sexta-feira, novembro 24, 2023

Entrevista ao "Jornal Económico" (24.11.23)


- Para além da evidência do título, o que esteve por trás da elaboração de ‘Antes que me esqueça’?

Basicamente, foi a vontade de dar guarida, em livro, a relatos de memória que tinha juntado no meu blogue "Duas ou Três Coisas", nos últimos 15 anos. Não tenho quaisquer arquivos, papeis, registos. Apenas possuo uma memória que considero boa (já foi bem melhor, claro!) e, com ela, fui reconstituindo episódios que pessoalmente me marcaram, quer na vida diplomática, quer na passagem pelo governo, a qual, de certo modo, foi também um tempo diplomático, dessas quase quatro décadas. Assim, à medida que me recordava de factos e pessoas relevantes, ou que algum acontecimento os suscitava, elaborava textos e publicava-os, de imediato, no blog. Sempre num estilo completamente despretensioso e sem a menor preocupação literária. Criei assim uma espécie de "gaveta" de episódios e retratos. O "Antes que me esqueça" é, no fundo, um "best of" daquilo que, sobre a minha profissão, tinha escrito no blog. E tenho escrita uma imensidão de outras recordações (não gosto de chamar a isto memórias) que não excluo poder vir a publicar.

- A memória futura - é aí que, digo eu, o livro se inscreve - é uma forma de combater as fake news? Ou mais de explicar o passado recente de uma forma linear e inteligível?

Não tive um objetivo concreto ao fazer este livro. Não quis repor qualquer verdade que estivesse prejudicada por relatos falsos ou distorcidos. Procurei apenas dar um testemunho de cenas que testemunhei, quase sempre na qualidade de ator secundário, porque é esse o papel de um diplomata ou de um político "por empréstimo" como eu fui. Entendi que seria uma pena perder-se o registo de certos episódios, alguns dos quais, por vezes, contava a amigos, que me estimulavam a dar-lhes uma forma escrita. Mas - que fique claro! - não tive a menor pretensão de vir a fazer História! Admito que algumas coisas que coloquei no livro possam ajudar as pessoas a contextualizar certas questões internacionais de que ouviram falar. Em especial, estou seguro que talvez isso os ajude a compreender melhor, quer as tarefas dos diplomatas, quer, em especial, a lógica subjacente a certas tomadas de posição da diplomacia portuguesa. Mas, repito, sou muito modesto quanto aos objetivos deste livro. Longe de mim querer "to put the record straight".

- Até que ponto a diplomacia é, para além dos jornais e dos compêndios de história, um lugar onde as ‘fake news’ são um instrumento de trabalho?

A diplomacia apoia-se essencialmente em factos, embora não deixe de estar atenta ao fenómeno criativo que são as deturpações dos mesmos, que as "fake news" representam. Os diplomatas procuram sempre não se deixar apanhar por uma visão deturpada da realidade. O diálogo bilateral com entidades institucionais estrangeiras ou com os atores político-sociais dos países ajuda a evitar isso. É muito importante saber hierarquizar a qualidade das fontes e, a jusante delas, destrinçar a verosimilhança daquilo que nos chega. Da mesma maneira que o faz a "intelligence", é fundamental para o diplomata aprender a "recortar" as notícias para as transformar, posteriormente, em informação fiável. Passei a minha vida a tentar só usar coisas seguras e "checkadas", mas fui muitas vezes induzido em erro por aquilo que é a mais perigosa forma de "fake news", a informação "orientada", algo que, não sendo em absoluto falso e tendo em si parte da verdade, nos condiciona muito a interpretação dos factos. 

- A verdade, ou toda a verdade, é muitas vezes maçadora, pouco empolgante, descabida ou mesmo perigosa. A ‘razão de Estado’ é motivo suficiente para o seu encobrimento ‘diplomático’?

Esse é um tema muito sensível! O António conta tudo à sua mulher? Nunca contamos, sejamos honestos. E as nossas mulheres sabem disso! Também o público, o cidadão, tem a consciência de que o poder é, muitas vezes, "económico com a verdade", como dizia um político britânico. A questão está sempre no grau de abertura e transparência usado. Os brasileiros têm uma fórmula deliciosa: "o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde". Não estou a afirmar que haja sempre uma verdade visível e outra verdade escondida, mas é óbvio que há uma propensão oficial para dar conta do que corre melhor. É também por essa razão que, nas sociedades democráticas, deve haver um forte escrutínio público - pela oposição, pela imprensa, pelas estruturas da sociedade civil, pelo próprio funcionamento da separação de poderes. Mas há limites para a transparência? Acho que deve haver. As questões de defesa, de segurança, de interesse nacional relevante (você perguntar-me-á: quem decide isso?) devem ser protegidas. Bom senso e sentido de Estado devem prevalecer. Às vezes consegue-se, outras vezes não.

- Dizem alguns que a diplomacia é um assunto demasiado sério para ser deixado das mãos amadoras dos políticos de passagem (necessariamente breve) pelo ministério da tutela. Subscreve esta ideia?

Não, de todo. Os diplomatas executam a política externa e, na maioria das vezes, são eles quem sugere o tipo de intervenção que o Estado deve levar a cabo, na sua ação internacional. Mas quem responde pelos resultados dessas ações, perante os cidadãos, são os políticos. São eles que são eleitos e removidos do poder. Por isso, é natural que sejam eles a orientar a ação do Estado. Nós somos uma espécie de guardiões do "fogo sagrado", que preservamos a continuidade da ação externa do Estado, a própria coerência dessa ação. Mas os políticos podem decidir fazer inflexões, às vezes roturas, e nós temos de aceitar. Podemos e devemos dizer-lhes o que pensamos, mas a última palavra é deles. Quando um determinado governo decidiu, em 2003, ofendendo a honra nacional, organizar a "cimeira" das Lajes, a diplomacia portuguesa teve de obedecer. E muitos de nós éramos contra. A esses políticos nunca foi pedido que mostrassem as "armas de destruição maciça" que os levaram a desrespeitar a ONU e o multilateralismo. E fizeram-no, usando o nome de Portugal. Porque tinham sido eles que tinham sido eleitos. Chama-se a isso diplomacia democrática.

- Do seu ponto de vista, quais são, na história contemporânea, os grandes momentos da diplomacia portuguesa? Timor-Leste faz parte da lista? Se sim, é capaz de aceitar que o jovem país não tem viabilidade, como quem diz ‘tanto esforço para nada?

Em democracia, a luta pelo direito à autodeterminação do povo de Timor-Leste terá sido, de facto, o grande momento da diplomacia portuguesa. Foi uma ação que nos prestigiou, que nos deu "galões" internacionais no âmbito dos Direitos Humanos e que, de certo modo, contribuiu para aproximar os Estados que falam português, que criou lastro à CPLP. Devemos estar orgulhosos desse trabalho - e digo-o com todo o à-vontade, porque só muito indiretamente participei nele. Mas também, sejamos justos, foi importante para Portugal a tentativa de pacificação da situação em Angola, através dos Acordos de Bicesse, muito embora o processo, num tempo posterior, tivesse descarrilado. No resto, nestes 50 anos de democracia, a diplomacia portuguesa esteve muito bem nas suas passagens pelo Conselho de Segurança da ONU e nas presidências da União Europeia. E quer maior êxito do que ter António Guterres como secretário-geral da ONU?

Quanto a Timor-Leste, discordo, em absoluto, de si. Sou um fã de Timor-Leste, tenho grande admiração pelos timorenses, por Xanana Gusmão, por Ramos-Horta, pelo passado do bispo Ximenes Belo.

- A diplomacia ainda é o que vai salvar o mundo? Em Israel, na Ucrânia, no Iémen, nos Balcãs, etc.?

A diplomacia é uma ação de criação e desenvolvimento de pontes entre os povos, através de técnicos especializados para tal, os diplomatas. Atrás dos diplomatas estão os Estados, os decisores, os políticos. Nós podemos propor e forjar soluções, à luz da nossa experiência anterior, lida na História. Mas não fazemos milagres! Sem a existência da vontade política, não há espaço para a diplomacia intervir. Em todos os cenários de conflito que referiu, há soluções diplomáticas possíveis, mais ou menos agradáveis ou desagradáveis para as partes em litígio. Nós conhecemo-las todas. A questão é apenas haver condições para as "enforce", como se diz na nossa gíria.

- Qual é a diplomacia mais poderosa da atualidade? A chinesa? 

A diplomacia chinesa está muito atrasada face ao poder real que a China tem pelo mundo. Mas lá chegarão! São poderosas as diplomacias dos países poderosos. Se eles têm força, as suas diplomacias ganharão com isso. Eu costumo dizer que, em qualquer parte do mundo, um embaixador americano é sempre influente, não porque seja mais competente ou capaz mas, muito simplesmente, pela força que tem por detrás. Como um embaixador francês ou alemão na União Europeia. Difícil é conseguir ser relevante representando um país sem grande expressão de poder. E alguns diplomatas portugueses provaram e provam que isso é possível.

- Qual foi a personagem mais fascinante que conheceu na sua atividade profissional?

Confesso que não sou muito dado à "glorificação" dos meus interlocutores - ou, então, não conheci mesmo gente muito fascinante. Encontrei pessoas competentes, capazes, com visão, com carisma. já não fui do tempo de um Churchill, de um De Gaulle. Nunca tive o ensejo de me cruzar com Thatcher ou Mitterrand, nem conheci o Mandela. Falei, mas já tarde na sua vida, com uma figura por cuja visão tenho um imenso respeito e que teve uma grande importância na política europeia: Jacques Delors. Ainda vi Helmut Khol em ação, assisti a reuniões com Bill Clinton, Tony Blair ou Jacques Chirac, conversei com Gorbachev e com Arafat, falei bastante com Lula. Foi tudo gente com relevância para o nosso mundo. Quanto a portugueses, pude testemunhar o prestígio internacional de Mário Soares e de António Guterres.

- Quem foi o político mais importante com quem teve de lidar?

Quando exerci funções políticas, estava subordinado a uma hierarquia e os políticos "importantes" tinham como interlocutores pessoas que estavam acima de mim. Enquanto embaixador, os políticos não nos têm, em geral, por interlocutores, salvo para conversas sociais. 

- Porque é que o Ministério dos Negócios Estrangeiros não é sempre atribuído a um diplomata do topo da carreira?

Em democracia, já aconteceu, por mais de uma vez, o lugar de ministro dos Negócios Estrangeiros ter sido ocupado por diplomatas do topo da carreira, embora sempre por períodos curtos. Mas, na minha perspetiva, essa não parece ser a solução que melhor protege as Necessidades, no equilíbrio interno dentro dos governos. O MNE ganha sempre, em força e relevância, quando a sua titularidade é atribuída a um político com poder no respetivo partido. E os diplomatas nunca têm esse poder.

(Texto completo da entrevista concedida a António Freitas de Sousa)

3 comentários:

Lino Silva disse...

Tenho dificuldade em aceder ao blogue. Aparece como não seguro.

Flor disse...

Muito obrigada pelo extenso texto que vou ler com atenção.

Francisco Melo disse...

Senhor Embaixador, antes de mais, muitos parabéns pelo livro! Pegando na pergunta sobre a influência dos diplomatas dos países poderosos, sempre ouvi dizer que a diplomacia do Vaticano também era muito boa, pela sua experiência. Qual é a sua opinião acerca disso?

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