Foi numa noite de finais de 1980, na residência da nossa embaixada em Oslo, na simpática casa de que Portugal é proprietário na capital norueguesa, na Drammensveien. Um importante armador norueguês era um dos convidados. O nosso embaixador, António Cabrita Matias, fazia as honras da casa.
A certo ponto da conversa, o "shipowner" norueguês referiu que, em agosto de 1975, quando a guerra civil eclodiu em Dili, tinha sido um dos seus barcos que transportou mais de mil refugiados timorenses para Darwin, na Austrália.
Vi Cabrita Matias entusiasmar-se com o relato do armador. A razão era óbvia: ao tempo, ele era o embaixador português na Austrália. "Eu estava em Darwin, à chegada do barco com os refugiados", referiu o embaixador, que também se recordava bem da contratação do navio norueguês.
Elaborou então sobre esse tempo difícil e traumático do fim do império lusitano, em que Lisboa vivia em tempo revolucionário, num ambiente que, segundo ele, tinha acabado por criar o caldo de cultura de descaso que dera alento à invasão indonésia. E lembrou que a administração portuguesa em Macau e as representações diplomática e consular portuguesas na Austrália foram, à época, a guarda avançada de Portugal na região.
O jantar terminou e, como era de simpática regra com aquele embaixador, ele e eu ficámos um pouco mais à conversa, depois da saída dos convidados. Cabrita Matias era adepto de um champanhe para fechar a noite, eu optava quase sempre por um whisky, nesse tempo em que o meu fígado me dava boas noites.
Contou-me, então, um episódio.
O dia já ia longo, depois da chegada dos refugiados. Com a ajuda do governo australiano e, creio, de algumas estruturas do mundo multilateral e não-governamental, os timorenses tinham sido alojados, na medida do que era possível e nas condições que a emergência justificava.
Cabrita Matias estivera por algum tempo no porto de Darwin a observar as operações. Tendo regressado ao seu hotel, a certo passo, teve um pressentimento: "E se ficou alguém para trás, no porto?" E decidiu passar por lá.
Foi então que a viu: uma senhora timorense estava sentada junto a uma mala. Sozinha. O embaixador aproximou-se dela e inquiriu o que se tinha passado. Ela referiu que, por uma confusão qualquer, se tinha afastado do autocarro que levara os últimos dos seus compatriotas e ficara para trás.
Cabrita Matias, que não era muito dado a fazer transparecer emoções, disse-me que ficou comovido quando a senhora notou, com uma imensa calma e um sentido do destino: "Eu sabia que alguém viria buscar-me".
O embaixador, que era um homem religioso, ligara o pressentimento à situação e extraía dali conclusões de vontades celestiais. Mas logo acrescentou, para mim, num desânimo sorridente: "Mas eu sei que você não acredita nestas coisas, não é?". Era e é.
Há dias, na Gare Marítima da Rocha do Conde d'Óbidos, foi inaugurado um memorial ao fotógrafo francês Roger Kahan, que registou fabulosas imagens dos refugiados estrangeiros, muitos deles judeus, que chegaram a Lisboa no início da Segunda Guerra mundial, procurando depois refúgio na América.
A fotografia que está na capa do livro em que José Ferreira Fernandes relata a saga de Kahan é a que a imagem mostra, representando uma refugiada, sentada com uma mala, junto do marco do correio que ainda hoje existe no local.
Na primeira vez que olhei aquela fotografia, veio-me à memória a história que Cabrita Matias me havia contado, há cerca de 43 anos. E creio que não preciso de explicar porquê. As circunstâncias seriam com certeza muito diferentes, mas, na sua tragédia comum, não há nada mais parecido com um refugiado do que outro refugiado. E este é o tempo certo para falar deles.
21 comentários:
junto do marco do correio que ainda hoje existe no local
Ainda há marcos do correio?!
Belissimo testemunho! Parabens. Fico muito agradecido. Nestes tempos conturbados em que a extrema direita lusa mostra as garras, seria oportuno que fossem erigidos monumentos na fronteira luso espanhola sobre a nossa saga de "O Salto" para terras de França. Foram centenas de milhares de portugueses que atravessaram clandestinamente as fronteiras.
amadeu moura
Uma outra excelente razão para erigir tais monumentos seria fazer ver aos europeus todos (incluindo aos portugueses) que os migrantes que atualmente vêem de forma ilegal para a Europa, por exemplo navegando através do Mediterrâneo, tiveram precedentes nesses portugueses que, no passado, foram de forma igualmente ilegal para França.
Belíssimo texto.
A propósito da questão posta pelo Luís Lavoura, não só há muitos como talvez e (felizmente) cada vez há mais, pelo menos nas zonas antigas.
Como sabem todos os que lá passam e deviam imaginar os que não passam lá, nas zonas antigas e nas sete colinas de Lisboa as ruas e ruelas são de um modo geral tão estreitas que nos passeios mal se conseguem cruzar duas pessoas mais fortes (já não há gordos, como se sabe) e há mesmo muitas ruas onde alguém tem que descer do passeio quando se cruza com outro, mesmo que sejam mais elegantes (elegante acho que ainda se pode dizer).
Aqui na minha zona e nos percursos que faço habitualmente só há marcos de correio clássicos, muitas vezes em esquinas onde dois passeios entroncam porque aí há mais uns centímetros de chão.
São zonas habitadas por gente muito modesta (para não dizer claramente pobre), sem internet, que não deve saber muito bem o que é um mail, que ainda escreve cartas (os que sabem escrever), que recebe as contas por correio, todo um mundo sempre esquecido pelos que vivem fechados no seu mundinho bué da modernaço onde salvam todo o mundo e não querem saber do vizinho.
Desde há muitos anos que era evidente que das profissões mais ameaçadas de extinção neste admirável mundo novo em que julgamos viver era a de carteiro.
Portanto se ainda existem carteiros é muito por causa de todos estes e ainda à conta das cartas registadas que ainda existem.
Aqui há dias o carteiro trouxe-nos uma carta de condução renovada e comentou “até que enfim, hoje só tinha entregado multas”.
Aqui há uns anos houve aqui uma zona a 100 metros de minha casa, suficientemente espaçosa para passar a pedonal, onde implantaram um daqueles “marcos de correio” modernos, enorme e paralelepipédico, de estética mais que duvidosa.
Acabou por ser retirado e substituído 50 metros mais além por um marco de correio “red british mailbox style” como os outros todos na área, muito mais bem localizado para os utentes pois não precisava de tanto espaço de implantação, muito mais adequado ao espaço de bairro antigo ainda muito razoavelmente preservado que o cerca.
Depois, ao lado dos monumentos, faziam-se centros interpretativos onde se explicaria que os portugueses que iam para França iam ajudar a economia local a crescer, que os seus valores culturais não colidiam com os dos franceses e até - pasme-se! -, acabavam por se integrar facilmente na sociedade que os recebia, adotando inclusivamente a língua do país anfitrião como sua. Por alguma razão nunca se ouviu falar, por exemplo, de máfias portuguesas nos países onde os nossos se foram refugiar.
Mas, obviamente, a aceitação da verdade é algo que implica honestidade intelectual e isto não está ao alcance de todos, muito menos daqueles que andam há um ano e tal a ignorar o sofrimento dos ucranianos para agora se desfazerem em lágrimas por causa de outros.
Sugiro, também, que do lado de lá da fronteira se ergam monumentos em homenagem à saga de todos os espanhóis cuja vida foi salva por darem o "salto" para cá ou aos imensos galegos que encontraram em Portugal o pão que não tinham na sua terra.
Um belo texto, comovente pelo que nos lembra da humanidade que nos deve unir.
Manuel Campos falando em marcos de correio terão tendência para desaparecer e os carteiros a serem-lhe reduzidas as horas de trabalho no exterior.
No meu tempo de adolescente dei muito trabalho aos carteiros. Tinha "pen pals" em Espanha, em França, na Bélgica e até em Israel. Naquela altura havia uma entrega de correio de manhã e outra à tarde e muitos dias "o carteiro tocava duas vezes". Quando chegava o Natal a minha mãe dava-lhes uma gorjeta reforçada. Eram sempre os mesmos e eram tratados pelos nomes.
Estava e deixou de estar.
Agora é que não percebi.
Mas se calhar não tenho que perceber.
manuel campos
desconhecia essa existência.
Eu quando quero enviar uma carta (ocasionalmente acontece-me) não faço ideia onde a depositar, porque nos sítios onde habito não há marco de correio nenhum. É muito inconveniente ter que ir a uma longínqua estação de correio só para pôr uma carta no correio.
Flor
"Os carteiros desta área desejam a V.Exa. um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo" era a "deixa" para a "gorjeta reforçada".
O mesmo lema era utilizado por guarda-nocturnos (o que é isso?), varredores da Câmara (o que é isso?) e já não me lembro quem mais.
Por aqui também são sempre os mesmos, houve mesmo uma altura, aqui há uns bons que o encontrava na rua logo de manhã e ele me dízia que não tinha nada para nós ou me queria entregar mesmo ali o que trazia, lá lhe pedia para não me "obrigar" a andar o dia todo com as cartas.
Já me aconteceu um comentário meu ter sido apagado por lapso antes de ser publicado e me ter sido pedido para o voltar a publicar, por ser considerado interessante.
Nessa altura não os guardava em Word e era difícil voltar a dar-lhe a mesma estrutura, portanto agradeci o gesto e não o reescrevi.
Mas nunca me tinha acontecido, nem me lembro de mais alguém, de quem um comentário tenha sido publicado e, uns 20 minutos depois, já não estivesse lá como verifiquei esta madrugada, tendo sido “substituído” por
“Comentário eliminado
Este comentário foi removido por um gestor do blogue”.
Por isso comentei às 02.02 horas:
“Estava e deixou de estar.
Agora é que não percebi.
Mas se calhar não tenho que perceber.”
Não era nada de importante, nunca é, sou sério mas não me levo muito a sério, era apenas “filosofia barata”, estive agora a fazer limpeza às pastas Word e lá se foi, não se perdeu grande coisa.
“Les gens qui ne rient jamais ne sont pas des gens sérieux.” (Alphonse Allais).
Uma bela história, repleta de humanidade plena.
Totalmente de acordo com o Amadeu Moura e o Luís Lavoura.
Há refugiados e refugiados, do mesmo modo que há invasões e invasões ou ainda chacinas e chacinas. E nem todos (incluindo o Papa) nos comovemos por igual com uma coisa e outra.
Por exemplo,
1. Os refugiados ucranianos têm um estatuo superior aos refugiados magrebinos, sírios ou palestinos;
2. A invasão da Ucrânia, pela Rússia, obtém um grau de negação pelos poderes públicos e da comunicação social (logo do povo) bem superior à invasão da Palestina, por Israel;
3. A chacina promovida pelo Hamas, num dia, merece mais condenação pelos governantes de U.E., incluindo os da Comissão, e pelos EUA do que semanas de chacina e devastação total que a trupe de Netanyahu na Palestina.
Anota-se ainda que o Ministro Cravinho informou o seu congénere israelita que estava “desgostoso” (atente-se na brandura da palavra usada) com a morte de três portugueses por bombardeamentos israelitas. Imagine-se, agora, o que diria o Senhor Ministro se aqueles portugueses tivessem sido vítimas de bombardeamentos russos, na Ucrânia. Portanto, mesmo na morte de cidadãos nacionais o modo de reagir é diverso, talvez porque há um povo que se autoproclama ser ele o escolhido.
Deve ser isso.
A questão dos "portugueses de Gaza" ou de Israel um dia merecerá estudo. Aquilo a que assistimos é um esforço coordenado da comunicação social para gerar artificialmente emoção nas pessoas calando, de caminho, quaisquer vozes que se pronunciem contra os abusos na atribuição de cidadania portuguesa a estrangeiros. É o regresso da "Angel Pui Peng", agora sem Albarran ou TV católica.
Entendamo-nos: não há portugueses em Gaza e, em Israel, haverá muito poucos. O "português de Gaza" que mais tem aparecido adquiriu o passaporte na qualidade de refugiado político, comunica em inglês e vive no estrangeiro. Os "portugueses de Israel" são gente que, de forma oportunista, se aproveitou de uma lei absurda e moralmente corrupta que lhes permitiu "adquirir" a cidadania nacional sem nunca terem tido qualquer ligação a este país ou pretenderem vir a tê-la.
(eu tenho genuína curiosidade em ver o que diria e faria a nossa CS se o russo Abramovich se visse em apuros)
O que os nossos políticos fizeram foi mercantilizar o nosso passaporte e tornar o conceito de "cidadania" numa nulidade. A cidadania é a pertença a uma sociedade, fruto de integração e identificação na dita, através da aceitação tácita ou voluntária de valores e práticas comuns.
Quem não fala a nossa língua, não conhece a nossa cultura, não integra a nossa sociedade e não participa nas alegrias e tristezas comuns não pode ser cidadão português. Poderia, eventualmente, ter um qualquer outro estatuto mas nunca o de igualdade perante aqueles que nascem, crescem, vivem e trabalham construindo e mantendo este país.
Há territórios que são protetorados ou Estados associados, não sendo parte integrante e formal de outro país mas mantendo com este uma relação especialmente próxima. É o caso de Porto Rico e Gibraltar, por exemplo. Da mesma forma, compreende-se que um país queira providenciar a cidadãos estrangeiros algum tipo de ligação especial que lhes assegure certos direitos, mas a concessão desregrada (e em massa!) de estatuto de cidadania plena sem que haja sólidas bases para tal é um verdadeiro crime de lesa-Pátria.
Como podemos aceitar que neste momento haja dezenas de milhares de pessoas em Israel (há quem fale em mais de cem mil), que, sem qualquer ligação efetiva a Portugal, tenham direito a votar nas nossas eleições se assim o pretenderem?
E agora vemos esta situação patética dos "portugueses daqui" e dos "portugueses dali" aparecerem a exigir (!!!), que Portugal se empenhe em seu favor, enfiando-se em vespeiros políticos nos quais pouco tem a ver, passando as nossas autoridades - já tradicionalmente em falta para com os portugueses -, a ainda terem de esticar mais os parcos recursos materiais e pessoais em prol de indivíduos que nunca contribuiram com um cêntimo para os cofres nacionais, que nunca trabalharam um dia para a nossa economia, que nunca partilharam da nossa cultura e que, da forma mais despudorada se afirmam detentores de todos os direitos.
Os "portugueses de Israel" e os "portugueses de Gaza" interessam tanto ao português comum como um palito a um desdentado. São uma aberração política nascida da perfídia de uns e do desnorte de outros.
É exatamente isso. Há portugueses e portugueses. Se fosse um luso-brasileiro ou luso-americano ou luso-canadiano, tudo bem, agora uma família luso-palestina, inaceitável, a pedir uma averiguação. Por acaso ouvi, ontem, o pai das crianças, a falar um português escorreito, a lamentar-se do sucedido, que vivem em Portugal há vários anos, sendo certo que desconheço como adquiriram a nacionalidade ou se as crianças nasceram por cá. Contudo, penso, nada disso é importante face ao que verdadeiramente incomoda: a mortandade em massa que os homens de Netanyahu estão a levar a cabo, com a indiferença e o cinismo de tantos.
J. Carvalho, seria abusar da sua paciência pedir-lhe para nos indicar em que canal/programa observou esse fenómeno? Gostaria muito de o testemunhar.
Excelente texto. Há pessoas que efetivamente fazem a diferença.
Francisco F., Não se tratou de nenhum fenómeno. Foi uma simples notícia em que a jornalista foi ouvir o pai das crianças. Não sei dizer qual o canal. RTP 3, CNN ou SIC N no dia do evento no noticiário da noite. Hoje o Expresso, na última página resume o que ouvi na tv, sob o título "pai culpa governo". Acrescento o senhor Ahmed ainda explicou a razão porque a mulher e filhos tinham ido a Gaza e a reportagem terminou a mostrar objectos pertencentes a uma das crianças mortas.
Espero ter resolvido as suas dúvidas.
Meu caro J. Carvalho, o indivíduo em questão pode ser ouvido aqui:
https://www.rtp.pt/noticias/mundo/portugueses-mortos-em-gaza-ahmed-ashour-perdeu-dois-filhos-e-a-mulher_v1530324
É realmente, um fenómeno que não coincide com outros sujeitos que temos ouvido, nomeadamente aquele que anda a exigir explicações ao MNE sobre a razão de os portugueses em Israel terem sido salvos primeiro.
Dúvidas, não tenho. Apenas certezas. Andamos a conceder a nacionalidade portuguesa ao desbarato, a pessoas que não têm qualquer ligação ao nosso povo.
Vejo que resolveu focar-se num pormenor no meio de vários. Ainda que o domínio da língua seja essencial, pergunto: eu falo escorreitamente inglês e suficientemente bem francês (melhor do que este homem fala português). Devo ter direito a ser cidadão inglês e francês? Vir rebater o que eu escrevi com base em ter descoberto um fenómeno que consegue dizer umas coisas em português, prova o quê?
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