi que este é o teste do algodão do profissionalismo.

Ontem, conversava com o antigo embaixador americano em Portugal, Alan Katz - que foi embaixador político, como são a maioria dos embaixadores americanos -, e perguntava-lhe: «Que ordens concretas recebeste, quando vieste para Lisboa?» Ele disse algo curiosíssimo, que eu não sabia: «As nossas ordens são-nos transmitidas pelo staff diplomático, que nos enquadra e que recebe as guidelines do Departamento de Estado. Temos uma linha geral, que representa os interesses americanos para cada país ou organização, mas, depois, é a máquina do Departamento de Estado que dá ao embaixador as guidelines concretas, conferindo desta forma uma coerência global da representação do Estado no país.»

Vamos ser francos: nós não temos, muitas vezes vezes, essa capacidade de coordenação, por forma a garantir uma coerência global de atitude, em todos os setores da máquina diplomática. E não assegurando essa coerência global, houve já pessoas que assumiram, e, alguns postos, atitudes menos responsáveis. Pode ter acontecido, aqui ou ali, um inquérito, mesmo um processo disciplinar, talvez uma transferência para outro local, mas há, entre nós, uma cultura demasiado permissiva e “compreensiva”, perante a incompetência ou a pontual irresponsabilidade. Digo isto com alguma pena: faz-nos falta uma cultura mais densa e exigente, que não ceda ao impressionismo e não se contente com resultados de qualidade média. É que, ao ceder ao facilitismo, estamos a ser injustos para com os outros, com a gente que se esforça, que trabalha muito e bem.

Um outro ponto que gostaria de referir é que a diplomacia dos dias de hoje não se reduz ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Em algumas áreas que não são questões de pura política externa, há um trabalho no exterior que releva já muito da política interna. O caso mais óbvio é a União Europeia, mas há outros setores multilaterais onde isso é por demais evidente. Por isso, pergunto-me se não devíamos estar mais abertos, na carreira diplomática, a trabalhar e a discutir, mais aprofundadamente, com os outros ministérios. Eu sei que conjugação interdepartamental, às vezes, é difícil. A cultura das Necessidades não está muito aberta a isso.

Usamos, no MNE, uma expressão para tratar os outros ministérios, que diz tudo: consideramo-los os “ministérios sectoriais”... É uma espécie de afirmação, reconheço que algo sobranceira, de uma função de soberania, que se entende situada no centro da ação do Estado. Há, no MNE, um orgulho em poder garantir que, nas rotações governamentais democráticas, quando chega um novo ministro, ele é servido por dossiês, com pontos de situação, sobre todos os assuntos relevantes, elaborados com todo o rigor e neutralidade política, permitindo ao novo titular entrar nas matérias com garantido conhecimento de causa. Ao que se dizia, mas não sei se é verdade, apenas os Ministérios da Defesa e das Finanças davam idênticas garantias, havendo, em geral, uma maior politização nos restantes “ministérios sectoriais”…

No nosso caso, tenho a certeza absoluta de que assim se continua a proceder. Em várias mudanças de ciclo a que assisti, e em algumas em que estive envolvido, o novo ministro tem sempre perante si, se quiser, assegurado pelo quadro diplomático e técnico em funções, uma expressão escrita e fiel daquilo que são os interesses portugueses que foram decantados ao longo desse tempo e um bom retrato das questões sobre as quais terá de decidir.

É muito bom, na política externa, não haver descontinuidade. Os diplomatas portugueses sabem que, por regra, as grandes linhas de política externa não se alteram. A imagem do país sai prestigiada deste facto.

Vou contar uma história que se passou comigo. Em 2011, precisamente no dia da posse do dr. Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro, eu tinha marcada uma ida à Comissão dos Negócios Estrangeiros do parlamento francês, para fazer uma exposição sobre a política externa portuguesa. Umas dias antes, tendo em conta que em Portugal tinha havido um “terramoto” de natureza político-partidária, o presidente da comissão telefonou-me perguntando se eu não queria adiar, para poder ter tempo para olhar para o novo programa do governo. Tive então o desplante, e o prazer, de lhe poder dizer: «Não, por mim, não quero adiar. Irei, nesse dia, explicar à sua Comissão as linhas essenciais da nossa política externa, porque tenho a certeza absoluta de que o que eu irei ali dizer será confirmado pelo novo governo. Nós não mudamos de política externa, no que são os seis eixos essenciais, quando mudamos de governo». Já aconteceu foi mudar-se o embaixador. Mas essa, embora rara, é outra história…

A continuidade virtuosa na ação externa tem, contudo, algumas nuances. O meu último posto foi como embaixador em Paris. Fui para lá em 2009, em tempos de business as usual, em termos da vida do nosso país e, por isso, também da sua ação externa. Nos dois primeiros anos, assim foi. Criaram- se novos consulados honorários, procurei assegurar mais leitorados para as universidades, mais professores para o ensino do português para os filhos dos portugueses, maior eficácia em toda a máquina do Estado que me competia supervisionar. Um dia, em 2011, rebentou a crise financeira. Tudo mudou. Houve a troika, as restrições orçamentais. Os apoios tiveram que ser reduzidos, os salários cortados, menos pessoal, menos professores, enfim, uma onda restritiva, com efeitos negativos no funcionamento e na eficácia dos serviços. O embaixador era o mesmo. Com a mesma cara com que, antes, dava conta de várias iniciativas positivas e otimistas, que exigiam recursos de toda a natureza, tive que passar a “vender” políticas de sinal oposto, restritivas, perante caras indignadas de compatriotas nossos, que achavam que estavam a ser “ofendidos” pelo Estado. Este, confesso, foi um tempo muito complexo, que marcou a última metade do meu mandato em Paris.

Nessa altura, fui também chamado a assegurar, cumulativamente, a chefia da representação na Unesco, passando a ter uma dupla tarefa que era muito difícil de assegurar. Mas era o serviço do Estado. E o Estado era o mesmo. Quem o titulava era um governo diferente, mas com legitimidade democrática indiscutível para decidir essas drásticas mudanças. A nós, podendo recomendar algumas decisões, apenas nos competia fazer, tão bem quanto possível … às vezes, coisas radicalmente contrárias às que, no passado, também nos tinham competido. É assim a condição diplomática. Cada um de nós tem de ser, como se dizia de Thomas More, A man for all seasons. 

A diplomacia portuguesa, ao longo dos tempos, tem dado mostras de ser um corpo de grande lealdade ao serviço público, com profissionalismo, patriotismo e elevado sentido de Estado. A diplomacia não tem, necessariamente, de ser vista como um exercício de cinismo, por poder ser vista a levar à prática políticas de sinal diverso. Somos executores de um exercício de responsabilidade e de representação de interesses nacionais, devendo acompanhar aquilo que os ciclos políticos e a vontade que eles legitimamente expressam. Fazê-lo bem, com sentido patriótico, é a vocação da nossa profissão. No que me toca, considero ter sido um imenso privilégio poder desempenhá-la durante quase quatro décadas.

(Conferência proferida na Sociedade Histórica de Independência de Portugal, em 24.6.21)

Pitonisa avisada

Há uns anos, numa apresentação na FLAD para políticos americanos, MRebelo de Sousa vaticinou que, depois das eleições legislativas, a direita portuguesa ia entrar num período de profunda crise. Achei então a previsão excessiva. Agora, depois do MEL e olhando hoje o “Observador”…

Uma vergonha!

Ano de eleições autárquicas é o período glorioso em que os jornais se enchem de suplementos em papel couché, onde alguns autarcas gastam o dinheiro dos contribuintes, que deveria ter sido aplicado em coisas úteis, a gabarem-se para serem reeleitos. Nenhum partido escapa a esta praga! Uma vergonha!

sexta-feira, junho 25, 2021

Comida a sério!


Manuel Gonçalves da Silva é um divulgador empenhado da cozinha tradicional portuguesa. As suas notas críticas de visita a restaurantes, num país que palmilha incansavelmente, são um instrumento precioso para quem gosta de comer “à nossa moda”.

Esta semana, a revista ‘Visão” merecia uma medalha de serviço público por trazer, sem acréscimo de preço, um livrinho em que Manuel Gonçalves da Silva nos seleciona 60 poisos culinários - de “amesendação”, como diria aquele que foi o grande “papa” deste “métier”, José Quitério.

Estamos perante uma preciosidade que vai passar a acompanhar-me, da mesma maneira que anoto sempre os excelentes textos do sucessor de Quitério no “Expresso”, Fortunato da Câmara, e de Fernando Melo, no “Evasões”, dois amigos em cujo juízo confio quase cegamente.

No “Leão da Estrela”, Laura Alves dizia a expressão que ficou famosa: “Ai a loiça!”. Ao olhar as páginas desta publicação, dei comigo a exclamar intimamente: “Ai o colesterol!” Mas só se vive uma vez! 

Menu

Hoje, no “Expresso”, há um artigo de um professor universitário, de seu apelido Robalo Cordeiro. Terá sido uma senhora da sua família que, há anos, ao apresentar-se a alguém, terá levado à reação do interlocutor: “Vossa Excelência é um verdadeiro menu!”. 

É uma historieta bem antiga, passada com alguém famoso, cujo nome esqueci. 

Ah! E espero que não venha por aqui alguém dizer que isto é ofensivo! Sei lá! É que, nos dias de hoje, até chamar parvo a um parvo passou a ser ultrage e deixou de ser um mero reconhecimento objetivo de facto.

quinta-feira, junho 24, 2021

“A Arte da Guerra”


Esta semana, António Freitas de Sousa e eu falamos da renovação do mandato de Guterres, dos cinco anos que decorreram desde o referendo que deu lugar ao Brexit e do encontro em Putin e Biden, em Genebra.

Pode ver aqui

A posição de Portugal

Vamos falar das coisas a sério, sem demagogias?

A Europa está indignada com o facto da Hungria ter aprovado legislação interna discriminatória, em matéria de orientação sexual. A Hungria de Orbán, com um desplante que só a garantia da impunidade permite, faz, há muitos anos, o que muito bem lhe apetece e, uma vez mais, demonstra que os mecanismos comunitários continuam a ser impotentes para travar uma deriva autoritária que coloca em causa as regras a que o seu país se comprometeu aquando aderiu à União. Veremos o que irá suceder neste caso, para além da retórica.

Não nos esqueçamos do comportamento indigno do Partido Popular Europeu ( PPE) - cujos partidos membros portugueses não me ocorrem agora - que, durante anos, pôs “paninhos quentes” nas atitudes atribiliárias de Orbán, que a ele pertenceu com a bênção permanente de quem põe e dispõe no grupo, a CDU de Merkel. Órbán, até por lá tem, em Budapeste, como assessor, um antigo secretário-geral do PPE, aliás um cidadão português que por cá ocupou funções num governo que também optei por esquecer. Foi curiosamente essa mesma pessoa que, a solicitação húngara, dirigiu a campanha da búlgara Kristalina Giorgieva, contra a candidatura de António Guterres a SG da ONU, em 2016. Também não consigo recordar o nome da personagem. Hoje, a minha memória está terrível…

Um grupo de países da União subscreveu, entretanto, uma declaração em que condena a atitude d Hungria.

Portugal, presidência em exercício da União até ao final do mês, declarou que estava em perfeito acordo com o teor dessa declaração - e esse é o aspeto político mais importante a ter em conta - mas que a não subscrevia, porquanto, enquanto presidência, teria de manter uma posição de “honest broker”, dado que mais de metade dos Estados membros também não surgiram a subscrever o texto.

Repare-se que não é claro se os Estados que não subscreveram a declaração se colocam ao lado da Hungria (o que é altamente improvável, para a esmagadora maioria) ou se consideram a forma ou a oportunidade do texto menos consentânea com a maneira como entendem que o tema deve ser tratado (o que é a hipótese mais provável). E isto tem de ser ponderado.

Achei perfeitamente adequada a atitude tomada pelo governo português.

Uma declaração desta natureza não é um documento com qualquer estatuto no ordenamento jurídico da União. É uma opinião, uma afirmação de posição, aliás muito equilibrada e correta. Estou seguro que o governo português, não tem a menor objeção ao texto, como já o afirmou. Mas posso perfeitamente perceber que, enquanto presidência, não se queira associar (mas apoie politicamente, o que, repito, é o mais importante) a um documento que divide a União ao meio. Repito, trata-se de uma tomada de posição de alguns Estados. Não subscrevê-la não tem o caráter de uma “abstenção” perante uma proposta de decisão em Conselho. Aí, seria imperdoável se Portugal não tomasse posição. E tenho a certeza que, se se chegar a esse ponto, a tomará sem hesitações.

Contrariamente ao que aconteceu em 2000, quando a presidência portuguesa titulou, em nome dos “catorze” (todos os Estados membros, menos a Áustria), uma condenação à entrada de um partido de extrema-direita no governo austríaco), desta vez não houve “vinte e seis” (todos menos a Hungria) a reagir. Nessa altura, era a unanimidade menos o visado. Hoje é muito diferente. Em 2000, eu estava no centro desse “furacão” e fui eu quem foi ao Parlamento Europeu defender a posição dos “catorze”.

Esta polémica interna sobre a atitude do governo português morrerá amanhã. Seria muito mais cómodo para mim deixar passar este assunto em silêncio. Mas não deixo. Porque Lisboa teve razão na forma como procedeu. E eu não me importo rigorosamente nada de, quando acho que uma posição está correta, embora me possa pôr contra a indignação adjetivada e demagógica de uma maioria ruidosa nas redes sociais, de dizer o que penso. E o que penso é isto.

E agora, quem quiser, faça favor: “fogo à peça”.

quarta-feira, junho 23, 2021

Manequim


Saí do edifício do FBI, em Washington, e comecei a caminhar, naquela que me pareceu ser a direção de onde tinha vindo. (Mas que diabo foi o homem fazer ao FBI?). Eu não tinha ido “bem” ao FBI. (Mau, mestre!) Tinha ido visitar o museu do FBI. (Ah!). Era o mês de dezembro de 1972. (Há quase 50 anos? Estava a fazer o quê, por ali?)

Tinha ido aos Estados Unidos incluído numa excursão do Auto Clube Médico Português. Tinha havido uns lugares por preencher e a agência de viagens tinha-me sugerido que aproveitasse o bom preço. Eram as minhas primeiras férias, ao fim de um ano de trabalho como bancário, prestes a ir para a tropa. A minha geração era mais dada a viagens pela Europa, mas, por essa altura, eu já tinha visitado vários países do continente algumas vezes, duas das quais à boleia. E, pronto!, decidi ir aos States - Nova Iorque, Washington e cataratas do Niagara. Uma das torres gémeas de Manhattan ainda estava a ser construída. Mal eu sabia que ia estar por lá no dia em que ambas iriam ser destruídas.

Voltemos a Washington. A cidade tem uma geografia fácil e, talvez fiado nisso, à saída do FBI, caminhei despreocupadamente por várias ruas. De repente, olhei para uma montra e reparei que todos os manequins eram negros. Nunca tinha visto um manequim negro, em louça ou madeira. Desde a minha infância, as mulheres representadas por esses porta-vestidos eram brancas, com uns cabelos penteados “à antiga”.

Achei curioso e pensei, cá para mim: deve ser para cativarem a clientela feminina negra. (Eu sabia que a capital federal tinha uma maioria de população negra). E continuei a andar. Talvez alertado pela montra, olhei com mais atenção à minha volta e constatei que eu era o único branco no horizonte. Algumas pessoas olhavam para mim, pareceu-me que com alguma curiosidade. As montras, com os mesmos modelos de manequins repetiam-se, sempre e só de mulheres.

Nunca tendo, até então, ido a África, com o cenário das ruas de cidades como Paris ou Londres então ainda muito distantes de terem a diversidade de que hoje as habita, aquele ambiente era uma experiência única para mim. Em Portugal, a descolonização, com a subsequente imigração oriunda das antigas colónias, só iria ter lugar alguns anos depois, pelo que o panorama humano do quotidiano era dominado pela população branca, como as imagens da época bem mostram.

Nessa manhã, em Washington, eu tinha entrado num bairro de população negra. Não me apercebi que a minha presença criasse a menor reação. (Anos mais tarde, no Harlem profundo, em Nova Iorque, numa área onde fora parar por alguma imprudência, o ambiente não iria ser tão “neutro” e seria mesmo algo hostil). Apenas detetei uns sorrisos divertidos, até porque devia estar a afivelar uma cara de algum embaraço. E, como mandam as regras da orientação, regressei por onde tinha caminhado, passando de novo ao lado do FBI. John Edgar Hoover já lá não estava. Morrera no mês de maio anterior.

Por que razão trago aqui este episódio, nestes tempos em que falar de temas raciais parece cada vez mais delicado? Por uma razão simples. Na passada semana, em Viena, fui ver as montras do Dorotheum, a fantástica casa de leilões que, nem que fosse para regalo dos olhos, ia muitas vezes visitar, quando vivi na cidade, entre 2002 e 2005. E, numa das vitrines, pertencente a um lote que irá à liça dentro de dias, estava um manequim antigo, com a cara de uma mulher negra. Ao olhar para a peça, regressei, por instantes, meio século atrás, a Washington.

Mas isto é tema para um post? Sei lá! Para mim foi.

terça-feira, junho 22, 2021

Uma vergonha consentida


Por que será que, tanto quanto eu saiba, nenhum partido político português coloca no seu programa uma medida legislativa que ponha cobro ao escândalo que é ver esta fialhada a desfeiar a arquitetura das nossas cidades?

Às empresas de telecomunicações, que nos levam os olhos da cara pelos seus serviços, em óbvio cambão de preços, não se pode exigir que montem tubagens e caixas, metálicas ou plásticas, que possam ser pintadas com o tom dos prédios, para disfarçar o material? 

As cidades portuguesas fazem lembrar, nos dias de hoje, subúrbios de localidades do “terceiro mundo”.

segunda-feira, junho 21, 2021

Yolanda Brígida

Você era uma criança. Falava à televisão, ao lado dos seus pais, emigrados na Suíça. Perguntaram-lhe o que gostava mais de ver nos noticiários. Com o olhar vivo e inocente, disse: os desastres! Essa sua resposta ficou-me para sempre.

Tempos mais tarde, curso tirado, estagiária da notícia, salário de recibo verde, telefonou-me para Brasília a inquirir do nome de um português envolvido num acidente. Expliquei que a ética da minha profissão não me autorizava a quebrar o sigilo. Não esqueci a sua reação: "A ética?! Deixe-se disso! Vá! Diga-me lá! É que se eu não consigo essa informação, o meu chefe põe-me na rua!"

Um dia, num jornal com mais de cem anos, na "silly season", li uma peça sua sobre um senhor chamado Eça de Queirós. Explicava, pedagógica, que era "um escritor realista português do século XIX", do qual citava obras a esmo. Fui ver: o texto era da Wikipedia. Fazia bem em apoiar-se em fontes prestigiadas, nessa Britannica da geração dos "shots".

Veja-a agora muito por aí, Yolanda Brígida ou Cátia Vanessa ou qualquer outra coisa assim que a rica imaginação dos seus pais tenha gerado. De "corneto" na mão, nos "travellings" na peugada do advogado desconcertante, à coca da casa dos "pulseirados", a perguntar como se sente à mãe que perdeu o filho no mar alto, a entrevistar o primo da vizinha de um tipo que conheceu o criminoso.

Vi um dia a sua glória. Uma baliza tinha caído sobre a cabeça de uma criança. O dia era “seco” em eventos. Os três telejornais abriram com a notícia, era o "seu" desastre. E lá estava você em campo, baliza ao fundo, preparada para a partida. Ao longe, as "repórteres" dos outros canais, seus heterónimos, filmavam-se comicamente entre si, debitando “buchas” para as respetivas câmaras, à espera do requestado edil local, que você entrevistava e que se prestava ao papel de alterne entre pantalhas, a todas anunciando o clássico "rigoroso inquérito". Um "must"!

É que onde eu gosto verdadeiramente de a ver é nos diretos, à porta de um tribunal fechado há horas, na soleira de uma urgência com uma velhinha a revelar o cancelamento da consulta numa greve, no rescaldo de um incêndio a recolher a clássica declaração sobre a "mão criminosa” no sinistro. Adoro as redundâncias em que ecoa, quase palavra por palavra, o que o “pivot” acabou de dizer, não vá alguém ter entrado na sala só nesse instante. Exulto quando se dirige, impante, à vedeta em estúdio, que mal a conhece, com um íntimo: "Daqui é tudo, Judite!'.

Há dias, vi-a numa de excelência. António Costa tinha acabado de falar sobre o seu "sermão aos chineses", que em ano eleitoral substitui o "sermão aos peixes", do outro António, mas Vieira. Ele saía já de cena, tenso, e você, marota, ética Cofina, reguila qb, sem esperar resposta, só para gáudio da malta lá na redação, atirou-lhe à cara: "O país está melhor, António Costa?". Eu, no caso dele, sabia o que lhe tinha atirado à cara, a si.

(Deu-me hoje para lembrar aqui o artigo que publiquei no "Diário Económico" em 5.3.15)

Diários da catástrofe

Olhem com atenção, as primeiras páginas dos nossos jornais. Se tiverem uma lupa, procurem encontrar uma notícia positiva, de cá ou do estrangeiro, de onde ressalte algo sem o menor tom de crise ou de polémica. Se conseguirem, leiam o texto e contem as palavras até surgir a adversativa “mas” ou equivalente. É um exercício divertido.

domingo, junho 20, 2021

O jogo e a vida. Uma história


Foi há quase 43 anos. Chegámos a Jerusalém já um pouco tarde. A delegação portuguesa, naquele dia 25 de junho de 1978 (já perceberão porque tenho a data precisa), tinha ficado retida, por mais de uma hora, no aeroporto Ben Gurion, em Tel-Aviv, depois de ter vindo no voo de Roma. E tudo aquilo parecia ser por minha culpa. 

O meu passaporte diplomático tinha carimbos de duas deslocações à Líbia, nos dois anos anteriores. As autoridades da fronteira “embirraram” com o assunto e quiseram saber o que me tinha levado a duas visitas, cada uma delas de mais de uma semana, àquele Estado que era seu arqui-inimigo. Lá tive de explicar, em conversas difíceis com gente das polícias (imagino que a Mossad tivesse alguém por ali) que, sendo o meu pelouro, no MNE, as relações económicas com os países do Magreb e do Mashrek (nome à época muito em voga, por importação da linguagem do Quai d’Orsay, para designar o Médio Oriente), era mais do que natural que por lá tivesse alguns vistos de países árabes antes visitados (aliás, não eram muitos). Era mais fácil de dizer do que ver compreendido.

A nossa delegação, chefiada pelo ministro da Agricultura, Luís Saias, que contava com um diplomata enviado pelo MNE para lhe resolver os problemas, acabava por ver complicada a sua chegada a Israel, logo “por causa” dessa pessoa… 

Ultrapassado o imbróglio, imagino que comigo sob “observação” dos acompanhantes israelitas nos dias seguintes, lá fomos para Jerusalém, num autocarro. Ainda não havia, nesse tempo, aquelas “vans” de vidros fumados que hoje se usam muito, por ali e por quase todo o lado, por razões de segurança.

Chegámos ao hotel com parte do nosso grupo furiosa (comigo, imagino) por ir perder a transmissão da final do campeonato do mundo de futebol, entre a Holanda e a Argentina. De facto, quando entrámos e olhámos o aparelho de televisão (ainda não havia telões e era a preto e branco), sobre a qual se debruçava uma imensidão de gente, o jogo estava nos minutos finais.

O ambiente que ali se vivia foi uma lição política. Toda a gente, entre os quais alguns judeus americanos que nada deviam perceber de “soccer” (que nos dias seguinte vi trocarem no balcão ‘Israel Bonds’ por ‘cash’, como se fossem ‘traveller checks’), puxava, mas já sem esperanças, pela seleção holandesa, que estava a ser derrotada. 

Na delegação portuguesa, havia dois técnicos, do nosso Ministério da Agricultura, que logo manifestaram, em voz alta, o seu contentamento com a vitória iminente da Argentina. Toda a sala olhou para eles, com um ar entre a acidez e o desprezo. A Holanda (já sei, hoje diz-se Países Baixos!) era uma pátria judaica; na Argentina haviam-se refugiado muitos nazis. A História, em Israel, fazia e faz parte do presente.

A Argentina ganhou, nesse fim de tarde, por 3-1. Por essa época, a ditadura militar argentina hiperbolizava os valores nacionais e sabe-se que cavalgou em seu favor a vitória no futebol. Tal como, menos de quatro anos depois, iria tentar fazer com a invasão militar das ilhas a que chamam Malvinas e que os britânicos, que aí reinam, designam por Falkland. Os ditadores militares de Buenos Aires não ganharam esse “jogo” e, pelo contrário, aí terão começado a perder o seu criminoso poder.

Ontem, a propósito do facto de eu ter escrito, num post, que os resultados de futebol, não me sendo indiferentes, não me mobilizavam emocionalmente por aí além, um leitor lembrou que o escritor Jorge Luís Borges terá tido uma reação, dias depois dessa vitória, num sentido que nada terá agradado ao regime dos generais. Fui à procura do que ele disse e descobri: “Parece-me muito estranho ouvir das pessoas frases como ‘vencemos a Holanda!’. Não conquistamos Roterdão nem Amsterdão, nem nada que fosse património dos holandeses. Simplesmente, 11 jogadores, um dos quais foi trazido expressamente da Espanha, ganharam a outros 11. Que importância pode isso ter?”

Borges não era cego, era um sábio.

A primeira impressão


Na constelação dos políticos americanos, Joe Biden nunca foi uma estrela. Os oito anos que passou na sombra de Barack Obama confirmaram dele a imagem de “nice guy” que tinha ganho no muito tempo passado no Senado, onde a sua afamada capacidade de diálogo com o lado republicano acabaria, no entanto, por não ser suficiente para evitar, nos últimos anos de mandato, a paralisia legislativa que veio a ofuscar uma das presidências mais promissoras da história contemporânea da América.

No plano externo, onde, por vezes, o papel dos vice-presidentes surge com algum relevo, Hillary Clinton e, depois, John Kerry acabaram por não lhe dar espaço para brilhar, embora a política externa fosse um domínio de ação onde alguma da sua experiência parlamentar anterior lhe tinha dado prestígio.

Poucos candidatos à presidência dos Estados Unidos, em tempos recentes, terão sido escolhidos com menor entusiasmo do que Joe Biden. Tido por um “gaffeur”, nada entusiasmante no discurso, a sua idade não era um fator, à partida, muito apelativo para um eleitorado democrático onde sobressaía uma agenda com laivos radicais. Embora Bernie Sanders não fosse muito mais novo, a sua postura enérgica disfarçava a idade.

Tudo indica que terá sido o sentimento tático de que, para o objetivo principal que era afastar Trump, a seleção de um candidato com imagem mais moderada e “presidencial”, com a vantagem potencial de poder colher simpatias num eleitorado conservador centrista, cansado dos exageros de Trump, que fez pender a balança para Biden. E os democratas estavam certos na sua aposta, como se viu. E logo houve quem dissesse que Biden era um presidente “a prazo”, que Kamala Harris, a sua vice-presidente, seria a verdadeira estrela da companhia, já na calha para a sucessão.

Biden, como se costuma dizer, “saiu melhor do que a encomenda”. Desde logo, montou uma equipa que surgiu com uma imagem muito profissional, com poucas vedetas mas com o que parece ser uma grande solidez. Não fez muitas concessões à ala mais esquerda na escolha dos nomes, mas mostrou uma abertura à diversidade que surpreendeu. Porém, mais importante do que isso, colocou no terreno uma agenda legislativa ousada e progressista, que deu já frutos no estímulo à economia, com impactos fortes na promoção do emprego. Embora com hesitações, em áreas muito sensíveis, como as questões da imigração, onde alguns gestos iniciais de generosidade foram sucedidos por recuos, o saldo das medidas propostas não deixa de ser muito interessante, embora o seu destino legislativo último continue incerto, atentas as dificuldades com que se defronta no Senado.

Mas é no plano externo que Biden hoje brilha. Foi firme face à China e Rússia, como todo o eleitorado americano quer, sossegou os aliados e parceiros, exaustos de Trump, face aos quais demonstra uma boa vontade não isenta de firmeza e vontade de liderança.

As expetativas face a Biden não eram elevadas. Partindo desse patamar, ele percebeu que não teria uma segunda oportunidade para criar uma primeira impressão. E essa está a ser excelente.

sábado, junho 19, 2021

Nós e o Cohen

Portugal tentou cantar Leonard Cohen. Ontem, Guterres ganhou na ONU. Hoje, queríamos ganhar à Alemanha. Lembram-se? “First we take Manhattan, then we take Berlin”. Era demasiado bom.

Confissão inconveniente

Posso confessar um segredo? Fico satisfeito quando a seleção (ou o meu clube) ganha. Desagrada-me ver a seleção (ou o meu clube) perder. Mas nem entro em euforia no primeiro caso, nem fico amargurado ou perco um minuto de sono no segundo. Isto é apenas um jogo, não é a vida. (O meu pedido de desculpas a quem não pensa assim).

As origens do fado


Não há nada de que um português goste mais do que dramatizar ao extremo os seus infortúnios. Ou como é que julgam que nasceu o fado?

Guterres

Há cinco anos, quando António Guterres tomou posse do cargo de secretário-geral da ONU, senti um imenso orgulho pela circunstância de alguém com quem tinha trabalhado de perto, cujas excecionais qualidades havia tido o ensejo de apreciar e admirar, ter ascendido à mais relevante posição no quadro multilateral mundial.

Fui um entusiasta dessa candidatura, por três básicas razões. 

A primeira é que acho que, salvo alguns momentos menos felizes, o Portugal democrático, nos seus diversos ciclos políticos, tem sabido ser fiel aos grandes princípios e valores que fazem parte do acervo civilizacional coletivo dos mundos a que o país decidiu pertencer, que a diplomacia permitida pela Revolução de Abril ajudou a construir. A chegada de um cidadão português àquele lugar de topo no sistema de regulação internacional, por evidente mérito e não por combinas de lóbis e jogos de poder, representava uma prestigiante consagração para Portugal e para a sua diplomacia.

A segunda razão tinha a ver com o próprio António Guterres. A política é uma atividade dura e, muitas vezes, injusta para os seus atores. Fiz parte, com grande orgulho, dos dois governos chefiados por António Guterres. No termo desse ciclo, dei-me conta de que a retribuição, no imaginário nacional, face ao esforço feito por António Guterres para contribuir para uma transformação serena e não confrontacional do país, havia sido escassa. Guterres provou depois, no excecional trabalho feito na área dos refugiados, a consistência de um pensamento solidário e de um elevado sentido de responsabilidade moral. A sua escolha, transparente e indiscutível, para as Nações Unidas, foi um corolário de justiça.

Finalmente, conhecendo um pouco das Nações Unidas, por lá ter trabalhado e por acompanhar com alguma atenção a sua evolução, mas igualmente por ser um “militante” do multilateralismo, achei que uma figura como António Guterres representava, à perfeição, aquilo de que a organização necessitava, em especial no tocante à sua adaptação às agendas de modernidade - menos retóricas e mais práticas - que lhe permitissem ganhar legitimidade e espaço de mobilização no seio das opiniões públicas.

A estas três razões positivas, somava-se uma preocupação: o risco de que uma evolução negativa dentro do país-chave para os sucessos ou insucessos da ONU, os Estados Unidos, pudesse vir fazer correr à organização estaria melhor protegido com alguém que lhe soubesse preservar os princípios e servisse de escudo ético a qualquer instrumentalização ou desvirtuamento. Isso aconteceu, com Trump. Guterres acabou por ser o líder da “resistência”.

Agora, o sentido aclamatório que acolheu a reeleição de Guterres prova o acerto da anterior decisão. Os sinais que chegam de Washington a Nova Iorque são positivos, embora a experiência nos deva tornar prudentes quanto a um excessivo otimismo. Se Biden vier a ser o que parece ser, com Guterres na chefia da ONU, não obstante um tempo turbulento que se aguarda no cenário confrontacional global, o mundo fica muito mais seguro.

sexta-feira, junho 18, 2021

A sorte de Biden


Quando se observa a conflitualidade que atravessa o Congresso americano, surgem dúvidas sobre se Joe Biden conseguirá concretizar a ambiciosa agenda legislativa que anunciou. Os dias que se vivem no Senado, bem como a linguagem crispada que teima em não abandonar o debate político, mostram a persistência de um entrincheiramento pronunciado, que quase não deu um “estado de graça” legislativo mínimo ao novo presidente.

No ambiente político que rodeiam Biden, destacam-se dois outros elementos, ligados entre si.

Desde logo, nota-se que o episódio da invasão do Capitólio, por muito traumático que possa ter sido para o campo republicano, não funcionou como um fator para a respetiva moderação, no sentido de um maior entendimento entre os campos adversários. Trump pagou, aliás, um preço surpreendentemente baixo, em termos de responsabilidade, por um incidente de que, à evidência, foi o principal incitador. O facto de ter conseguido eximir-se ao “impeachment” não deixa, neste contexto, de ter um forte significado.

Ficou desta forma demonstrado que não foi por acaso que Donald Trump obteve cerca de 70 milhões de votos, numas eleições cujos resultados, contra todas as evidências, ele conseguiu rodear de um manto de suspeições que, como sondagens posteriores revelam, contamina ainda, de forma continuada, um setor importante dos seus fiéis. A “verdade” de Trump permanece viva na crença de muita da sua gente. E é óbvio que, dentro do atual Congresso, bem como em todos os setores republicanos que se preparam para o sufrágio intercalar de 2022 (que, recordo, elegerá de novo todos os lugares na Câmara dos Representantes e um terço do Senado, como acontece a cada dois anos), este estado de espírito dos votantes trumpistas não deixará de ser considerado nas contas politicas das campanhas.

Quero com isto dizer que Joe Biden, por muito boa vontade que possa ter vindo a conquistar, com o seu estilo dialogante, disputa uma verdadeira corrida contra o tempo - e isto não é nenhuma ironia sobre a sua idade, circunstância que, no entanto, também não pode ser esquecida.

Com um Congresso hostil a medidas que, a serem aprovadas e a terem sucesso prático, fariam disparar a sua popularidade, o novo presidente tem ainda a difícil tarefa de ter de conciliar coisas que podem surgir como contraditórias. Por um lado, Biden tem necessidade de ser visto como protetor dos interesses nacionais na ordem externa, no que compete com um nacionalismo basicamente eficaz de Trump. Por outro, tem o imperativo de dar resposta a uma agenda progressista que, em larga medida, o ajudou a chegar à Casa Branca e perante a qual todos muitos democratas no poder serão julgados em 2022. Como se viu na sensível questão da imigração, nem sempre estas duas vertentes se conjugam com facilidade.

Uma coisa a história americana já nos ensinou: os presidentes dos Estados Unidos, quase sempre, ganham ou perdem o país essencialmente pelo estado da economia, pela confiança criada em termos de bem-estar, pelos índices de Wall Street e pelas taxas de desemprego.

Se a economia americana, nestes primeiros dois anos da nova presidência, conseguir dar um salto contrastante com o tempo deprimido do auge da pandemia, e se isso for visto como derivado das iniciativas de Biden, as hipóteses dos candidatos que o apoiam aumentam exponencialmente, com consequências nas eleições intercalares de 2022 e no Congresso que delas sairá. E isso reduziria as hipóteses de retorno a uma nova “onda Trump”, protagonizada pelo próprio ou por quem lhe assuma a herança.

Mas a história também demonstra, agora em prejuízo de Biden, que este tipo de eleições a meio do mandato raramente beneficiam o presidente em exercício.

Biden pode talvez pensar que, tendo sido um presidente que era tido por improvável há meia dúzia de anos, pode também vir a ser bafejado pela sorte e conseguir sustentar o vento que o levou à Casa Branca.

A minha neutralidade como comentador acaba aqui: gostava que ele tivesse essa sorte.

Encostado à parede


A posteridade singela de uma parede, num belo palácio de Viena, rodeado de amigos, acaba por ser um destino de memória bem simpático.

quinta-feira, junho 17, 2021

“A Arte da Guerra”


No programa “A Arte da Guerra” desta semana, falo com o jornalista António Freitas de Sousa sobre o papel de Joe Biden na reunião do G7, sobre o resultado das eleições presidenciais no Perú e fazemos uma antevisão das próximas eleições presidenciais no Irão.

Pode ver aqui.

quarta-feira, junho 16, 2021

Viena


Passaram quase duas décadas sobre o dia em que a vida fez com que eu tivesse vindo viver para Viena, por mais de dois anos. Disse “vindo” e não “ido”, porque aterrei há poucas horas em Viena, para uma tarefa diplomática pontual, para a qual fui convidado e que aceitei com muito gosto. E também escrevi que foi a “vida” que então me enviou para Viena porque, na realidade, não foi a minha vontade que determinou esse destino.

Mário Soares, no prefácio que teve a amizade de fazer para um livro que eu decidi publicar nesse ano, escreveu que “à quelque chose malheur est bon”. Na altura, devo dizer que não encontrei muitas razões para concordar com essa leitura, que tinha por excessivamente benévola, do conceito de que se pode sempre tirar algum partido de um azar, neste caso na forma de uma patifaria, que nos atinge. Mas ele, nisso como em muitas outras coisas, tinha razão.

A experiência que ganhei nos anos em que chefiei a representação portuguesa junto da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) foi-me extremamente útil para aprofundar a compreensão, não apenas do mundo pós-soviético, mas igualmente dos países dos Balcãs, que com ele tinha uma ligação óbvia.

Foi na OSCE que entendi melhor os traumas que os tempos da Guerra Fria tinham deixado, por exemplo, nos países bálticos e na Polónia. Foi aí que pressenti, de forma clara, aquilo em que a questão da Ucrânia poderia vir a converter-se. Percebi então os que significavam, estrategicamente, os “conflitos congelados”, bem como o destino, frequentemente trágico, de algumas das muito diversas realidades da Ásia Central e dos Cáucasos.

Só visitando pessoalmente todos esses países - e eu fi-lo, quase por completo, com cuidado e atenção -, falando com as pessoas, se apreendem realidades que nenhum estudo livresco no sofá ou num gabinete nos pode ensinar.

Foi também nos belos corredores do Hofburg, o palácio onde “mora” a OSCE, que pude detetar o progressivo fosso que se ia criando entre os países “a leste de Viena”, como se diz no “argot” da organização, e aqueles que se situam do “lado de cá”, geográfica e politicamente. Esse fosso é hoje quase uma trincheira, faltando-nos saber como é que, hoje, Putin e Biden se comportaram nessa “linha da frente”.

Fui para Viena, ido de Nova Iorque, precisamente um ano depois do 11 de setembro de 2001, depois de ver as torres gémeas do World Trade Center a cair na cidade onde eu vivia, a escassos quilómetros da minha casa.

Esses foram os tempos da luta comum contra o extremismo islâmico, uma “guerra” da qual ninguém com um mínimo de decência podia fugir. 

Mas esse foi também o período em que o revanchismo americano, depois de um ataque com legitimidade incontestável ao Afeganistão, aproveitou para gizar a aventura insana e trágica da invasão do Iraque, com Portugal a não ter então, nas Lajes, a sua hora mais brilhante e digna. “Et j’en passe”…

Foi também uma época em que a nova Rússia deu mostras de que a adesão ao paradigma democrático era apenas uma flor de retórica, em que o combate ao terrorismo foi interpretado por Moscovo como “carta branca” para ondas de repressão, como se viu na Chechénia e não só.

Mas deixemos a política.

Viena é uma bela cidade - e volto neste texto à vida que por aqui tive. Viena ajudou-me a perceber que saber dar a volta às coisas, ainda que à partida menos boas, que a vida inesperadamente nos traz, é uma arte difícil, mas possível.

terça-feira, junho 15, 2021

Francisco Mantero


Hoje, num almoço, alguém anunciou: “Morreu o Francisco Mantero!” Dei um salto na cadeira! Não terá sido a pandemia que o matou mas havia sido a pandemia que, há mais de um ano, tinha suspendido a aperiódica tertúlia almoçante “dos Franciscos” que ele, o Francisco Falcão Machado e eu mantínhamos, por sua iniciativa, há já alguns anos. 

Não vou por aqui desenvolver o currículo do Francisco Mantero, que o Google nos traz, com pormenor. Conheci-o melhor nos idos de 80, quando os dois trabalhámos, por alguns anos, na área da “cooperação para o desenvolvimento” - um tema que sempre muito nos mobilizou. Antes, tinhamo-nos já cruzado em Angola, num jantar na residência do António Pinto da França. 

O Francisco era um homem que dedicou grande parte da sua vida às questões africanas, em especial no setor empresarial. Ia muito a Paris, onde cooperava com a OCDE e onde nos vimos por mais de uma vez. Culto e muito bem preparado intelectualmente, com opiniões fortes, era um magnífico conversador, com histórias deliciosas, fruto de uma vida muito interessante. Quer o Francisco Falcão Machado quer eu apreciávamos, em especial, a leitura crítica que o Francisco Mantero fazia de certas figuras da nossa carreira diplomática, área que ele, por artes que nunca entendi, conhecia ao detalhe. 

Tenho muita pena de ter perdido a minha já longa amizade com o Francisco Mantero, a cuja família deixo os meus sentimentos. 

Agora, desafio o Francisco Falcão Machado para que nos encontremos num almoço, a dois, num tributo póstumo ao nosso amigo homónimo. O mundo está perigoso! 

Boas e más notícias

Não é todos os dias que recebemos boas notícias, como esta, sobre o afastamento das chances de gente insalubre. Mas, ao fim do dia, ninguém ...