quarta-feira, novembro 04, 2009

Mala diplomática

A cena passou-se num país com o qual as nossas relações bilaterais não estavam a ser fáceis, nos anos 80 do século passado.

Era sábado e o encarregado de negócios de Portugal, que chefiava a missão diplomática na ausência do embaixador, havia sido chamado de urgência pelo ministro dos Negócios Estrangeiros local.

A conversa começou tensa. O ministro colocou sobre a mesa uma carta, da qual saíam três notas de 100 dólares: "Esta carta ia ser enviada pelo vosso cônsul na cidade de X para a família, em Portugal. Contém dinheiro em "cash", o que vai contra todas as regras. Além do mais, pressupõe ser produto da obtenção de divisas estrangeiras por meios ilegais, porque, como é sabido, há neste país um controlo muito forte da circulação de moeda estrangeira e não temos registo do cônsul ter adquirido os dólares no banco central. Exigimos uma explicação urgente por parte da Embaixada."

O nosso diplomata foi apanhado de surpresa. De facto, era uma situação estranha mas, pensou, era importante falar primeiro com o cônsul e obter a sua versão do assunto. A posse de moeda estrangeira era muito vulgar no país, até porque os diplomatas eram pagos em dólares e havia serviços e aquisições locais que exigiam essas divisas. Já o seu envio por carta parecia muito imprudente. Mais para ganhar tempo do que por qualquer outra razão, inquiriu: "E esta carta ia pelo correio?".

Nesse instante, notou que o ministro hesitou um pouco, antes de esclarecer: "Não, ia na mala diplomática para Lisboa".

O nosso encarregado de negócios teve então um lampejo, recuperou o comando da conversa e retorquiu firmemente ao ministro: "A Embaixada está totalmente disponível para prestar todos os esclarecimentos sobre este assunto mas, antes que isso aconteça, as autoridades do seu país vão ter de explicar a razão pela qual violaram a nossa mala diplomática, contra todas as regras internacionais. E, ainda hoje, vou fazer chegar uma nota de protesto por este acto que, de forma ostensiva, infringe as regras da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas".

O ministro não estava à espera da resposta e foi apanhado de surpresa. Voltou à carga com a ideia da necessidade de obter uma posição sobre a questão dos dólares na carta, mas o encarregado de negócios foi definitivo: "Antes de obtermos, da vossa parte, uma explicação sobre a razão pela qual a nossa mala diplomática foi violada, não diremos rigorosamente nada sobre o seu conteúdo. Aliás, peço, formalmente e desde já, a devolução do resto da correspondência que seguia na mala diplomática, a maioria, aliás, de natureza oficial. Não sei se se dá conta que isto é de uma extrema gravidade, senhor ministro! Os senhores violaram a mala diplomática portuguesa! Isto pode vir a ser um escândalo!".

O interlocutor começou a ter consciência de que a sua posição abandonava um terreno confortável e mostrava-se já um tanto embaraçado. O nosso diplomata saiu da reunião entre o satisfeito e o preocupado, mas sem plena certeza sobre o que se seguiria.

No dia seguinte, o conteúdo da mala diplomática chegou, discretamente, à nossa Embaixada. A carta do cônsul vinha junta... sem os 300 dólares. O encarregado de negócios não chegara a mandar a nota de protesto, até porque, para o fazer, necessitava de uma autorização de Lisboa, que nem sequer obtivera. O "bluff" compensou, ou melhor, custou 300 dólares ao pobre cônsul. E o assunto morreu...

Cenas da vida diplomática, como diria o Lawrence Durrell.

10 comentários:

José Martins disse...

Senhor Embaixador,
Absolutamente saborosa a história.
Bem é que eu durante 18 anos, fui o "manga de alpaca" que tratou, em Banguecoque, da expedição e recebimento das malas do serviço do Expediente do Largo do Rilvas.
Nunca me passou pelas mãos um caso de envio de dinheiro... Nem nunca uma Mala, foi retida ou violada, neste´Reino.
Mas, por umas poucas vezes lá tinha que satisfazer o pedido de um ex-secretário de embaixada para lhe enviar umas "borrachinhas", de cores e paladares a frutas, bem fechadas num envelope, dado que onde estava destacado este material não havia no mercado.

Anónimo disse...

As historias sobre Malas Diplomaticas recordam-me sempre os filmes de James Bond e os livros de Robert Ludlum.

Julia Macias-Valet

Anónimo disse...

Há uns largos anos atrás, ainda a “adido de Embaixada” na chamada Secretaria de Estado, num dos percursos de “viagem de mala”, (ou levar e trazer a Mala Diplomática), calhou-me, em duas ocasiões diferentes, como vim a saber depois, uma vez regressado ao Mnistério (a tal Secretaria de Estado, para quem não é do MNE), trazer de uma capital, uma vez, um par de botas de um Adido de Defesa, bem embrulhadas e colocadas no saco diplomático juntamente com a documentação especial, “carga” essa que eu desconhecia trazer comigo e na ocasião, uma pistola, desmontada, também de um Adido de Defesa (sabe-se lá para quê te-la enviado daquela forma para Lisboa!). Só depois de aberta, é que vim a ter conhecimento.
Adido de Embaixada

Anónimo disse...

Hoje, em Luanda, 300 dólares são um bitoque acompanhado de um par de cervejas, quase sempre mornas... outros tempos. Já para não falar sobre o facto de 300 dólares não fazerem, sequer, um ministro sacudir o pó do casaco.

Jorge Pinheiro disse...

Eu também gostava de ter uma mala diplomática só para mim.

Helena Sacadura Cabral disse...

Ai Senhor Embaixador se a sua história é uma delícia, a de José Martins fez-me soltar uma enorme gargalhada! É que, às vezes, esqueço-me que os diplomatas são seres humanos como qualquer de nós e, por isso, sujeitos às mesmas criativas fraquezas...

João Antelmo disse...

No MNE sempre foram toleradas pequenas entorses às regras que determinam o que pode ou não pode ser transportado nas Malas Diplomáticas, sobretudo em postos em que o quotidiano e as condições de vida são mais difíceis.
Ainda hoje se fazem, por exemplo, 2Malas especiais" por ocasião do Dia Nacional, para permitir aos Chefes de Missão em postos "de sacrfício" conferir alguma dignidade e abundância às recepções do "10 de Junho".
Nos anos 80, um jovem Terceiro Secretário servindo numa capital do Médio Oriente, onde ia passar o terceiro Natal consecutivo imposto pelo colossal egoísmo do seu Embaixador, pediu à família uma espécie de cabaz de Natal, contendo umas postas de bacalhau, nozes e figos secos e outras vitualhas de idêntica natureza.
Azeite era abundante (e excelente) no país, vinho do Porto e champagne estariam disponíveis na Loja Diplomática, espécie de freeshop só para expatriados e para a nomenklatura local e em que se pagava em dólares.
Com a encomenda esperada, decoração própria da época, alguma imaginação, uns discos de "Chrismas carols" e uma colega mais amigável, antecipava o Secretário de Embaixada uma consoada bastante aceitável.
Para mais, tinha-lhe sido anunciada a inclusão de uma surpresa, uma coisa especial para dar um toque final ao ambiente natalício.
Por essa altura, a Compal tinha lançado um produto que parece não ter vingado, talvez por reacção pouco entusiasmada do mercado: latas de caldo verde, um pouco como uma variante lusitana das spas Campbell's, admirável criação da indústria alimentar e tema icónico da popart.
Essa seria a surpresa.
Mas ocorreu um acidente: fosse devido ao calor extremo próprio região, fosse pela deficiente qualidade da preparação, a verdade é que ansiosa e excitada abertura da "valise" revelou uma cena dantesca: uma terrível reacção química fizera explodir a lata de caldo verde que se derramara abundantemente sobre a documentação, maculando horrendamente e sem distinção banais documentos ostensivos, discretos confidenciais e, ó meu Deus, sleníssimos secretos.
O diplomata tremeu; tinha a certeza que a generosidade dos Serviço de Expediente não abarcara "líquidos" nem, estava seguro, aquela granada alimentícia. E, mesmo que o funcionário que autorizara aqueles mimos o tivesse feito, tocado pelo espírito da quadra e condoído do colega exilado, seria imoral (além de inútil e inestético) fazê-lo arcar com as culpas da catástrofe e com as suas consequêncis.
Com o cuidado que um monge bibliotecário teria posto na recuperação de um pergaminho valioso e a ajuda prestimosa do guarda da Chancelaria, limpou tant bien que mal a oficialíssima correspondência e o interior do saco de lona inapropriadamente chamado "mala", pulverizou, se bem me lembro, um pouco de água de colónia para dentro do saco, numa honesta mas falhada tentativa de disfarçar o odor suspeito e esperou que o caso não chegasse ao conhecimento da Secretaria de Estado.
A ansiedade que ainda subsistia no regresso do Embaixador foi rapidamente dissipada pelo interesse muito mitigado que este demonstrava pelas rotinas monótonas e burocráticas do quotidiano como, por exemplo, a leitura de ofícios.
O apocalipse não se concretizou. E, decénios passados, ainda devem existir nos arquivos cavernosos das Necessidades (a Embaixada foi há muito encerrada), agora talvez digitalizados e numa drive-pen, algumas folhas de papel como uma estranha coloração que, na altura destes factos, era castanho-esverdeada.
O cheiro já não deve ser perceptível.

Silvestre Gorgulho disse...

Amigo embaixador, esta é uma das muitas histórias que com certeza o senhor guarda no bolso do colete para, quem sabe, escrever um novo e delicioso livro. Estar convosco e Gina, em Paris, foi um aprendizado, uma alegria e um momento especial para conhecer melhor as histórias da diplomacia e o seu profissionalismo no trato das questões que regem as relações entre os povos e governos. Silvestre Gorgulho

Helena Sacadura Cabral disse...

Caro José Barros, o seu post fez-me rir às lágrimas. Tendo tido um irmão na carreira diplomática, vezes sem conto, passei pela Versailles, a correr, logo de manhãzinha, para ir buscar as trouxas de ovos da Versailles, acabadinhas de fazer, que iriam alegrar a dita festa de Natal. E sempre tudo correu bem. Até que,um ano, me apenei de saudades. Foram longos anos passados longe da família, em dois países da Cortina de Ferro de então. Decidi, assim, ir eu em forma de Mãe Natal e levar comigo as ditas trouxas e sua abundante calda, mais uma garrafa de precioso vinho cuja cor concorria com o rubi.
O que se terá passado ignoro. Mas quando cheguei à Russia e desfiz as malas, surpresa! A lata das trouxas, vazia, a garrafa idem, e as roupas sem qualquer mácula vinícola ou de calda de açucar. Das duas preciosidades, além de mim, nem réstea!Apenas o vasilhame. Os conteúdos, esses devem ter alegrado outro lar que, naquela época, terá comungado do mundo capitalista.
A partir desse dia, a mala diplomática, tornou-se um icon de respeito na minha vida!!!

Helena Sacadura Cabral disse...

Rectifico: João Antelmo

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...