sexta-feira, novembro 23, 2018

Demasiada memória


(Ontem, ao final da tarde, ao sair de um debate no mosteiro dos Jerónimos, olhei a igreja e decidi entrar. Nunca são demais as oportunidades para apreciar aquele monumento. De um lado está o túmulo de Vasco da Gama, do outro o de Luis de Camões. Uma coroa de flores mostrava que o poeta tinha sido homenageado. Fui ver por quem: João Lourenço, presidente de Angola. Lembrei-me, então, deste texto que, há mais de seis anos, escrevi neste blogue. Os leitores compreenderão porquê.)

Há dias, um amigo dizia-me, levemente crítico, que eu tinha "demasiada memória". Para logo esclarecer: "é que tu lembras-te, às vezes, de certas coisas que mais valia a pena teres esquecido...". Talvez seja verdade. Com frequência, tenho esse tropismo de me recordar de assuntos que outros arquivaram em dossiês de conveniência, que não querem voltar a consultar. Como os leitores deste blogue já se devem ter apercebido, não o faço para visar especificamente ninguém, mas apenas como testemunho de quem acha que, sobre o que conhece, deve tentar "to set the record straight".

Vem isto a propósito de um recente editorial do "Jornal de Angola" que provocou algumas ondas de choque em Portugal, felizmente tratadas já com bom senso e sentido de equilíbrio.

O tema, contudo, fez-me "regressar" a Luanda, aos mais de três anos que por lá passei, entre 1982 e 1986, quando servi na nossa embaixada local. As relações oficiais entre Portugal e Angola eram então muito tensas, fruto da terrível guerra civil que marcava ao quotidiano angolano e da circunstância de certos setores da oposição ao governo de Luanda terem Lisboa como palco privilegiado para a sua afirmação pública. 

A argumentação de que muitos dos titulares das posições do partido do "galo negro", da UNITA, tinham nacionalidade portuguesa e de que, por essa razão, nada os impedia de se reunirem politicamente em Lisboa e daí atacarem, nos nossos media, o governo angolano, não era aceite, porque as autoridades angolanas entendiam que os sucessivos executivos lisboetas tinham o dever político de não permitir a expressão dessas vozes, que davam cobertura a um movimento que combatia, de forma violenta, o poder instalado em Luanda.

Debalde nós tentávamos explicar aos nossos interlocutores locais que a liberdade de imprensa era uma conquista daquele mesmo 25 de abril que abrira caminho à independência angolana e que, no nosso país, nenhuma ideologia, nem nenhum político, estava isento de ácidas críticas, a começar pelos próprios membros dos nossos governos. Mas essa uma "guerra" perdida, nos tempos em que uma certa elite lusitana mantinha um persistente fascínio por Jonas Savimbi, que então organizava os seus "Jamba tours", de onde esses convidados saíam deliciados com tudo o que por lá os deixavam ver, desde logo a começar pelo patético "sinaleiro" (que nos dava um jeitaço, agora, no Marquês!). E ai de quem os tentasse então convencer de que, por detrás da sua suposta bonomia africana, Savimbi era um promotor de atrocidades, hoje bem documentadas e incontroversas.

À época, os editoriais do "Jornal de Angola" contra Portugal sucediam-se. A embaixada portuguesa em Luanda optara por não reagir, deixando que essa catarse mediática não fosse estimulada por um contraditório que se via como de escassa eficácia. Por isso, líamos matinalmente essas colunas agressivas e, através delas, apenas íamos medindo a febre de acrimónia contra Lisboa, esperando que o tempo a atenuasse, como fe facto acabou por suceder.

Um dia, vi publicado um texto de rara violência, já não sei bem a propósito de quê. Nele se referia que Portugal, crismado como o "miserável país das caravelas decrépitas" (nunca esqueci esta flor de retórica lusofóbica), era um colonizador frustrado, porque, contrariamente a outros, não deixara em Angola nenhuma herança positiva.

Sem consultar o meu embaixador, tomei a iniciativa de telefonar ao autor do texto, uma pessoa que eu tinha tido ocasião de conhecer pessoalmente, através de amigos angolanos. Era um jornalista e escritor de bastante mérito, nascido em Portugal, creio que em Loures, que vulgarmente usava um pseudónimo que substituía o seu nome português, como então era vulgar em Angola. Disse-lhe que tinha lido o seu texto com interesse e que queria "felicitá-lo" pelo mesmo.

Do lado de lá da linha, a resposta foi a esperada: "Você está a gozar comigo?". Respondi-lhe que não estava e que o texto, cuja liberdade de apreciação sobre Portugal eu não contestava, comportava, contudo, uma evidente contradição, de que ele talvez não se tivesse dado conta, mas que era a única razão do meu telefonema. O meu interlocutor estava cada vez mais perplexo, até pela deliberada cordialidade que atravessava o meu discurso.

Pelo que decidi explicar: "O seu texto, independentemente do conteúdo agressivo contra o meu país - o mesmo, aliás, onde você nasceu -, está extremamente bem escrito e exprime, de forma brilhante, uma leitura crítica face ao comportamento do meu governo. Embora eu não concorde, rigorosamente em nada, com aquilo que escreveu, quero dizer-lhe que entendo que você está no pleníssimo direito de exprimir o que pensa, embora eu imagine o que "por aí iria" se, lá em Lisboa, o "Diário de Notícias", que nem sequer é um jornal oficioso como o seu, se abalançasse a escrever um coisa de natureza similar sobre o governo angolano. Mas não é essa, hoje, a minha questão. O que eu queria sublinhar é que o texto está redigido num português exemplar, numa escrita de grande elegância estilística. Ora você diz, nesse mesmo texto, que nada ficou em Angola de herança lusitana! E essa língua em que você escreve tão bem? É uma herança de quem? Ou será que você é capaz de escrever um editorial em quimbundo, em umbundo ou em chocué, que qualquer angolano que saiba ler possa perceber? E em que língua se publica o "Jornal de Angola"? Que outra língua une hoje Angola? Essa é ou não é uma herança do tempo colonial?".

Já não me recordo da resposta do meu interlocutor, que terá sido, com toda a certeza, inteligente e informada, porque era alguém com uma grande qualidade intelectual e política. Uma figura infelizmente já desaparecida."

7 comentários:

Anónimo disse...

O David Zé dava-lhe o editorial pedido em kimbundo.

Anónimo disse...

Mas ficaram lá muitas coisas nossas, mesmo. Ficaram as infraestruturas: as estradas, os caminhos de ferro, os aeroportos, os portos, os mercados, os palacetes, as casas onde eles ainda vivem...

E ficou uma grande quantidade de arquitetura "prá-frentex" que devia ser protegida por aqueles selvagens que deixaram estragar tudo. Arquitetura que frequentemente se vê ser elogiada na internet por gente de todo o mundo (Maputo está cheia dela).

É de chorar o que aconteceu aos faróis ao longo da costa ou ao complexo da Baía dos Tigres.

Luís Lavoura disse...

você é capaz de escrever um editorial em quimbundo, em umbundo ou em chocué, que qualquer angolano que saiba ler possa perceber?

Se a colonização portuguesa não tivesse existido, então não existiria um país com a extensão de Angola, pelo que nenhum atual angolano teria qualquer necessidade de se fazer entender por todos os atuais angolanos. Bastar-lhe-ia fazer-se entender pelos da sua tribo e, quando muito, pelos de algumas outras tribos vizinhas. Pelo que, o conhecimento de quimbundo, umbundo ou chocué (consoante a região de Angola em que vivesse) ser-lhe-ia de facto suficiente.

Retornado disse...

Não fosse a Guerra de 13 anos, a Guerra do Ultramar, aguentada até ao tutano, não tinha sobrado nada, nem uma virgula... em português!

Nem aquelas fronteiras.

Portugalredecouvertes disse...

muito bonito:

Testamento


À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro…

E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda…

Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus…

E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,

Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor…

Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora…

Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua…


Alda Lara
poetisa angolana
Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque nasceu em Benguela a 9 de Junho de 1930 e ali passou grande parte da sua infância com o irmão, Ernesto Lara (Filho). Nascida numa família abastada, foi criada no característico meio crioulo das Acácias Rubras da década de 30... https://www.facebook.com/FascismoNuncaMais/posts/alda-lara-1930-1962-médica-escritora-conferencista-foi-uma-mensageira-da-socieda/717016188407763/

Joaquim de Freitas disse...

Os Portugueses e não só, se lamentarão ainda nos próximos séculos, da aposta perdida da colonização. Mas quantos reflectiram sobre o que a fundamentou?
Poucos foram aqueles que analisaram a diferença entre a colonização latina, na África e na América Latina, e a colonização anglo-saxã na Austrália, na Nova Zelândia, e na América (EUA e Canadá).

Porque houve uma grande diferença:

Uns, ocuparam e colonizaram para explorar as riquezas, que traziam em seguida para a Metrópole. Isto foi ainda mais evidente no Brasil. A árvore das patacas era abanada rapidamente, porque tal era o objectivo da emigração. Ficar rico depressa.

Os países considerados latinos tiveram uma colonização de exploração, ou seja, apenas forneciam riquezas oriundas da natureza (madeira, pedras preciosas, entre outros) e cultivavam produtos tropicais (cana-de-açúcar, café, borracha, entre outros). O resultado dessa intensa exploração, foi que os países latinos herdaram desse período um grande atraso sócio económico que se reflecte nos dias actuais.

Os brancos nunca viram os negros como concidadãos, mas antes como mão-de-obra disponível, barata e domesticada. Essa mentalidade persiste hoje no Brasil, e é um dos problemas mais agudos da sociedade brasileira, racista.

Por outro lado, os países que fazem parte da América Anglo-saxónica tiveram uma colonização de povoamento. Isso quer dizer que o interesse da metrópole era povoar e desenvolver o lugar. Nesse tipo de colonização a intenção não estava ligada à exploração de riquezas com a finalidade de enviá-las para a metrópole, e sim de abastecer os próprios habitantes. Em suma, as riquezas produzidas permaneciam no país. Essa característica foi de fundamental importância para que países como Estados Unidos e Canadá se tornassem grandes nações, sendo o primeiro a maior potência mundial.

O factor determinante para o desenvolvimento ou subdesenvolvimento dos países americanos e africanos, está ligado a factos históricos. A forma de ocupação é raiz das condições actuais desses países

Recordo que quando fui a Moçambique em missão comercial nos anos 50 e 60 como Português, (ainda não tinha emigrado para França), devia ter um passaporte., como se viajasse para um país estrangeiro.

Retornado disse...

Nas colónias anglo saxonicas só os anglo saxões é que mandavam e exploravam, nas latinas aquilo era o-da-joana.

Nas colónias anlosaxónicas africanas, nunca em plena guerra fria os não alinhados e os comunas se intrometeram, que os bifes não permitiam, quer diplomaticamente quer militarmente.

Os ingleses é que sabiam como "enfiavam" o cofió!
.
Os portugas copiámos o cofió e outros modos ingleses, mas não sabíamos enfiá-lo.

Explorou mais o Rhodes em 20 anos que os portugas em 500 anos.

Nem explorámos, nem saíamos de cima, diziam aqueles que agora exploram «Luanda».

Eles lá sabiam!

Agora andamos a aparar alguns africanos com boias no mediterrâneo.

Quem já se safou deles, ao abandonar o shengen, foram os anglosaxónicos.

Temos sorte aqui, que poucos gostam de morar na cova-da-moura, logo que podem partem para Paris.

A propósito de Brasil, ou Argentina ou Chile, foram os anglosaxonicos e os germanicos e o mundo inteiro que colonizou, abusou de tudo aquilo que os latinos-ibéricos lhe puseram à disposição.

A única diferença entre americanos e brasileiros, é que os brasileiros acusam os portugueses de terem matado os índios todos, os americanos não acusam os ingleses desse crime, acusam os cow-boys.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...