segunda-feira, novembro 19, 2018

Selassie


O “Diário de Notícias” semanal (está cada vez melhor a edição dominical em papel e, um destes dias, inscrevo-me como assinante pago da edição digital diária) traz ontem esta fotografia do “venerando chefe de Estado”, Américo Tomaz, a receber, na Praça do Comércio, o “negus” da Etiópia, Heile Selassie.

Estava-se em julho de 1959. O governo de Salazar tinha, por essa altura, percebido já que a grande “vitória diplomática” da entrada de Portugal para a ONU, quatro anos antes, estava a “sair-lhe pela culatra”. As Nações Unidas passaram a ser uma espécie de tribunal no qual Portugal era, dia após dia, fustigado perante o mundo pela sua relutância em descolonizar, dando assim lastro aos movimentos independentistas que, em Angola (1961), na Guiné (1963) e Moçambique (1964), viriam a iniciar movimentos de guerrilha que se transformaram nas guerras coloniais que Portugal teve de suportar até 1974.

Trazer o imperador da Etiópia a Portugal, dando-lhe uma receção de Estado com todo o foguetório coreográfico que a ditadura conseguia mobilizar, era uma óbvia operação de “marketing” para tentar cativar um reconhecido líder africano. O tempo viria a provar que o sucesso da iniciativa não iria, contudo, ser muito.

Um “número” quase idêntico havia sido feito à soberana britânica (1957), num tempo em que o regime procurava preservar a tutela protetora do Reino Unido no plano internacional e ainda sonhava que poderia vir a mobilizar a “velha aliança” para as suas pretensões de se manter nas “possessões ultramarinas”.  Anos depois, aquando da invasão de Goa, Damão e Diu (1961) pela União Indiana, Londres deixou claro que não estava disponível para ir nesse caminho. 

Um ignoto e efémero presidente brasileiro, Café Filho (que herdou a presidência por morte de Getúlio Vargas) também já havia tido “restolho” protocolar similar (1955), antecedendo o que mais tarde também seria proporcionado a Juscelino Kubitschek (1960), sempre na tentativa de conservar o Brasil no apoio internacional à política colonial portuguesa. Em vão, como se iria ver, com a ditadura militar brasileira a desprezar as pretensões diplomáticas de Lisboa e a colocar o seu país, de forma permanente, ao lado de quantos, na ONU, se afastavam das políticas do regime salazarista. As duas ditaduras que então monopolizavam o espaço mundial da língua portuguesa nunca se entenderam muito bem.

No plano interno, a legitimidade do regime havia sido, entretanto, fortemente posta em causa nas eleições do verão de 1958, com a candidatura do general Humberto Delgado a provocar um abalo político que demoraria anos a ser digerido. Entre 12 de janeiro e 20 de abril de 1959, o general, temendo ser preso, esteve refugiado na embaixada brasileira em Lisboa, depois de obtido um polémico asilo diplomático. O caso de Delgado, que viria a ser assassinado mais tarde (1965), em Espanha, pela polícia política de Salazar, estava assim ainda muito fresco nesses dias de visita do imperador etíope. 

Nesses dias da visita do “negus” etíope, que a imagem do DN de ontem documenta, alguma imprensa internacional, seguramente adubada por setores oposicionistas portugueses, havia posto em causa a legitimidade de Américo Tomás em poder usar o título de presidente de Portugal, argumentando com a imensa fraude eleitoral que ferira de legalidade o sufrágio. O próprio Humberto Delgado, no Brasil, proclamava então ser o presidente a quem fora usurpado o cargo.

Foi nesse contexto que, aquando da visita do imperador, surgiu então uma anedota, como muitas que, nesses tempos de ditadura, emergiam como uma espécie de resistência “soft”, de denegrimento pelo humor, muito ao jeito do ambiente dos cafés da época. A “história” que se contava é que, ao receber o imperador etíope, no Cais das Colunas, Tomaz se teria apresentado dizendo: “Eu sou Américo Tomaz, presidente de Portugal”. O visitante, segundo a graça, ter-lhe-ia respondido: “Eu Selassié” - soando a “sei lá se é”...

Pequenas historietas de um tempo bem triste da nossa História.

13 comentários:

Anónimo disse...

Caro Francisco,

A visita de Isabel II a Portugal teve lugar em 1957 e nào em 1955.

Em 1960 vieram ainda a Portugal os reis da Tailândia e o Presidente Soekarno, da Indonésia. Conta-se que este líder de Bandung terá feito exigências “protocolares” de ordem privada que causaram algumas preocupações a Salazar.

Um abraço

JPGarcia

Luís Lavoura disse...

Este post dá a impressão que o único objetivo da política externa portuguesa era a manutenção das colónias. Portugal recebia os chefes de Estado estrangeiros apenas e tão-somente para que eles ajudassem Portugal a preservar as suas colónias.
Eu diria que, provavelmente, Portugal teria nesse tempo muitos objetivos na sua política externa, entre os quais a preservação das colónias seria sem dúvida um, mas não o único.

Anónimo disse...

Tinha mais ou menos dez anos e lembro muito bem das multidões a aplaudir não só selasié, como a rainha de Inglaterra, o gen Eishenaur, num cadillac na esquina da Artilharia um e todos os outros que diz: foram festas na rua,

João Vieira

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Essa está boa!
Mas apesar de todo o anedotário em torno de Américo Tomáz, o dito foi bastante contumaz na defesa dos interesses dos ultras no tempo de Marcello Caetano, o que o retira do estatuto de mero corta-fitas para uma espécie de zelador da herança do botas.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro JPG. Grato. Foi confusao com o CF. Abracao

Anónimo disse...

Bem me lembro desse “Eu Selassié” - soando a “sei lá se é”. Nesses tempos cumpria eu o "Serviço Militar Obrigatório" no extinto quartel de Artilharia I, na rua de Artilharia Um. em Lisboa. Estive na parada da Praça do Comércio, e o que lembro também, foi um camarada que estava ao meu lado ter desmaiado com o calor intenso nesse dia.

Reaça disse...

Nunca Portugal deu tanto nas vistas, é que ainda a seguir tivemos o Eusébio e a Amália, hoje só ja temos o coitado do Cristiano Ronaldo como exemplo máximo do grande Portugal moderno.

Desfazer do Portugal de ontem,em que naqueles tempos salazaristas falava-se em português daqui e do Brasil em todas as rádios nacionais em toda a volta do mundo (360º)mais que uma vez diariamente, em que mensalmente Portugal era sancionado nas Nações Unidas sem conclusões aparentes, em que apesar do berreiro anticolonialista e antisalazarista, o país se aguentou em luta, 6 anos só com a memória do Salazar, (andou 6 anos por inércia, tal o impulso), desfazer desse Portugal, é não reconhecer que Portugal voltou a ser ele próprio pelo menos durante 13 anos.

Leão do Fundão disse...

Sr Embaixador;

A vinda de Juscelino a Portugal (Belmonte e Fundão), foi obra de António Paulouro e do Jornal do Fundão, à revelia do Governo de então e que acabou por fazer um aproveitamento político do facto.

A prová-lo é que nessa visita à Beira-Baixa, nunca aparece nenhum membro do Governo e nas inúmeras fotos do acontecido, Juscelino está sempre acompanhado por António Paulouro e Negrão de Lima (Embaixador do Brasil, em Portugal)

Com os melhores cumprimentos

Leão do Fundão

P.S. - Numa ou noutra fotografia da época, ainda apareço eu (Com 10 anos), a correr ao lado do descapotável em que eles agradeciam à multidão e com uma bandeira do Brasil, na minha mão.

Francisco Seixas da Costa disse...

Ao Leão do Fundão: a visita a que me referi no texto foi a oficial, em 1960. A ida ao Fundão foi em 1963

Anónimo disse...

Na minha versão da estória do João Pedro Garcia, Sokarno, terá pedido umas "louras". Espantados com o pedido o Ministério pediu instruções a Salazar que respondeu: em Queluz nem pensar! Discretamente nas avenidas novas. E assim terá sido deslocando-se o convidado em carro discreto e voltando a horas de iniciar compromissos a partir de Queluz.
João Vieira

Leão do Fundão disse...

Obrigado pela correcção sr Embaixador.

Desconhecia essa visita de 1960, era eu então muito novinho, daí só me lembrar da outra visita.
Quem sabe, sabe!

As minhas desculpas e obrigado !


Leão do Fundão

Anónimo disse...

Já agora, Luis Lavoura, qual o(s) outro(s) objectivo(s)?

José João Roseira disse...

Lembro-me de que, no fim da visita, surgiu outra piada:
Thomaz ter-se-ia despedido com:
- "Adeus insigne viajante!"
e recebera como resposta:
- "Adeus insigne ficante!"

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...