Ter responsabilidades centrais na organização de uma visita de um chefe de Estado ou de governo português a um país estrangeiro é sempre uma imensa "dor-de-cabeça". Nada pode falhar, todos os pormenores têm de ser afinados, é importante ter "planos B" para as contingências, há questões de substância e de natureza protocolar a assegurar em detalhe, mil sensibilidades a gerir, maus feitios (vindos de Lisboa, principalmente) a aturar. É essencial uma excelente articulação com as autoridades locais, porque está nas mãos delas infernalizar-nos ou facilitar a nossa vida. Uma coisa é certa: se alguma coisa correr mal, a culpa é sempre das Embaixadas. Já preparei muitas visitas, sei bem do que falo.
Isto vem a propósito de uma história passada em Londres. Um dos pontos mais curiosos da visita oficial do presidente Mário Soares ao Reino Unido, em 1993, foi a organização do jantar de gala na nossa Embaixada, em Belgrave Square. Num programa de visita em que a responsabilidade maior estava do lado britânico, esse era o principal ponto da agenda a nosso cargo. A rainha de Inglaterra raramente se desloca a uma residência - mas a residência portuguesa não é, em Londres, uma residência qualquer, é a Embaixada do parceiro da "oldest alliance". E porque é uma excepção, foi aí que Mário Soares ofereceu o jantar com que retribuiu o que a rainha lhe dera em Buckingham.
A rainha e o marido não iram sós a esse jantar. Com eles e com um grupo muito importante de ministros britânicos iam o príncipe Carlos e a princesa Diana, os príncipes Andrew e Edward, a princesa Margarida e várias outras importantes figuras da corte britânica. Porque tal me competia, como "nº 2" da casa, passei horas a rever pormenores, a ensaiar com o nosso Protocolo a coreografia da entrada, desde a posição dos fotógrafos e jornalistas até aos lugares dos garbosos GNR's, vindos expressamente de Portugal para marcar a solenidade da ocasião.
Pouco mais de uma hora antes do momento em que teria de estar de volta ao meu "posto", rumei a casa, ao volante do meu carro, para vestir a casaca e ir buscar a minha mulher. Ia muito tenso, ainda com preocupações na cabeça, a pensar se algumas coisas me tinham escapado. Num cruzamento, pouco antes de chegar a casa, por distracção e precipitação, esbarrei de lado contra uma viatura: nada de ferimentos, mas latas amolgadas e alguns faróis partidos. E a culpa era toda minha!
Era uma senhora inglesa que guiava o automóvel atingido pela minha imprudência. Juntaram-se logo transeuntes a confirmar o óbvio da minha culpabilidade. Para alguma surpresa dos circunstantes, também eu dava toda a razão à condutora abalroada. A vítima da minha imperícia queria, naturalmente, chamar a polícia, porque deve ter pensado que isto de diplomatas, sempre protegidos pelas imunidades, é uma raça que costuma ser tentada a fugir às responsabilidades criminais.
Pouco mais de uma hora antes do momento em que teria de estar de volta ao meu "posto", rumei a casa, ao volante do meu carro, para vestir a casaca e ir buscar a minha mulher. Ia muito tenso, ainda com preocupações na cabeça, a pensar se algumas coisas me tinham escapado. Num cruzamento, pouco antes de chegar a casa, por distracção e precipitação, esbarrei de lado contra uma viatura: nada de ferimentos, mas latas amolgadas e alguns faróis partidos. E a culpa era toda minha!
Era uma senhora inglesa que guiava o automóvel atingido pela minha imprudência. Juntaram-se logo transeuntes a confirmar o óbvio da minha culpabilidade. Para alguma surpresa dos circunstantes, também eu dava toda a razão à condutora abalroada. A vítima da minha imperícia queria, naturalmente, chamar a polícia, porque deve ter pensado que isto de diplomatas, sempre protegidos pelas imunidades, é uma raça que costuma ser tentada a fugir às responsabilidades criminais.
Ora o meu drama não era o assumir da culpa. O meu problema era o tempo! Dentro de menos de uma hora eu tinha de estar, devidamente engalanado na minha casaca, à porta da Embaixada, a receber o presidente português, que chegaria acompanhado do nosso embaixador, para, pouco depois, se organizar a chegada da rainha. E, se acaso eu tivesse que esperar pela polícia para tomar notas do acidente, isso tornava-se inviável.
Foi então que testei toda a minha capacidade de convicção diplomática: "Minha senhora, eu assumo 100% da responsabilidade do acidente, mas tenho um problema muito sério: dentro de menos de uma hora vou jantar com a rainha! Eu sei que lhe deve ser difícil acreditar nisto, mas é pura verdade!".
Não consigo descrever a cara da minha interlocutora, o olhar incrédulo que me lançava, pensando talvez que a estava a tomar por parva. Num segundo, expliquei-lhe o que se passava: a visita do presidente português e o jantar na Embaixada. Não me pareceu convencida, até que me lembrei de lhe perguntar se tinha passado nos últimos dias pelo Mall, a avenida em frente ao Palácio de Buckingham. "Se lá passou, terá seguramente visto que há bandeiras portuguesas e britânicas por todo o trajecto". Não podia invocar parangonas na imprensa ou menções de relevo na televisão, porque as visitas protocolares têm escassa cobertura noticiosa. Restava-me a esperança da sua memória visual.
A senhora sorriu e disse: "De facto, vi muitas bandeiras. Eram portuguesas?". Percebi que estava salvo! Como prova da minha boa-fé propus-me deixar-lhe os meus documentos - a carta de condução e o livrete do carro -, garantindo-lhe que, logo no dia seguinte, de manhã, a Embaixada a contactaria. Para meu imenso alívio, aceitou. Deve ter ido contar para casa a história estranha por que tinha passado, o acidente com um diplomata que parece que ia jantar com a sua rainha.
E lá fui eu, à pressa, com um farol a menos, enfarpelar-me para jantar com a rainha de Inglaterra. E com a princesa Diana, claro.
12 comentários:
God save the diplomat
Bela história.
Li outra, no Expresso da semana passada, em que a Luísa Meireles se deve ter enganado, ao escrever a propósito do Tratado de Lisboa: "...Seixas da Costa pensa que o verdadeiro perigo é terem acabado as chamadas 'minorias de bloqueio'". Ora, sendo FSC bem versado em aritméticas institucionais, sabe certamente que as minorias de bloqueio não só não acabaram como são mais favoráveis aos pequenos países, em comparação com Nice. estou a ver que tenho que enviar um email à marota da Luisinha...
Tenho saudades da organização dessa visita!
MG Londres
Senhor Embaixador,
A título de informação a Residência dos Embaixadores de Portugal em Banguecoque, foi a única, até hoje, que Sua Majestade a Rainha Sirikit da Tailândia visitou em 1994.
Tive a honra de ter sido o fotógrafo oficial da embaixada.
Fantástica a emoção que senti a fotografar a escasso metros a Rainha da Tailândia que na sua juventude, foi considerada a mais bela mulher do mundo!
Poder ver-se o serão cultural no www.aquimaria.com/html/aboutth-queen-sirikit.html
Saudações
José Martins
Caro Cotovelo: houve uma imprecisão no texto, mas a culpa não foi da jornalista. De facto, acabou o tipo de minorias de bloqueio que Nice tinha instituído, mas passaram a existir outras. Quanto ao carácter favorável ou não deste novo modelo para os pequenos países (e nós somos médios, convém lembrar), seria matéria para uma dissertação que não cabe por aqui.
Caro FSC: vai ver que cabe.
Nice: 3 maiores EM conseguem bloquear, porque constituem mais do que 38% da população;
Lisboa: minoria de bloqueio exige pelo menos 4 EM, retirando força aos maiores EM (leia-se, mais populosos).
Vê como foi fácil?
Ó Cotovelo! Estamos a brincar? De que lado da Europa é que está?
Mais um excelente episódio "diplomático".
A deselegância de um novo comentário recebido de um Cotovelo com dor ajudou-me a perceber melhor a "qualidade" das mãos em que alguns interesses do país andam.
Aliás, a "coragem" do anonimato, sob o manto diáfano da irresponsabilidade, é um belo retrato de carácter.
Eu estive nesse jantar, sr. Embaixador, no dia 29 de Abril de 1993! Era o primeiro acto oficial de Carlos e Diana após o divórcio. Diana ficou ao pé de Adriano Moreira, mas de costas para Diana.
Entraram separados para a residência. Carlos esperou cá fora dentro da viatura, aguardando que Diana entrasse.
Lá dentro, beijaram-se educadamente.
Presenciei tudo, eu, o Carlos Ventura Martins, a Estrela Serrano... Como era da agência Lusa era o único jornalista presente, se bem me lembro.
Cá fora, no final, fui bombardeado pelos tablóides. Contei o que tinha visto. Não era segredo de Estado! E os tablóides, ufantes, lá publicaram... "a inside source...".
Tenho algures cópias de alguns...
Luís Pinheiro de Almeida
Peço desculpa, o meu comentário anterior tem alguns lapsos:
"Diana ficou ao pé de Adriano Moreira, mas de costas para Carlos".
"an inside source...".
LPA
A proposito de ir para casa contar historias...
Um dia entrei numa carruagem do metro em Paris e reconheci um senhor que viajava comigo em pé no hall. Cumprimentei-o com um pequeno aceno de cabeça e ele respondeu-me simpaticamente.
Umas quantas estaçoes mais tarde separamo-nos. E foi enquanto atravessava os labirinticos corredores da RATP que me lembrei quem era aquele senhor... Nem mais nem menos que Roberto Carneiro, ex-Ministro da Educaçao.
Quando cheguei a casa contei a historia e telefonei para Lisboa para a contar, e ri a bom rir. Tenho a certeza que ele quando telefonou para casa, ou chegou a Lisboa também contou o sucedido. E também riu a bom rir.
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