sábado, abril 26, 2025

Sobre o papa


Nada me liga às crenças religiosas, salvo um batismo por que não fui responsável (e de onde, aliás, rezam as crónicas familiares, saí com uma pneumonia de que me salvei à justa). Mas, naturalmente, sou tributário de um "template" moral marcado pelos princípios católicos, como a esmagadora maioria dos portugueses. Grande parte das pessoas que me são próximas definem-se (mais ou menos) como católicas, respeito as suas convicções e reconheço, porque é uma evidência, o importante papel institucional da igreja católica na sociedade portuguesa. Aliás, muitas das melhores pessoas que conheço são católicas. No entanto, isso não me impede de continuar a olhar, com escandalizada estupefação, para a circunstância da igreja católica acolher alegremente, sem os estigmatizar e denunciar, como me pareceria natural, quantos dos seus ditos "fiéis" que, no seu dia-a-dia, se comportam à persistente revelia dos seus princípios. E há imensos! A igreja pode, com isso, continuar a assegurar paletes de prosélitos, mas desqualifica-se como referente ético. Mas, na realidade, nada tenho a ver com isso, não são eu quem gere essas regras, sou e serei sempre "de outra freguesia"!

Aquando da eleição do papa que agora nos deixa, dei por aqui nota de que o assunto me era quase indiferente. Na realidade, era e não era. Não gostei de Ratzinger, embora apreciasse a profundidade do seu pensamento, em especial em temáticas europeias, e nunca tive a mais leve simpatia por Karol Wojtyla, não podendo nunca esquecer a sua imensa hipocrisia no caso de Timor-Leste. Aliás, a diplomacia "florentina" do Vaticano, que parece fascinar muitos, incluindo no nosso MNE, apenas me interessa como objeto de estudo. Sempre a considerei eivada de grande oportunismo e de um sentido complacente que releva basicamente de uma fria "realpolitik", que tem a maximização e preservação da influência como objetivo central. Faço parte de quantos têm suficiente memória para ainda recordar o cardeal Cerejeira, o destino do bispo do Porto e a medalha do Vaticano dada a Silva Pais pelo papa Montini. (Já sei! O mesmo que recebeu os líderes independentistas das colónias portuguesas).

Quero com isto dizer que a escolha do atual papa me surpreendeu. Um católico dirá que o conclave que o selecionou foi inspirado, como é de regra, por "pressões" exteriores à Roma terrena. Tudo bem. Mas, na leitura menos espiritual que é a minha, gostava de sublinhar, ao ver e ouvir o líder da religião católica que hoje foi a enterrar, a profunda (e muito sincera) admiração que sinto pela sabedoria que, muitas vezes, tem prevalecido na seleção das figuras dirigentes do Vaticano. 

A igreja católica, pense-se dela o que se pensar, é uma máquina institucional inteligente e sábia. A escolha do papa Francisco, uma figura humana notável, com uma coragem e uma sensibilidade muito raras para interpretar o sentimento de muitos, foi um ato de grande inteligência estratégica. Às vezes, a sobrevivência da instituição tem levado a igreja católica a compromissos que eu quase ousaria dizer "com o diabo". Mas uma outra face desse mesmo instinto obriga-a a procurar a sintonia com a maioria dos crentes, o que conduz a escolhas tão interessantes como a que trouxe à ribalta o papa Francisco. Para um não crente, apetece dizer: "Chapeau!" Ou deveria dizer "Mitra"?

Ouça aqui fica uma reflexão complementar.

9 comentários:

ematejoca disse...

O diálogo histórico entre Joseph Ratzinger e Jürgen Habermas

Esses dois interlocutores prometem uma constelação de diálogo como dificilmente se pode imaginar mais emocionante para reflexões fundamentais sobre a existência humana. Ambos estão entre os maiores pensadores do presente e representam todo um mundo intelectual: o clérigo Joseph Ratzinger em conversa com provavelmente o mais importante filósofo contemporâneo Jürgen Habermas sobre os fundamentos de uma ordem social liberal e pacífica. Como evitar que a modernização descarrile? A religião pode estabelecer limites para a razão - e vice-versa?

O tema do diálogo é "Fundamentos morais pré-políticos de um estado livre". Tratava-se, portanto, da base de uma sociedade digna. "O que mantém o mundo unido", disse o cardeal Ratzinger sobre seu texto. Em tal reflexão fundamental, suposições básicas, axiomas, justificativas finais religiosas ou seculares de sua própria atitude tornam-se visíveis porque são colocados à prova da argumentação pública. Para Jürgen Habermas, esta é a razão prática de um pensamento pós-metafísico e secular, para Joseph Ratzinger, a realidade do homem como criatura de seu criador que precede toda fixação comunitária racional.

A documentação da famosa conversa entre Jürgen Habermas e Joseph Ratzinger no dia 19. Janeiro de 2004 na Academia Católica da Baviera encontrou um enorme interesse, que se manteve até hoje. Sempre novas edições e muitos pedidos de tradução, principalmente para línguas não europeias, testemunham isso. As observações de 2004 não perderam nada de sua explosividade: o tópico permanece altamente atual.

Com um prefácio de Florian Schuller

Eu, católica não crente, peço desculpa por este meu comentário.
A minha admiração por Joseph Ratzinger não é como Papa, mas como intelectual.

jj.amarante disse...

As suas alegadas "pressões" exteriores à Roma terrena fizeram-me lembrar um comentário do cardeal Ratzinger em 1997 à influência do Espírito Santo na escolha do Conclave. Abreviando a resposta, disse que o Espírito Santo ajuda mas deixa muita liberdade aos cardeais, finalizando assim: "Evidentemente existem numerosos exemplos de Papas que o Espírito Santo nunca teria escolhido".

Carlos Antunes disse...

Admirador de Franciscus
Para mim que há muito sou “agnóstico” quando analiso o pontificado dos Papas, divido-os em dois grupos: os revolucionários e os reacionários (tradicionalistas ou conservadores como preferem ser denominados).
Os grandes Papas foram os que olharam atentamente para a realidade terrena e anteciparam a resposta aos potenciais desafios da humanidade.
Leão XIII, foi o primeiro grande revolucionário dos tempos modernos ao proclamar, através da encíclica “Rerum Novarum”, a proximidade aos princípios dos Direitos Humanos e aos fundamentos do que viria a ser a “Teoria Social da Igreja” e a base ideológica da “democracia cristã”, uma das duas partes, que conjuntamente com a “social-democracia”, criaram o Estado Social e as sociedades mais desenvolvidas e de bem-estar conhecidas até hoje.
O segundo grande revolucionário, foi o Papa João XXIII, acusado pelos tradicionalistas de ser “maçom”, “radical esquerdista” e “herege modernista” por ter convocado o Concílio Vaticano II (90 anos após o Concílio Vaticano I em que Pio IX tinha afirmado o dogma da infalibilidade papal!!!), no sentido da transformação da Igreja, promovendo a liberdade religiosa e o ecumenismo para melhor poder enfrentar e acompanhar as transformações do mundo moderno.
Revolucionário foi ainda o Papa Paulo VI, que decide reabrir o Concílio Vaticano II, que fora automaticamente encerrado com a morte de João XXIII e lhe atribuiu prioridade e direcção e cuja magnitude e profundidade das reformas, que afectaram todas as áreas da vida da Igreja, excederam as políticas reformistas dos seus predecessores. Foi além disso, o pontífice que procurou o diálogo com o mundo, com outros cristãos, religiosos, sem excluir ninguém, a visitar todos os continentes e o evangelizador que usou a comunicação para intervir politicamente.
Finalmente, Francisco o grande revolucionário, o Papa crítico da actual economia capitalista “economia que mata” e do modelo neo-liberal «O mercado por si só não pode resolver todos os problemas, por mais que façam a gente acreditar nesse dogma da fé neoliberal». «Não condeno o capitalismo “da forma como alguns me atribuem”, nem sou “contra a economia”, sou é a favor de uma economia social de mercado”, que implica a presença de uma autoridade reguladora que é o Estado, que deve mediar as partes”, destacando que “é uma mesa com três pernas: o Estado, o capital e o trabalho».
Ou quando ressalvava que a “riqueza produzida tem de ser distribuída por todos” para que seja “justa” e pedia uma reflexão global sobre um “novo mundo do trabalho”, com base no “trabalho justo”, no respeito no “processo produtivo” de forma a permitir o crescimento humano das pessoas, a harmonia dos tempos de vida familiar e laboral, e no direito do movimento sindical à negociação de condições de trabalho decentes e dignas com base na contratação colectiva (Carta encíclica "Fratelli tutti”, Mensagem aos participantes da 109ª Conferência Internacional do Trabalho, Homília “o Trabalho é a vocação do homem”, “Terra, Casa, Trabalho - Discursos aos movimentos populares”).
Francisco foi aquele que conseguiu olhar a trilogia cristã que há mais de dois séculos é apregoada – liberdade, solidariedade e fraternidade – numa outra trilogia humana com uma simples palavra “todos, todos, todos”.
Infelizmente, duvido que quem lhe seguir, prossiga o legado revolucionário de Francisco.
Como sempre tem sido apanágio da Igreja Católica, a um pontificado revolucionário, os tradicionalistas ou conservadores tomam conta da Cúria romana (ao revolucionário Leão XIII seguiram-se os consulados reaccionários de Pio X, Bento XV, Pio XI, Pio XII, aos revolucionários João XXIII e Paulo VI, seguiu-se um novo panteão de reaccionários, João Paulo I, João Paulo II e Bento XVI).
Enfim, as descrenças de um agnóstico, mas ainda assim um grande admirador do Papa Francisco.

Anónimo disse...

Senhor embaixador: como disse o José Bação Leal (um alentejano que morreu na Guerra Colonial), e replicando uma passagem do seu texto de hoje, também no meu caso "todos os cristãos bons que conheci também seriam bons se não fossem cristãos".
MB

Anónimo disse...

Paulo VI, revolucionário???
Deus lhe perdoe a comenda que deu a Silva Pais. E a Rosa de Ouro...
Valha-nos a desmemória ou a ignorância.

Anónimo disse...

e há também o aspeto cultural e paisagístico da igreja cristã. não gostaria de ver substituídos os campanários das nossas vilas e cidades pelos minaretes.

Carlos Antunes disse...

Anónimo das 11:53
Ouso contraditá-lo quanto à minha pretensa ignorância quando intitulei o “Papa Paulo VI como revolucionário”.
1. Quando apelidei Paulo VI de revolucionário, não me referia à Igreja pastoral (que me interessa menos, já que não sou crente), mas sim às suas relações com o mundo.
Foi o primeiro sumo sacerdote da Igreja a visitar os cinco continentes, a discursar na Assembleia Geral da ONU, não fechando os olhos para questões contemporâneas e trazendo a Igreja para os debates do século XX, num mundo de grandes transformações no contexto muito difícil da Guerra Fria.
Como alguém disse foi “o papa que tirou a Igreja Católica da Idade Média”, que fiel às directrizes conciliares do Vaticano II (que reabriu após o encerramento à morte de João XXIII) implementou o diálogo com o mundo moderno, com outros cristãos (ecumenismo) e com outras religiões (diálogo inter-religioso), defendeu a paz mundial e exigiu mudanças significativas nas políticas dos países ricos da América e Europa em favor dos países pobres do então chamado Terceiro Mundo.
2. Quanto à Rosa de Ouro a condecoração papal foi efectivamente dada, pela primeira vez, ao Santuário de Fátima por Paulo VI, mas depois dele foi concedida por mais duas vezes ao mesmo Santuário, pelos Papas Bento XVI e Francisco, que aliás fizeram essa entrega pessoalmente em território português.
Associar uma condecoração oferecida como símbolo de reconhecimento e distinção a personalidades, santuários, igrejas ou cidades que tenham prestado serviços à Igreja ao reacionarismo do pontificado de Paulo VI, parece-me claramente despropositado.
3. Enfim, quanto à comenda que Paulo VI terá dado a Silva Pais, confesso que nunca ouvi nenhum relato de que tal tenha alguma vez acontecido.
Mas como parece, com isso, sugerir uma ligação entre Paulo VI e o regime da ditadura relembro três episódios:
Primeiro, a viagem do Paulo VI à Índia, no final de 1964, muito controversa para o regime de Salazar, que não aceitara as perdas dos territórios de Goa, Damão e Diu, ocorrida três anos antes.
Depois, em Maio de 1967, Paulo VI realizou uma visita não oficial a Fátima (assinalo não oficial, ou seja feita “a latere” do regime) tendo a 8 de Dezembro seguinte instituído o 1 de Janeiro como Dia Mundial da Paz, na sequência do seu discurso em 1965 perante a Assembleia Geral da ONU, em que tinha reafirmado o primado do direito nas relações entre os Estados, à “Guerra nunca mais” e “à paz como guia do destino dos povos e de toda a humanidade”. Para alguns sectores católicos portugueses, esta seria a data para promover iniciativas em torno da recusa da guerra colonial e da promoção de uma cultura de paz, como foram as vigílias da Capela do Rato e da Igreja de São Domingos.
Por fim, em 1970 Paulo VI encontrou-se com os líderes de movimentos de libertação de Angola, Guiné e Moçambique. Para o regime, Marcelo Caetano substituíra Salazar, mas sem proceder a qualquer alteração na guerra colonial, este foi um dos momentos políticos de maior complexidade, pelas repercussões internacionais e pelo reforço da contestação interna ao colonialismo e à guerra.
Reafirmo, pois, e com a toda a minha convicção que Paulo VI foi um “papa revolucionário”.

João Cabral disse...

Como o senhor embaixador, também sou de "outra freguesia" e acrescente-se que nem baptizado sou. Portanto, está a ver. Mas isso também não me impede de perceber a importância da Igreja na sociedade ocidental e de admirar o papa Francisco. É tal vez o único papa que admirei de alguma forma (por Bento XVI tinha mesmo antipatia). Quando mais não seja pelo seu humanismo no trato do outro. Presumo que ser franciscano faça uma grande diferença.

João Cabral disse...

Corrijo: jesuíta, não franciscano.

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