terça-feira, agosto 28, 2018

A boleia



Hesitei por um instante, mas nem sequer abrandei. O casal que, ao final da tarde de ontem pedia boleia para Bragança, na A4, à saída da área de serviço de Águas Santas, no Porto, olhou para mim, a conduzir sozinho, com uma visível esperança. Mas em vão. Não parei.

Há mais de 50 anos, em dois verões, atravessei a Europa, pedindo boleia. Da primeira vez, parti sozinho, da Rotunda do Relógio, em Lisboa, e, semanas depois, cheguei quase à fronteira sueca com a Noruega. Andei assim, à boleia, nesses anos, muitos milhares de quilómetros, dormindo em “pousadas de juventude” e em alguns outros pousos noturnos menos curiais. Às vezes, fazia percursos com ocasionais companhias, conhecimentos de circunstância. Na maioria dos casos andava sozinho. Ser filho único ajuda muito a gerir (e a saber apreciar) o estar só.

Há meses, encontrei lá por casa um velho bloco de folhas brancas, de argolas. Era desse tempo. Usava-o para escrever, com um marcador negro, as cidades para onde pretendia ir. Mostrava-o aos automobilistas que passavam. Para envolver esse bloco - imaginem! - eu tinha mesmo uma capa plástica, creio que para os dias de chuva! Era de uma organização meticulosa, dos medicamentos à higiene e às roupas, que levava na mochila. Tenho histórias deliciosas (outras mais banais) desses tempos, desses muitos dias que bem me ajudaram a olhar (e a desejar conhecer melhor) o mundo exterior, face ao Portugal muito fechado em que vivia.

Por que é que não dei boleia ao casal que ontem queria ir para Bragança? Por que não parei, precisamente há uma semana, ao ver um outro casal, à saída de Viana do Castelo (ela tinha um sorriso lindíssimo!), que mostrava um letreiro “Porto”? Por que é que, há décadas, nunca dou boleias? 

Não sei bem, ou melhor, sei. Porque, embora sem a menor razão, fui acumulando uma desconfiança, um receio do desconhecido, um comodismo legitimado pelo alibi do risco potencial de abrir a porta do meu carro a estranhos. Tenho a sensação de que, na maioria dos casos, até acharia graça à conversa com esses companheiros eventuais de viagem, quase sempre estrangeiros. Aprende-se sempre alguma coisa com quem é diferente de nós. Mas a verdade é que não arrisco. Há um leitor do “Correio da Manhã” dentro de mim, um prenúncio de que algo pode correr mal, de que essas pessoas podem ser algo mais do que inocentes passageiros da sua liberdade. 

Confesso que sinto uma raiva imensa por, agora, pensar desta forma. E essa raiva é ainda maior, e é quase uma vergonha, quando me recordo das largas dezenas de pessoas que, pelas estradas da Europa, me acolheram generosamente nos seus carros, algumas que insistiram em pagar-me um copo, outras que partilharam farnéis, outras ainda que me ciceronearam com orgulho pelas suas terras. Algumas com quem embarquei em histórias que não vêm ao caso. Caramba! Eu andava pelos 20 anos! Cruzei-me então com gente bem agradável. Devo-lhes muito.

“Isso foi há mais de 50 anos! O mundo mudou!”. Ouço essa voz cá dentro e obedeço-lhe, numa cobardia que, infelizmente, assumo.

19 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

E tem razão, Senhor Embaixador. O risco é real, mesmo se são mulheres…Nas estradas da boleia hoje circula certamente boa gente, mas a escumalha do mundo também. E quando nos apercebemos pode ser tarde.

Anónimo disse...

Há uns tempos, na Segunda Circular (LX), duas louras com pouquíssima roupa pediam boleia à beira da estrada. A cena era quase arrepiante. O que me fez impressão não foi o que poderia suceder ao condutor mas sim a raparigas que se expunham daquela forma, sujeitas a apanhar um tarado que lhes desse boleia motivado, apenas, pela líbido. Inconscientes?

Por outro lado lembro-me de um sujeito que achava especial graça a dar boleia a prostitutas que ele sabia estarem a pedi-la (a boleia), numa certa zona de uma cidade nacional. As conversas com elas parece que tinham, para ele, um particular interesse socológico.

Anónimo disse...

Pois....

Com a idade percebemos bem que somos mortais e por isso preferimos uma morte digna.

Quando se é jovem a morte ou os acidentes são sempre incidentes que não nos dizem respeito.
Os tempos também mudaram muito, mesmo muito.
Já não se conhece nem a ética nem a estética.
É sempre a aviar sem complexos.
A vida tornou-se uma perigosa aventura a qual na nossa juventude era só a experimentar, sem consequências pois as drogas não eram quimícas nem muito aditivas.

Ele é o progresso social tão desejado por muitos.

[ Quando olho para trás muitas vezes penso de mim: Quem era aquele gajo que não parava para pensar nas possiveis consequências de um acto irreflectido que poderia provocar-me um risco de vida.]

Anónimo disse...

No maior país do mundo - os EUA -, a boleia é uma instituição que até já gerou clássicos da literatura. Apesar de todos os perigos, o sentido de partilha e a genuína bondade de grande parte da população americana continua a manter viva a "aventura" da boleia.

Com bom senso, a vida pode continuar agradável.

Carlos Fonseca disse...

Também não dou boleia a desconhecidos. Embora me sinta desconfortável porque me lembro que durante sete meses houve sempre alguém, que não me conhecendo de parte nenhuma, me dava boleia entre Setúbal (onde estive durante parte do serviço militar) e Cacilhas.

Alguns desses benfeitores nem iam para Cacilhas, mas percorriam mais alguns quilómetros para me deixarem lá.

Serão outros os tempos, é certo, mas talvez também seja certo que os tempos me endureceram.

Anónimo disse...

Anónimo 28 de agosto de 2018 às 12:40

"No maior país do mundo - os EUA"

Maior pais do mundo... em quê ?

Anónimo disse...

@ Carlos Fonseca

Nunca pensou que aqueles condutores que lhe davam boleia poderiam pensar que ao ajudar um elemento do exécito, fardado, ( como a outra banda era conhecida como do reviralho) poderiam realizar que estavam a ajudar a guerra no ultramar e por isso até faziam mais um desvio para o deixar em Cacilhas.

Enfim cada um tem as suas referências para interpetar os seus sucedidos.

António Pedro Pereira disse...

Anónimo das 22:29, 28/08/18,
Disse: «... poderiam realizar que estavam a ajudar a guerra»
Podiam realizar?
Não percebi.
Correndo o risco de me enganar, quase apostava que o senhor é um crítico da Educação no nosso país (quem não é?, achando que hoje não se aprende nada.
Depois, brinda-nos com este mimo.

Anónimo disse...

@ Manuel Santos.
O seu escrito parece daqueles comentários feitos em algumas universidades durante uma defesa de tese, na qual o autor gastou alguns anos de trabalho original e um dos elementos do juri apenas se ocupa dos erros de escrita por não saber nada do conteudo.
Devia ter comentado o conteudo do meu escrito...
Mas são os pensadores que temos e por isso....Esta extrema falta de capital(?) intelectual .

Anónimo disse...

@ Manuel Silva
Poderiam realizar= poderiam aperceber-se.

Já compreendeu???

Anónimo disse...

@ Manuel Silva

O que critíco na instrução em Portugal, porque a educação é dada em casa se a tiverem, não é a escrita mas sim os conteúdos da mesma para os alunos poderem analisar o que os rodeia e formarem ideias próprias sem recorrer a chavões.

António Pedro Pereira disse...

Responder a Anónimos na esperança de saber a quem nos dirigimos é como ter esperança de acertar no Euromilhões:
Eu chamaria outra coisa aos Anónimos, mas fico-me por aqui.
Realizar = tornar real; praticar; conseguir; converter em dinheiro; produzir (Dicionário da Porto Editora)
Realizar = tornar real; praticar; efectuar; converter em dinheiro ou em valor monetário (Dicionário Bertrand, de Cândido de Figueiredo)
Realizar = fazer que tenha ou ter existência concreta; traduzir em facto concreto, em realização efectiva; concretizar; efectivar; produzir; dar forma; converter em dinheiro ou equivalente (Dicionário Houaiss)
Em nenhum dos três dicionários realizar significa compreender.
Aliás, o Houaiss tem o cuidado de acrescentar a nota seguinte: realizar no sentido de perceber, compreender, é um anglicismo semântico a evitar.
Portanto, chamar a atenção para o erro nunca devia ser REALIZADO pelo interpelado como sinal de sapiência ou de arrogância por parte do interpelador, antes como um simples acto de corrigir o que está errado.
E se não nos corrigimos uns aos outros quem o faz?
Com o desenvolvimento das redes sociais, cada vez aprecio mais o saber dos ditados populares: «Quanto mais ignorante mais convencido da sua sabedoria universal.»
O que confirma o que disse Umberto Eco: «As redes sociais dão hoje o direito à palavra a uma legião de imbecis que antes falavam apenas num bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a colectividade". Normalmente eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra de um Prémio Nobel. Segundo Eco, a TV já havia colocado o idiota da aldeia num patamar no qual ele se sentia superior. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.»

Anónimo disse...

@ Manuel Silva.

"Aliás, o Houaiss tem o cuidado de acrescentar a nota seguinte: realizar no sentido de perceber, compreender, é um anglicismo semântico a evitar."

"My mother language was british."

Sou um internacional e não desgosto nada.
Se tivesse ficado aqui agarrado a este rectangulo, sem horizontes, talvez fosse tão intolorante quanto o Sr. [racismo primário]
Felizmente tive condições intelectuais para estudar "abroad" e conhecer outras mentalidades o que me deu a certeza de que não há NINGUÉM que saiba tudo e que os dicionários nem sempre chegam para o saber senão livresco, o que é pouco.
É curioso o empenho que faz em demonstrar que sou um ignorante. A isso chama-se arrogância paroquial.
Até porque senão fosse a net, não haveria razão nenhuma para nos cruzarmos como anónimos ou nomes de guerra.
Não lhe envio cumprimentos.

António Pedro Pereira disse...

Porque se acobarda no anonimato?
Eu identifico-me com dois dos meus quatro nomes (e posso prová-lo).
É mais claro, mas talvez menos british, talvez.
Pela sua lógica, não devia haver dicionários, muito menos gramáticas.
E revisores de livros e de jornais e revistas, muito menos.
Talvez isso explique, em parte, o sucesso da nova literatura light.
Já percebi que também é muito light.
Não sabe o que perde em nunca ter lido Eça, Camilo, Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro ou José Cardoso Pires.
Eram pouco british e jamais escreveriam realizar em vez de compreender.
Se fossemos adoptar todos os anglicismo semânticos possíveis, passaríamos a falar a Língua dos hipotéticos Marcianos.
Mas o senhor jamais perceberá isso.

Anónimo disse...

@ Mamuel Silva

Não só sou anónimo como também sou não-politizado.
Como se calhar pensa que sou o que se chama escória humana, e também aqui apelidado pelo nosso "host" de "cobarde" por ser anónimo, devo ser um caso perdido. Não me queira arregimentar para eu aprender aquilo que o Sr. sabe.

Camilo é um drama constante, de tal forma que se matou.

Eça é uma graça, porque tanto dá uma no cravo e outra na ferradura para não perder o poleiro de Cônsul em Paris. Durante a sua carreira de Cônsul pouco escreveu sobre a sua actividade profissional: em Cuba por via do problema das migrações dos chineses e depois em Bristol e Newcastle devido às greves dos mineiros de carvão. E é tudo.
Os outros autores que apresenta são apenas representativos de uma escola, local, potuguesa de autores. Quais terão sido traduzidos para nos conhecerem melhor fora do país não sei, para além do Pessoa.

A sua "verve", violenta, interessa-me pouco.
Sem cumprimentos.

Anónimo disse...

@ Manuel Silva.

"Se fossemos adoptar todos os anglicismo semânticos possíveis, passaríamos a falar a Língua dos hipotéticos Marcianos."

Se comunica através da net [rede] tem de ter americanizado muito o seu léxico. Cuidado que isso não é a lingua de Shaskespear e é sim essa "Língua dos hipotéticos Marcianos".

Anónimo disse...

Ao Sr. Manuel Silva.
Ao escrever o seu comentário das 20:50 encontra-se o paragrafo abaixo copiado:
"É mais claro, mas talvez menos british, talvez."
Se tivesse reticências no final podia ser aceitavel para um estrangeirado como eu. Como não tem....
Nem cumprimentos leva.

Anónimo disse...

Ao reler o seu comentário das 20:50 não resisto em citá-lo em dois paragrafos seguidos:
"Talvez isso explique, em parte, o sucesso da nova literatura light.
Já percebi que também é muito light."

Numa primeira leitura parecia que me estava a elogiar pois "light" em inglês também pode ser luz.
Numa segunda leitura é que "realizei" que o que o sr. queria dizer era que eu era muito ligeiro de conhcimentos. Ou seja sem estrutura mental sofrivel.
Fico no entanto na espectativa de uma sua confirmação.

Ainda sem cumprimentos.

Anónimo disse...

@ Manuel Silva. 29 de agosto de 2018 às 20:50

Li há pouco o abstracto de um livro que dizia assim:

"Writers make mistakes, especially when writing quickly. Students make mistakes, even when writing slowly. Students writing quickly often make lots of mistakes, and they get unintentionally funny. Here are some of them.
In Germany, it appears there's a whole cult that collects these. In America, we largely have the popular British book Eats Shoots and Leaves by Lynne Truss. This collection follows both of those."

Muitas vezes são aquilo que pode dar graça a um texto.

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