sexta-feira, julho 01, 2016

Perceber Schauble




Custa-me ter dizer isto, mas eu percebo muito bem Wolfgang Schauble!
Quando, há dois dias, observei o coro ofendido de vozes lusitanas a adjetivar de insultos, por vezes soezes, o ministro das Finanças alemão, tive um sentimento de compreensão pela atitude daquela figura, que, com determinação germânica, teve a coragem de apontar, com dedo disciplinador, o rumo que entendia melhor para esse relapso país do Sul que nós somos. Um Estado que se permite, de forma que ele lê como absolutamente irresponsável e irracional, colocar no terreno algumas políticas que abertamente contrariam a lógica que ele, e quantos pensam como ele – muito em especial, neste respeitável jornal que tão generosamente me acolhe no seu seio -, acarinham as ideias que ele perfilha, para bem da estabilidade da Europa, da sanidade das suas políticas públicas, das “contas certas” de quantos pensam que, se se quer pertencer a um “clube”, se deve subscrever, custe o que lhes custar, as regras que se assinaram.
Não sou alemão, mas percebo-os muito bem. Os leitores não necessitam sequer de ir a um atlas para se darem conta do que mudou, nos últimos anos, no panorama de segurança do continente. Basta que recuem até ao fim da Guerra Fria, que olhem para a Alemanha desse tempo, pelo meio da qual passava então a fronteira entre o mundo democrático e a Europa autoritária de Leste, tutelada por Moscovo. Pela RFA desses tempos passava a “cortina de ferro” (para utilizar a expressão forte de Churchill, no discurso de Fulton), a senhora Merkel gozava então as delícias frugais de ser uma jovem “pioneira” na RDA, os pacifistas estavam a Oeste e mísseis a Leste, como lembrava Mitterrand. Depois, a URSS implodiu, económica e politicamente, e Reagan e um papa amigo ganharam essa guerra sem necessidade de disparar um tiro. A União Europeia e a NATO limitaram-se a integrar institucionalmente essa nova realidade, como a América indicou que seria a coisa mais sensata a fazer.
Olhem agora, caros leitores, para a Europa de hoje: a Alemanha está, de novo, centrada em Berlim. Entre as suas fronteiras e as da Rússia, sucessora da URSS, há uma “buffer zone” de segurança que lhe confere uma centralidade única. Até se pode permitir adubar as pulsões traumáticas dessa “nova Europa”, criada a Leste pelos alargamentos, esse mundo de aventuras de proselitismo democrático ocidental por terras georgianas e ucranianas, suportado por dinheiros de Bruxelas.
Agora, os britânicos avisam que querem sair da Europa. Em Berlim, passado o primeiro momento de espanto, fazem-se as contas. Que tal recompor, sob a tutela germânica, o “núcleo duro”, agora que Londres desaparece como constante ameaça da afirmação soberanista? A França está em frangalhos, com Hollande a não ser levado a sério por ninguém. A Itália, numa crise só disfarçada pelos esgares de Renzi, é hoje um “joke” na equação europeia. O Benelux é o Benelux, isto é, uma periferia alemã sem identidade e prestígio, desejosa de ser cooptada para um futuro onde possa sobreviver, com bicicletas e bem-estar. Fora dos “seis”, a Espanha e a Polónia não contam, pelas diferenciadas fragilidades que conjunturalmente atravessam.
A Eurozona tutelada por Berlim é, assim, o “core” do futuro. Todo? Não. Expurgado dos relapsos, Grécia e Portugal, num tempo em que as aritméticas políticas retiraram do poder os obedientes amigos locais de Berlim. Fazê-los cair, agravar os sinais que os mercados possam ler como desestabilizantes, fará com que Lisboa e Atenas abandonem progressivamente o mundo “puro” do regenerado euro. Às tantas, até nos podemos dar ao luxo de fazer um “haircut” compensatório na sua dívida, para atenuar o seu “phasing out” do clube, deve estar a pensar Schauble. Como eu o compreendo!

13 comentários:

Anónimo disse...

Fora a ironia, completamente deslocada é, lamentavelmente, precisamente o que se passa! E nós achamos graça de nos pormos a jeito?
João Vieira

Guerra disse...

Bom dia sr. embaixador,
Passo por aqui diariamente pelo menos uma vez, outra mais que uma para reler alguns textos. Também para ler alguns comentários e respostas que o sr. dá.
Agora é para lhe fazer um pedido. Será possível escrever os seus textos sem utilizar tantas expressões em língua estrangeira? Creia que é uma dificuldade, minha, atribuir-lhe a tradução adequada.
Cumprimentos cá da Bila

Anónimo disse...

Nao ha europa sem sul. A europa é uma uniao de culturas, nao é uma uniao economica. Pensar de outra maneira é caminhar para a desagregacao da ue.



Anónimo disse...

Percebe-se muito melhor o superavit da firma MA: "Medalhados & Associados SGPS. Schauble deve estar é invejoso.

Lili Marlene disse...

Ora bem... no inicio das comunidades fazíamos o servicinho aos ingleses, depois passámos para os alemães. Ficou tudo em família. Mau, mau vai ser no dia em que baixarmos as calças aos franceses. No worries.

Joaquim de Freitas disse...

Não sei se as coisas se vão passar assim tão facilmente como a leitura do texto do Senhor Embaixador o faria pensar. A Alemanha deverá contar com o despertar dos povos. Não creio que os povos europeus aceitarão um modelo alemão. Aliás a Alemanha nunca foi capaz de dar à Europa um modelo outro que aquele que era baseado na força bruta. E não é um Schauble que o desmentiria.

Em 1980 a chegada ao poder de Margareth Thatcher abriu a era neoliberal na Europa, depois no resto do mundo. E muitos, os mesmos, apresentavam já o RU como um modelo de sociedade contemporânea tolerante e democrática.
Este acontecimento, percebido como o excepcionalísmo inglês, atingiu pouco a pouco uma escala mundial.

A ofensiva reaccionária contra o “socialismo” declarado por Thatcher levou à destruição do estado social em todo o continente europeu, incluindo nas repúblicas da União Soviética.
A vitória da reacção foi consolidada com o tratado de Maastricht, que fez da União Europeia uma nova prisão dos povos, na qual toda política resistindo ao neo liberalismo é considerada como um ataque à ordem constitucional. Ver a Grécia.

A este ponto o destino das antigas repúblicas soviéticas estava decretado. Mesmo não inclusas oficialmente no processo de integração europeia (no qual só admitiram os estados mais “puros” do Báltico) adoptaram sob uma forma ou uma outra a lógica da privatização e das reformas anti sociais.

O que se passa hoje no RU é o começo duma nova etapa histórica, no decurso da qual se apresentará a ocasião de vencer e de erradicar o neo liberalismo, de mudar a ordem social em toda a Europa.
As massas, cuja soberania democrática foi roubada pelas elites liberais poderão enfim desforrar-se.

A Alemanha, não somente é incapaz de criar um modelo para os Europeus, mas qualquer que ele seja, será combatido, por uma esquerda que um dia despertará do sono letárgico no qual se afundou.
Porque se o liberalismo ganhou as batalhas recentes foi, antes de mais ,por culpa da esquerda, no RU como no continente, que abandonou a sua hegemonia nos movimentos de contestação de massa, ou que não a soube conquistar, embriagada pelas ideias liberais na moda.

josé ricardo disse...

Caminho mais pela linha do comentário do Joaquim de Freitas. Convém não esquecer que, em democracia, o povo é que manda. O referendo no Reino Unido veio demonstrar o que é a democracia a funcionar. Se há pessoas com grandes responsabilidades que convivem mal com o voto do povo deveria ser problema exclusivamente delas. Infelizmente, não é isso que se passa na Europa.

Anónimo disse...

A dívida total de Portugal já atinge 700 mil milhões de euros. A nossa situação é uma verdadeira tragédia. Infelizmente o 2º resgate é uma questão de tempo.

Cumprimentos

Paulo Simões

Majo Dutra disse...

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Excelente ironia, FSC.
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Anónimo disse...

Não consigo compreender como o senhor Embaixador consegue perceber e muito bem Wolfgang Schauble. Li num qualquer blog que alguém estava agradecido à Inglaterra porque por duas vezes na História o havia livrado das cúpulas alemãs e essa é a verdade de alguém preocupado com a Paz. Por detrás de cada alemão está sempre um homem cheio de razão. A Vida é mais do que aquilo que eles propõem como modelo. Por ironia os financeiros americanos sempre disseram que os alemães julgam que são mais ricos do que na realidade o são e depois ficam desapontados com os rácios de solvabilidade que lhes são apresentados e voltamos ao princípio, ao sangue ao suor e às lágrimas. Quem pode compreender isso?
JM

Isabel Seixas disse...

Uma excelente reflexão sr. Embaixador,gosto muito também da complementaridade dos comentários e pese embora a minha preocupação pessoal com a passagem do Brexit muito pela capacidade instalada do espirito santo de orelha e simbologia dos maus sejam emigrantes ou não estava a lembrar-me do chico espertismo em Portugal quase uma ciência cá em Chaves por exemplo, não devemos substimá-lo e o sr. ministro alemão denota grandes capacidades que aliadas à grande frieza/lucidez que ostenta por herança nas suas árvores genealógicas se podem vir a confundir com premonição de sustos...

De qualquer forma ainda temos os espertos que não caçam ratos, ingleses a tirar tapetes e grandes pandas a parir pandinhas que parecem girinos.

Gostei também do comentário de Joaquim Freitas

Anónimo disse...

Se o meu marido lesse o seu post diria que está também a marcar um livre na baliza dos franceses!
muito feio o que andam para aí a escrever sobre a seleção, isso não se faz!!!

Unknown disse...

Só que os liricos e relapsos estão agarrados aUE como lapas; nem que lhes obriguem a fazer o que meia dia antes tinham negado, fazem. A Grecia que ia fazer tremer os alemães até já reduziu as pensões em 40%, á corajosos gregos e portugueses !!se o ridiculo matasse já não teriamos governantes aqui.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...