Ontem, ao gravar umas palavras para uma reportagem que a RTP vai passar, na manhã de dia 10, sobre Vila Real, sublinhei o caráter algo iconoclasta da população vilarealense, a saudável ironia, às vezes a roçar o cruel, que marca a maneira de ser das gentes de Vila Real. Mesmo em tempos em que brincar com as elites tinha os seus riscos, a cidade mantinha uma discurso rebelde e cáustico, feito de graçolas, que atingiam toda a gente, dos ricos e poderosos às figuras mais populares, numa enxurrada de humor interclassista que, para mim, foi sempre um dos encantos desta terra.
Ontem à noite, ao passar pela antiga casa daquele que foi de um dos maiores "capitalistas" da cidade, uma figura simpática e boémia, de quem guardo ainda uma imagem vaga, alguém referiu as condições da sua morte - que teve lugar durante o ato sexual com a sua amante, circunstância para a qual um meu amigo chileno criou um dia o genial neologismo de "follecimiento". A história ficou famosa, embora menos pelo escândalo da mancebia (nessa altura, por aqui, ter alguém "por conta" fora do casamento era quase indispensável ao estatuto social das pessoas "com posses"), mas pela relativa raridade da ocorrência.
A senhora em causa, uma mulher bonita e vistosa, de que me lembro bastante bem, porque morava junto à minha escola primária, era conhecida pelo nome de Baía. Toda a cidade ficou a conhecê-la melhor depois desse incidente, com as "línguas" locais a rapidamente encontrarem uma forma de subverter o caráter trágico do mesmo, através de uma graçola. Assim, quando falavam da morte do abastado proprietário, alguns acrescentavam: "coitado, morreu no Brasil!" Perante a surpresa do interlocutor, que não tinha ouvido falar de que o passamento tivesse tido lugar tão longe de Vila Real, o outro acrescentava: "É verdade, morreu na Baía"...
Deixo-lhes a imagem, de há minutos, do alvorecer da cidade
Deixo-lhes a imagem, de há minutos, do alvorecer da cidade
24 comentários:
Chaves Hegemónica
Oh, morrer de prazer
na boca do inferno
no poço da morte
gato escondido
com rabo de fora
mistério do ser ao ter
com posses já sem posses
caminho do eterno
sorte da consorte
vitima sem castigo
justiça sem demora
conspiração do terço,de ver
por conta da casa não tosses
vai com Deus pro inferno...
Havia mais liberdade!
antonio pa
vilaRRealense
A ironia ainda é maior porque se trata de uma pessoa rica e, pelo menos do meu conhecimento nenhum pobre dos que procuravam as "Marinas", teve identica fatalidade.
Diga-se, em abono da verdade, que há, de facto, maneiras mais desagradáveis de morrer...
Mas aqui por Lisboa, há casos conhecidos de "follecimentos" semelhantes, em gente graúda. Só que, para a imprensa, "morreram a trabalhar".
Nem sequer é mentira...
Marianas!
Os pobres “precaviam-se”… “Jejuavam” antes…
antonio pa
Para quem conhece bem a língua castelhana, como acontece ser o meu caso, o vocábulo "follecimiento" é de uma riqueza e ambiguidade extraordinária. Parabéns ao seu amigo chileno.
CSC
Os franceses têm uma expressão, "mourir d'aimer", que se poderia aplicar nestes casos...
Para Dona Baía, no entanto, deve ter sido muito "chato" quando compreendeu que foi um morrer a sério! E depois, nos segundos imediatos, um quebra cabeças para encontrar a razão da entrvista privativa com o senhor! Porque a sua casa, com certeza, não estaria declarada como sendo um consultório oficial.
José Barros
"Vila Real ai que lindas és,/tens o Corgo aos pés,/beija-te o Marão...".
Uma visão talvez tenuemente iconoclasta e desajustada do ethos vilarrealense
atual. Vivo há 14 anos em Vila Real e nunca me apercebi desse caráter rebelde das pessoas. Antes pelo contrário. A cultura do respeitinho e de um certo snobismo social teima em desligar-se do perfil identitário da cidade. Mas admito que posso estar enganado.
Um abraço,
José Ricardo
Não tendo nada a ver com a estoria publicada hoje, sempre lhe digo que sou vilarrealense há exactamente 65 anos e por acaso até somos familia.
Saravá!
Se bem percebi, o falecido ficou enterrado ainda antes de morrer.
Foi o que se chama uma morte santa.
Com franqueza, não sei "onde quer chegar" o comentador das 18.16.
Caro José Ricardo: a sua experiência não é a minha. Admito que as coisas tenham mudado. No que toca à ironia e à iconoclastia, fico triste se a cidade regrediu. No que toca à relação interclassista, aí estão os meus velhos (e sempre) amigos da cidade para o provar.
Sr. Embaixador: a propósito do neologismo "follecimiento", recordo que mo início dos anos 80 do século passado havia em Espanha um manual de inglês para os alunos do secundário que fez furor entre os adolescentes: "Follow me". Follar... não é o mesmo que folar pascal...
Caro Embaixador o comentador Ricardo não conheceu a "esquina" da Gomes, o Joe Aguilar, os Feijoeiros ou, a propósito de Neves a família dos Drs. Elísio e Laura e filhos, por exemplo. Ainda tem muito mais para lhe contar. Ele não faz a mínima ideia do que perdeu mesmo com os seus excelentes textos. Que se contente...para já tem esta do Sr. Antoninho!
antonio pa
Conheço algumas situações idênticas que normalmente são comentadas em surdina, com travo a inveja algum moralismo, mas fico sempre a pensar nas questões éticas do sigilo e da exposição dos envolvidos ao escárnio e mal dizer...
Noutra dimensão talvez seja a melhor expressão da paragem cardio-respiratória e do derradeiro suspiro...
Nada como um texto que aborde o sexo. É só olhar a quantidade e "qualidade" dos comentadores...
O comentsdor das 17.26 vai por caminhos estranhos: "aborde o sexo" é uma expressao de sonoridade muito ambígua
Caras Helena Sacadura Cabral e Isabel Seixas,
A nossa 'velha senhora' está - comigo e por mim, regressado de férias - de volta aos blogues, e ditou-me as rimalhices que seguem:
mas que bom é ler e ver
as amigas reunidas,
que concordam co'o prazer
de morrer sem salva-vidas
no ato mesmo de amar,
tendo o leito como altar!
isabel, minha querida,*
grande helena, sim, saudosa,
digo olá, de malga erguida,
de alvarinho sequiosa,
- e confesso me proponho
morrer a amar como em sonho,
velho sonho meu bisonho
mas risonho e não medonho!
*
isabelinha, gostei
dos seus versos sobre o assunto,
embora eu me esforce muito
pla métrica como lei:
faço palavras cruzadas;
se não cabem, 'stão erradas.
Oh querida velha Amiga
mas que surpresa agradável
até me doía a barriga
por não a saber localizável
quanto à minha balda à métrica
tem a ver com irreverência
enerva-me poesia ascética
às vezes convenção é minudência
Ainda por cima, por prazer,
das posições de missionário
até decartes primava saber
separar mente e imaginário
do corpo biológico a defender
pois do que aqui se está a tratar
unindo a esta visão cartesiana
ser transversal convenção do casar
separando por um lado a mesa da cama
como afastar, ao medir,a poesia do poema...
O texto está bom. Mas esta poesia da comentadora Isabel Seixas está ótima...
Cara Isabel Seixas
A 'velha senhora' explica-se:
eu não sou poeta
nem creio que o queira:
rimalho, pateta,
sou rimalhadeira.
palavras cruzadas
é tudo o que faço:
palavras rimadas
com ritmo as enlaço.
mas a poesía
é coisa dif''rente:
milagre que cria
orgasmos na gente.
Deixemos então e nesta maré de marasmos
A palavra ao climax de todos os orgasmos...
Cara Isabel Sexa
A 'velha senhora' insiste em explicar-se-lhe melhor, se a generosidade do nosso caríssimo Embaixador o permitir:
muito mais é a poesia,
vai mais alto, é diferente,
a de pessoa ou sofia,
a de camões, obviamente,
outra mais que se aprecia
como o o'neill surpreendente:
poesia que arrepia
de tão fundo que se sente,
que nos abre à alegria
de muito amar no presente,
que as noites nos alivia,
que orgasmos causa na gente,
que a morte até nos adia
e mais vida nos consente.
assim amo a poesia
que leio constantemente
e me perdoo a mania,
o brinquedo, a fantasia
de rimalhar, impudente.
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