Diplomata, consultor estratégico, gestor, Francisco Seixas da Costa representou o país no Brasil, em França e nas Nações Unidas, além de ter passado pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), entre outros cargos de relevo. Aos 75 anos, lança "Antes que me esqueça", em que reune "episódios e retratos" que lhe marcaram a vida e a carreira. Ao Novo, fala sobre o livro que chega às bancas dia 21, e sobre o mundo que vê.
Porque decidiu publicar este livro agora?
Boa questão! Ao longo do tempo, alguns amigos foram insistindo para que juntasse, num volume, parte das centenas de episódios e retratos que tinha deixado no meu blog - e já lá vão quase 15 anos. Mas interrogo-me sobre se o conjunto de textos que escolhi resiste a um teste de coerência global. Terão de ser os leitores a fazer essa avaliação. Por mim, olhando o resultado, relendo o livro impresso, sinto que estou todo por ali - com a minha ironia e, vá lá!, com algum egocentrismo à mistura. Mas já estou numa idade em que não me angustio com os meus defeitos.
Antes Que Me Esqueça” é um livro de memórias, mas também um relato da história que foi vivendo ao longo destes anos a exercer funções de embaixador. Apesar do distanciamento temporal, teve de deixar episódios de fora por questões de sensibilidade?
Claro que sim. Há coisas que testemunhei e que nunca escrevi. Algumas, com algum jeito no modo como fossem relatadas, talvez pudessem ser passadas a papel. Outras, porém, terão que ficar, para sempre, apenas na minha memória, até porque afetam terceiros e a discrição que devo ter pelas funções exercidas. Além disso, há coisas que se diziam há uma ou duas décadas e que passou a não ser possível escrever hoje. Há um texto no livro, sobre um anão, que não sei se passará no teste do politicamente correto. Mas é verdade: deixei de fora algumas coisas por uma questão de sensibilidade. E, com isso, sinto estar a perder alguma liberdade...
Não há só política, há aqui humor, intriga e até futebol... como escolheu o que incluir e o que deixar de fora, de uma experiência certamente riquíssima?
No livro há pouca intriga... e venho de um ministério onde, historicamente, ela se passeia pelos claustros! Procurei selecionar alguns temas mais substantivos, que mostrassem a diversidade das coisas com que um diplomata lida. É que a diplomacia não é, glosando Amália, "uma estranha forma de boa vida". A profissão diplomática, quando levada a sério, dá muito trabalho. E eu trabalhei sempre muito. Mas, até porque gostei bastante do que fiz, dei-me ao luxo de me divertir nessa vida, olhando-a e olhando-me com ironia. E isso também está no livro. Essa minha dualidade está toda lá. Para o bem e para o mal.
Quais foram os destino ou episódios a que a carreira diplomática o levou e que mais o surpreenderam – pela positiva e pela negativa?
A mais traumática experiência que tive, posso confessar hoje, foram os meus dois últimos anos na profissão - 2011 e 2012. Representar um país sujeito a um processo de resgate foi extremamente pesado e angustiante. Mas um diplomata é "a man for all seasons" e está ali tanto para os bons como para os maus momentos. O grande teste à qualidade de um diplomata é a sua capacidade de representar orientações com que profundamente discorda. A diplomacia democrática é isso mesmo. Tive 21 ministros dos Negócios Estrangeiros e nem sempre me agradou o que me mandaram fazer. Mas era serviço...
Quanto aos choques pela positiva, não tenho a menor dúvida: foi o gosto de conviver com essa reserva saudável de patriotismo (porque também há o patrioteirismo nacionalista, que abomino) que são as comunidades portuguesas tradicionais lá fora. Tenho uma imensa admiração pelo esforço daquela gente, que conquistou, a pulso, algum bem-estar que, por cá, lhe foi negado. Representei Portugal nos dois países com maior diáspora: Brasil e França. Senti-me aí um embaixador-cônsul. E fui-o com muito gosto, como essas comunidades bem sabem.
Há certamente momentos numa carreira diplomática que ajudam a entender com uma perspetiva diferente, mais informada, os eventos que acabam por ocorrer e que surpreendem quem não está por dentro destes temas... A invasão da Ucrânia pela Rússia, por exemplo, foi menos inesperada para si?
Podia dizer-lhe que não me surpreendeu, mas estaria a mentir. Sempre pensei que, não obstante as crescentes divergências que ia alimentando com o mundo ocidental, a Rússia teria um mínimo de racionalidade, não sendo tentada a fazer ruir o que restava da arquitetura de segurança pós-Guerra Fria. Putin cometeu um erro monstro: achou que a América de Biden estava num "mood" de derrota, depois do Afeganistão, e que, por outro lado, tinha a Europa como refém pela energia. Enganou-se redondamente e, com isso, acabou por obrigar a China a saltar para o ringue da disputa com os EUA, mais cedo do que Pequim queria. E, pela primeira vez, mas para sempre, a Rússia vai ficar política e economicamente subordinada à China. A Rússia, por muita coreografia que faça, será sempre, no futuro, um ator de segunda linha. Faz-me lembrar os "canastrões" do cinema, que não percebem que o seu tempo passou.
E sente que a sua visão sobre o atual conflito no Médio Oriente é diferente precisamente por essa proximidade que adquiriu nomeadamente pelo “convívio” com personalidades como Shimon Peres, Arafat ou mesmo Ariel Sharon?
Fui a Israel nos anos 70 e regressei lá depois. Criei, para sempre, uma ideia clara: uma grande percentagem dos israelitas não aceita a solução dos dois Estados e, no fundo, acredita que aquela terra toda lhes é devida, embora hesite no que fazer com os palestinos - alguns têm ideias sinistras, outros cínicas, outros hesitam. Alguns políticos israelitas tiveram a tentação sábia de "comprar a paz pela terra", mas não conseguiram fazer aceitar internamente essa ideia. A única potência que tem algum "leverage" em Israel são os EUA, mas estes não são capazes de gerar, dentro de si, um consenso mínimo para forçar a mão aos governos israelitas. Israel não cumpre, com a bênção americana, as resoluções da ONU que os próprios EUA aprovaram! E agora? Depois desta guerra, as coisas vão piorar muito. Israel pode ter comprado algum tempo mais, mas vai ficar cada vez mais longe da paz. O Médio Oriente é a única zona do mundo onde o conceito de "pós-guerra" não existe. Os ódios não se apagam sem justiça e, para haver justiça, tem de haver vontade de fazer concessões fortes. E essa vontade existe cada vez menos. Ter ouvido Rabin e Peres ajudou-me a pensar assim? Talvez.
A diplomacia mudou muito desde que se estreou nesta vida – o lado económico, por exemplo, tornou-se muito mais presente ou sempre existiu mas não era tão visível?
Em quase quatro décadas de carreira, tenho a sensação de que nunca as questões económicas abandonaram o meu quotidiano. A diplomacia é um conceito compósito, onde se insere a política, a geoestratégia, a economia, a dimensão consular, a cultura e tudo o resto, parte do qual não passa já pelos Estados. Mas acho muito importante que os diplomatas sejam chamados a apoiar a ação empresarial e saibam lidar com os dossiês técnico-económicos. Estando a trabalhar, há mais de dez anos, em importantes empresas com forte ação externa, entendo hoje melhor o que a diplomacia pode fazer em apoio ao setor económico nacional. E acho que o MNE, nessa dimensão, não se tem portado mal.
Tendo sido um pivô na implementação do Acordo de Schengen e embaixador na OSCE, que visão tem sobre a atual situação e riscos das fronteiras europeias numa década em que o Ocidente foi por diversas vezes alvo de ataques terroristas e onde os extremismos têm crescido? Há preocupações de segurança que não estão a ser olhadas com a devida atenção?
O sistema de informações de Schengen parece ser eficaz. O terrorismo que ocorre na Europa, em regra, não vem de fora: é praticado por quem já cá nasceu, oriundo de comunidades mal integradas e radicalizadas. O extremismo crescente em algumas sociedades europeias, que a crise Israel-Hamas só tenderá a fazer crescer, é um fenómeno que basicamente radica em razões nacionais específicas e que só em cada um desses contextos pode ser tratado. Temos de ser cuidadosos, vigilantes com os abusos e os desvios à ordem democrática, mas temos de fazer isso sem afetar a democracia e as nossas liberdades. E nem sempre cultivamos essas liberdades: o que se passa com a proibição dos canais russos é um abuso europeu, intolerável e vergonhoso.
Que cargo gostaria de ter ocupado na carreira diplomática?
Um lugar para o qual fui convidado e, erradamente, recusei: embaixador em Madrid. Com Angola e o Brasil, essa experiência teria completado o triângulo bilateral mais relevante para Portugal. Optei por ir para Paris. Foi bom? Foi, mas não é a mesma coisa.
E estaria disponível ainda para assumir um lugar, por exemplo nas Nações Unidas?
Há muito que não tenho idade para aventuras! Nem cá, nem lá fora. O que hoje faço, em consultoria estratégica e em comentário internacional, preenche-me a vida - se calhar até demais!
Num mundo em reequilíbrio geopolítico e geoestratégico, marcado por fenómenos de radicalização e extremismos, o que mais o preocupa atualmente?
Exatamente isso que disse: a radicalização e os extremismos. O futuro da América assusta, aquilo que pode vir a acontecer em França é alarmante, a crescente incapacidade dos moderados para fazerem ouvir a sua voz nas sociedades democráticas é trágica. A mim não me assusta um quadro internacional mais equilibrado, com um mundo ocidental - que é um eufemismo recorrente para o poder hegemónico de Washington - menos poderoso, mais contido e mais respeitador dos interesses dos outros. O que me angustia é a possibilidade de essa ordem alternativa, afinal, poder não ser a solução para se evitar um novo conflito mundial.
(Entrevista por Joana Petiz, diretora do "Novo", na edição de 18.11.23)
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