quarta-feira, novembro 14, 2018

Derrota pírrica


Quase tudo foi dito sobre as eleições intercalares americanas. Deixo apenas algumas breves notas sobre os resultados, tentando olhar em frente.

Trump foi derrotado. Para quem tinha as duas câmaras do Congresso e perdeu a maioria naquela onde é iniciado o essencial do processo legislativo – a Câmara dos Representantes – é evidente que se tratou de uma derrota. Esse desaire foi, contudo, atenuado: Trump não perdeu o controlo do Senado, onde teve mesmo alguns ganhos marginais e cujos integrantes são eleitos por seis anos (sendo um terço do órgão renovado a cada dois anos), pelo que, ao contrário do que é vulgar acontecer, esta eleição intercalar não resultou no ressurgimento global de uma onda oposicionista. Trump sai enfraquecido mas não tanto como ele próprio temeria e os adversários e comentadores considerariam plausível que pudesse ter acontecido.

Trump reforçou assim bastante as suas possibilidades de ser reeleito em 2020. A América, que pareceu inicialmente aturdida com o seu estilo, não o rejeitou, conferiu-lhe um voto de reticente confiança. Quem elegeu Trump não parece, no essencial, descontente com ele. Eliminada a possibilidade de vir a ser afastado do cargo por um processo de impedimento de funções – dado que o Senado, que continua a dominar, teria sempre a última palavra sobre isso – o presidente pode, contudo, vir agora a ser sujeito a um desgaste político contínuo, se o processo de suspeição sobre as suas relações com a Rússia vier a manter-se.

Percebe-se que Trump vive aqui um dilema. Se optar por afastar o investigador especial que trata do tema, cuja curiosidade se tem alargado a temas para ele tabu, como as contas familiares, o presidente tem consciência de que vai agravar um campo de batalha, que os adversários não deixarão de explorar à saciedade, assumindo-o como uma implícita admissão de culpabilidade. Se o processo de inquirição se prolongar, em termos que sejam credíveis aos olhos dos cidadãos, e se, de facto, começar a ser evidente que há algum fogo por detrás do fumo, a imagem de Trump pode vir a sofrer, com consequências daqui a dois anos.

Mas há uma persistente ilusão que não pode deixar de ser evidenciada. O mundo exterior vive mobilizado contra Trump à luz da atitude de uma América liberal que não representa o país. A CNN, as graças de Stephen Colbert ou os artigos do New York Times ou do Washington Post podem parecer-nos faróis de meridiano bom-senso, mas não espelham um sentimento forte que se vive nos EUA – e que tem tudo menos a ver com isso.

Para esse juízo valorativo, que as eleições refletiram bem, conta essencialmente o sentimento, real ou potencial, de bem-estar económico, adubado por uma retórica de defesa do interesse nacional que cai como sopa no mel em setores de opinião pública que já estão conquistados para a ideia de que o mundo tem sido injusto para com os EUA, de que os estrangeiros ou quem vem de fora são culpados pelos seus problemas de insegurança (pública, de emprego, de competitividade económica) e que olham com esperança para um líder que não tem vergonha de expressar alto os seus pensamentos, por mais primários que estes sejam.

Os EUA saem deste período muito mais divididos do que estavam. Se os democratas vierem a ser culpabilizados, por Trump e no juízo público, por eventuais bloqueios ao funcionamento da administração nos próximos dois anos, através da sua nova posição na Câmara de Representantes, arriscam-se a poder vir a ser penalizados politicamente. Pirro, segundo a História, ganhou uma batalha por um preço tão elevado que, afinal, lhe poderia custar perder a guerra. Resta saber se, a contrario, esta derrota de Trump não pode, no fim de contas, ser o pano de fundo que pode vir a facilitar a sua reeleição.

10 comentários:

Anónimo disse...

Desejo ardentemente que o Trump desapareça de cena para ver se o Daniel Oliveira se cala!

Anónimo disse...

Caro Embaixador, não raro discordo abertamente das suas posições. Este texto, porém, é uma excepção e concordo plenissimamente com o que escreve.

Permita-me citar a quase totalidade dum parágrafo:

"O mundo exterior vive mobilizado contra Trump à luz da atitude de uma América liberal que não representa o país. A CNN, as graças de Stephen Colbert ou os artigos do New York Times ou do Washington Post podem parecer-nos faróis de meridiano bom-senso, mas não espelham um sentimento forte que se vive nos EUA – e que tem tudo menos a ver com isso."

É exactamente isto! Os Europeus, principalmente, não percebes os Americanos e com a sua arrogância proverbial olham para o que se passa nos Estados Unidos (e em qualquer outro lugar) à luz dos seus valores e vivencias. Quando a sociedade Americana como um todo é muito diferente da Europeia. Com valores diferentes, formas de viver, muitos aspectos que marcam essa diferença. Hoje em dia, aliás, mesmo dentro da União há um desencontro cada vez maior entre as diferentes Americas. Sempre existiram várias Américas. As diferenças entre elas, porém, acentuam-se cada vez mais.

Estou muito grato por este pedaço de prosa que põe algum bom senso no chorrilho de cretinices que venho lendo nos últimos dois anos sobre os Estados Unidos da América.

Anónimo disse...

As eleiçõs para a Casa dos Representantes, nos EUA, têm algo de semlhante com as eleições para as Câmaras Municipais em Portugal: vota-se no candidato mais do que se vota no partido do candidato.

Mas sim, se os Democratas nesta Camara legislativa -inspirados por uma oposição sistematica a Trump- derrotarem moções republicanas, Trump poderá, cinicamente, sorrir.

Lembremo-nos que Trump é "republicano" apenas por acordo "in extremis" durante a campanha presidencial que venceu, contra todas as espectativas democratas e até republicanas.

E lembremo-nos ainda que o partido Republicano não só pouco apoio tem dado ao "seu" PR como até já derrotou algumas das suas iniciativas presidenciais.

Não é de esperar jogo limpinho em política lá ... e cá.

Luís Lavoura disse...

Trump foi derrotado.
Trump reforçou assim bastante as suas possibilidades de ser reeleito em 2020.

O Francisco não acha que há assim a modos que uma contradição entre estes dois períodos?

Luís Lavoura disse...

a sociedade Americana como um todo é muito diferente da Europeia. Com valores diferentes, formas de viver, muitos aspectos que marcam essa diferença

Ora bem. Eu descobri isto quando vivi nos EUA. A partir daí nunca mais pude falar de "Ocidente" sem lhe colocar aspas. O "Ocidente" não existe. O que existe são os EUA e a Europa, duas entidades irredutivelmente diferentes.

Joaquim de Freitas disse...

Os valores americanos são diferentes dos nossos, isto é, dos europeus? Pois são, mas não tanto como isso! Os americanos defendem os seus interesses por toda a parte no mundo. Importam-se pouco da ética, nem da moral. E muito menos dos estragos colaterais, os massacres e os direitos do Homem. “América First”, e mais nada.

A grande diferença entre eles e nós, é que se necessário eles praticam a lei do mais forte, incluindo embargos sobre os países, guerra comercial, golpe de estado ou invasão militar: eles têm os meios da sua politica. E nós, tendo portanto os mesmos interesses para defender, não temos os meios!

Quando Macron fala de Exército Europeu, Trump zanga-se, porque isso significa que o mercado do armamento europeu, lhe escaparia se a NATO desaparecesse. A Europa é o seu terreno de caça como a América Latina.

Quando regressa aos Estados Unidos e ameaça a França de novas taxas nos vinhos, só porque Mácron fala de soberania europeia, Trump dá um exemplo da democracia que ele compreende: a brutalidade, a força, o gesto imperial. Como no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria, na América Latina.

A democracia americana é muito especial. Basta analisar o impacto no resultado das eleições dos investimentos do grande capital, nas suas causas e nos seus candidatos.

Um círculo vicioso, onde bilionários que acumularam riqueza graças aos políticos que compraram, o que lhes dá ainda mais meios para influenciar a política americana.

O controlo dos bilionários sobre a democracia americana é largamente invisível. Como um recente estudo do The Guardian mostrou, há os bilionários que estão sob a luz dos ,holofotes, como Warren Buffett ou Bill Gates, mas estes são a excepção não a regra.

Na verdade, "a maioria dos maiores bilionários americanos fizeram doações substanciais de centenas de milhares de dólares por ano, para não mencionar" as contribuições especiais "-para os candidatos republicanos conservadores e funcionários que apoiam, por exemplo, a redução muito impopular da segurança social. "No entanto, ao longo dos últimos anos 97% destes bilionários nunca manifestaram formalmente qualquer opinião sobre a segurança social

Pode ser que de vez em quando os interesses dos americanos da classe média sejam os mesmos que os dos bilionários. Mas essa é a excepção e certamente não a regra.

Anónimo disse...

Ó Lavoura, "períodos" é na América. Aqui, é mesmo "parágrafos"!

Anónimo disse...

"... Trump dá um exemplo da democracia que ele compreende: a brutalidade, a força, o gesto imperial. Como no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria, na América Latina....". Trump?.
Do Afeganistão Trump tenta retirar, a custo, de uma invasão que outros PRs realizaram.
No Iraque, Sadam invadiu um País vizinho e houve uma larga cologação. Não foi Trump.
Na Líbia vários países europeus exigiram a participação do EUA (força aéra). Não foi Trump.
Na Síria Assad insistia em desimar 90% das "outras" etnias. Não foi Trump, que aliás tenta retirar.
Na América Latina ?. Estamos a falar de Noriega?.
China e UE (Alemanha) não têm tido relações comerciais equitativas com os EUA. Trump quer re-equilibrar essas relações. A França de Macron está próximo de um passar um mau bocado....
Afinal, HOJE em dia, Trump é só o PR, dos EUA. Convém atribuir a Trump (só) o que é de Trump.

Joaquim de Freitas disse...

Francamente, esperava pouco ou mesmo nada, encontrar aqui um « trumpista” capaz de separar, para o absolver, a responsabilidade dum presidente dos EUA, nas guerras americanas.

Escrevi: “Trump dá um exemplo da democracia que ele compreende”. Não escrevi que foi ele que as desencadeou.

Mas foi a “democracia” da qual ele é o presidente, que as desencadeou.

No Iraque, os EUA, com a sua coligação de lacaios, Blair, Azenar, Durão Barroso, foram buscar as AMD, que não existiam. Mas o petróleo, esse existia.

Na Líbia, os EUA puseram a NATO à disposição de Sarkozy, para derrubar um Estado, que exercia o seu direito de combater uma milícia islamista, que pretendia separar uma parte do país.
O “Veni, Vidi, Vici” de Hillary Clinton, após a sodomização de Kedafi, significava “ Temos o Petróleo”. Entregaram o país à dezena de milícias islamistas, que vendem agora humanos no mercado dos escravos de Tripoli. E nos submergem de migrantes …aqueles que não se afogam no Mediterrâneo.

Na Síria, tenho o anónimo conhece pouco ou nada do grande projecto de pipeline dos emirados, que devia atravessar o território sírio para abastecer Israel….Mas havia Assad.,.que também tem o seu petróleo … e um aliado de peso!

Mas havia também Al Nosra, Daesh, Al Qaïda , aquilo que chama “etnias” (!) que bem financiados e armados pela grande democracia americana deviam abrir o caminho. Mas encontraram um osso: os Russos em Latakya… Quando Trump enviou 70 mísseis sobre um hangar vazio na Síria, enquanto comia o seu bolo de chocolate, foi com a autorização de Putine…A França também lá estava, mas metade dos mísseis não partiram..Novo produto, insuficientemente experimentado… Acontece , na industria …

“Na América Latina? Estamos a falar de Noriega? escreve ! .” Não. Não… Do Chile, da Grenada. da Nicarágua, do Guatemala , do Panamá, do Salvador, etc., e dezenas de outros. Pode escolher, o catálogo é vasto….

A guerra comercial de Trump, vai destruir, a prazo, 350 000 empregos nos EUA, reduzindo a zero o benefício da reforma fiscal. As guerras comerciais são facas de dois bicos …

Anónimo disse...

Até que enfim. Concordo que As intercalares foram um derrota para o Trump, sobretudo que só às eleições para. Câmara dos RRepresentantes são eleições nacionais e as únicas que podem corresponder ao referendo sobre Trump em que ao que dizem ele quiz transforma este escrutínio. As eleições para o Senado não são comparáveis. São no máximo em 1/3 dos Estados e m termos estatísticos não significam nada. Basta dizer que embora os Rep tenham ganho2 lugares perderam em grande em votos. E convém lembrar, primeiro que não é verdade que os incumbents percam sempre as eleições, acontece 2ou 3 vezes nos últimos 30 anos e estando a economia como está o normal era que os Republicanos ganhassem. Ainda não li um jornal Anglo saxonico a defender o cinismo “inteligente “ é cansativo dos nossos comentadores de que quem ganha perde
Fernando Neves

Obrigado, António

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