sábado, novembro 07, 2009

Diplomacia e filatelia

Talvez poucos (se alguns) dos leitores deste blogue conheçam a cidade de Soukhoumi, capital da auto-proclamada República da Abcásia, território que a Geórgia considera pertencer-lhe e que é objecto de uma já antiga disputa internacional. Trata-se de uma estância no Mar Negro, que foi uma reputada colónia balnear ao tempo da antiga União Soviética. As batalhas entre as forças abcases e georgianas deixaram a cidade com profundas marcas de guerra, as quais, no entanto, não foram suficientes para fazer desaparecer algum do seu antigo "charme".

Fui a Soukhoumi em 2004, integrado numa missão da OSCE, composta por vários observadores internacionais. Recordo, ainda com algum frio na espinha, uma viagem num bem usado helicóptero ucraniano, ao serviço da ONU, ao longo da respectiva costa. Ao perguntar porque razão voávamos tão distantes de terra, um dos pilotos, com toda a naturalidade, disse-me que era para tentar evitar os mísseis. É que tinha havido, tempos antes, uns problemas... Fiquei imensamente sossegado!

As nossas conversas na capital da Abcásia, com as autoridades separatistas locais, não conduziram a muita coisa, salvo, talvez, a precisar melhor o campo das divergências e o rigor dos argumentos independentistas. Saídos das sessões de trabalho, tornadas mais pesadas pela obrigatoriedade de interpretação, fizémos uma caminhada ao longo de um passeio que me recordou a Foz, no Porto, sempre acompanhados por segurança. No final desse percurso, chegámos a um restaurante, onde nos ia ser oferecido um almoço.

Foi então que alguém constatou que dois diplomatas, um belga e um outro cuja nacionalidade não retive, haviam saído do grupo e tinham desaparecido, sem rasto nem aviso. A preocupação espalhou-se pela delegação, em especial a partir do momento em que a vimos transposta para a cara dos responsáveis abcases, que entre si trocavam conversas tensas, enviando já polícias pela cidade.

Passaram longos minutos e, por esse imprevisto, a refeição formal acabou por não decorrer com a serenidade desejada. Até que, cerca de meia-hora mais tarde, lá vemos entrar na sala, para grande alívio, os nossos dois desaparecidos colegas. Pela mesa passou a palavra de que , por qualquerrazão, haviam decidido fazer um outro passeio. Sentaram-se discretos, sob o olhar reprovador da generalidade dos convivas.

Só no final do repasto nos elucidaram da razão do atraso: tinham feito uma "escapada" aos correios locais, para adquirir colecções de selos da Abcásia, aparentemente muito difíceis de obter à distância. Vinham impantes, com a antecipada certeza de terem conseguido raridades que iriam abrilhantar as respectivas colecções.

A diplomacia também ajuda a filatelia. Será que os nossos colegas se haviam incorporado na missão, fisicamente algo arriscada, apenas para comprar selos abcases? Nunca saberemos.

5 comentários:

Julia Macias-Valet disse...

O meu filho mais velho (13 anos) herdou do pai uma belissima colecçao de selos, devidamente acompanhada de pinças, lupas e etc. Os albuns estao religiosamente guardados numa prateleira do armario do quarto de onde so descem para serem admirados ou dados a admirar a algum amigo. Mas o Raphaël nunca comprou, trocou ou frequentou um Salao de Filatelia.

No passado mês de Maio LA POSTE editou uma caderneta de selos, em forma de tabelete de chocolate, comemorativa dos 400 anos da chegada do chocolate ao porto de Bayonne (Pyrénées-Atlântiques). Cada quadrado de chocolate correspondia a um selo e até a parte olfactivo nao foi esquecido.
http://blogs.lentreprise.com/la-marque-dans-tous-ses-etats/2009/05/des-timbres-au-chocolat-non-co.php

Desta vez o Raphaël apressou-se a ir comprar a caderneta, tendo-me argumentado a originalidade e o valor no futuro daqueles selos.

Nao sei se a colecçao familiar vai arrancar de novo, mas a verdade é que a caderneta esta muito bem arrumada num pequeno envelope de papel vegetal. Sera para conservar os selos ou o cheiro a chocolate ?

Em todo o caso, talvez nao tenha um filho coleccionador, mas tenho a certeza que tenho um bom gastronomo em casa. Muito provavelmente o inverso dos dois colegas diplomatas da historia que hoje nos contou.

Anónimo disse...

Já uma vez levei assim um susto de morte com o meu Pai que em Veneza achou que poderia abstrair-se de seguir no grupo e fazer uma incursão pelos cafés para tomar um café e beber algo, o seu prazer de coleccionador e conhecedor de aromas e sabores.
Lá o encontramos impávido e sereno sem se deixar intimidar pelo labirinto de ruas com mais três desertores do grupo, todos contentes e saciados sem a menor consciência ou remorso do susto que pregaram a toda a gente.
Há de facto necessidades humanas básicas que se impõem .
Isabel Seixas

Helena Sacadura Cabral disse...

Belas histórias. Aqui pela família as colecções vão para os relógios. O meu bisavô paterno iniciou-a, passou-a ao aviador e, por sua morte, a dita veio parar às mãos do meu Pai. Quando este morreu, o meu irmão mais velho, inteligente, preferiu, à colecção, umas peças de prata. E eu herdei algo que, infelizmente, se tornou paixão. Cara como quase todas o são...
Sempre pensei que a coisa morria comigo. Puro engano. O meu filho mais novo herdou o terrível vício, algumas vezes, a expensas minhas...
Mas ainda não herdou a colecção. E o mais velho, que acredita, que um dia, eu lhe vou deixar uma "herança" - santa ingenuidade de esquerda - diz ao irmão, entre o sério e o riso, "olha que me vais ter de dar tornas!". Só se for de vento, como a herança, digo eu...

ié-ié disse...

Já agora deixem-me contar uma historieta: no dia 12 de Setembro de 1990 fui detido para identificação à meia-noite em Douz, sul da Tunísia, por andar à procura de selos. Não fui detido obviamente por isso, mas porque tinha saído do hotel sem identificação.

A polícia tunisina achou estranho eu andar àquela hora "à procura de selos" e achou por bem enfiar-me na esquadra, de onde só saí depois de terem ido à recepção do hotel, à beira do Saará, confiscar o meu BI.

LPA

João de Deus disse...

Permito-me partilhar uma experiência, também ocorrida na Tunisia, em que a minha paixão de coleccionador de moedas romanas me pregou uma bela partida. Há uns anos atrás, em pleno "souk" de Jerba, e acompanhado da minha (futura) mulher, lembrei-me de perguntar por moedas romanas, assim baixinho, reconhecendo que talvez não o devesse fazer. Foi uma atitude no mínimo parva, porque provavelmente ilegal (face à lei tunisina) e de desfecho previsível, conhecendo-se aquele tipo de local. A título de atenuante posso invocar a minha juventude.

Pois é claro que, como em todo o bom "souk", havia tudo, incluindo moedas romanas. Um tipo com um ar estranho lá nos conduziu pelas ruelas cobertas do mercado, entre tapetes e pratos de cobre, e a nossa desconfiança iam aumentando até que chegámos a uma pequena loja escondida de "antiguidades" (velharias...) onde me foi apresentado o dono da dita cuja.

Pois não é que o homem me oferecia dois magníficos sestércios (não me lembro de qual imperador) a preços obviamente sedutores. Um pequeno senão, contudo, residia no facto das moedas, supostamente com dois milénios, serem absolutamente... idênticas!

Joao de Deus

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...