segunda-feira, outubro 14, 2013

A cicatriz

Naquele tempo, naquele período de menos de seis anos que mediou entre a queda de Salazar (queda dupla: da cadeira de lona, em agosto, do poder efetivo, em setembro) em 1968 e a Revolução iniciada em abril de 1974, alguma coisa mudou na vida política portuguesa, embora não o suficiente para garantir um fôlego salvador à ditadura.

A televisão seria um dos instrumentos onde essa mudança se fez sentir. Ainda antes de 1968, Marcello Caetano havia sabido colocar alguns homens de mão dentro da RTP, um espaço de afirmação de poder onde, no "swap" de ditadores, se iria passar uma das lutas surdas entre o salazarismo decadente e o marcelismo nascente. Para além das "conversas em família" do novo chefe, um proselitismo monologante que o "presidente do Conselho" quis fazer passar por um ato de transparência democrática, a RTP passou a oferecer outras curtas palestras ideológicas, sem imagens que não fossem as das caras estáticas de jornalistas serventuários, alguns de muito considerável qualidade intelectual, oriundos de órgãos de imprensa do regime moribundo - o "Diário da Manhã", o "Novidades", "A Voz" e, mais tarde, a "Época". Os nomes não era muitos: Barradas de Oliveira, Dutra Faria, João Coito, Artur Anselmo e alguns mais.

Sempre tive um estranho fascínio e uma dedicada atenção a tudo quanto se situa do lado contrário àquele que defendo. Da mesma maneira que não dou prioridade a artigos, livros ou blogues que assumam teses com que sei, à partida, que vou concordar, acabo por ter um bizarro e quiçá masoquista tropismo para tudo quanto tenho a certeza de ir detestar. Por isso, as intervenções dos integrantes da lista de panfletários do regime que acima elenquei eram, para mim, momentos imperdíveis do espetáculo televisivo, por mais que isso chocasse familares e amigos.

Uma noite, numas férias, em Vila Real, aí por 1972 ou 1973, "divertia-me" a observar na RTP Dutra Faria, um jornalista da "situação", de ar grave e façanhudo, que se desdobrava numa qualquer diatribe anticomunista ou contra os "terroristas" que operavam nas colónias. Ao meu lado, o meu pai mostrava alguma indiferença à palestra e só não punha termo ao meu obsessivo "voyeurisme" do regime porque, havendo um só canal televisivo, o "zapping" era então um conceito inexistente.

Num certo momento da charla televisiva, o meu pai comentou:

- Já reparaste naquela cicatriz que o Dutra Faria tem sobre a sobrancelha?

De facto, mesmo no preto-e-branco da imagem desses tempos, era visível que o homem tinha uma marca muito clara na cara.

- Eu assisti ao momento em que o Dutra Faria "ganhou" aquela cicatriz. Foi há mais de 40 anos...

Olhei com alguma surpresa para o meu pai. Ele era o que se pode chamar um republicano "dos quatro costados", nunca escondera a ninguém o seu pendor oposicionista, havia-me levado pela mão a ver o Humberto Delgado em 1958 e, em 1969, tinha apoiado a minha participação na aventura eleitoral vilarealense contra o regime. Mas, confesso, não imaginava que tivesse estado imerso num combate político com decorrências físicas. Por isso, fiquei à espera da explicação.

- Julgo que foi em 1930, na "casa de pasto" Liège (*), no início do elevador da Bica. Era um restaurante de galegos, que os funcionários da Caixa Geral de Depósitos, como eu, então frequentavam. Um dia, durante um almoço, assisti a uma cena que me ficou na memória. Um grupo de "camisas azuis" - os nacional-sindicalistas, dirigidos por Rolão Preto (**) - começou, numa mesa, a dar vivas à contra-revolução e ao fascismo. Os tempos políticos eram muito tensos. A ditadura estava em pleno e os nacional-sindicalistas andavam então numa grande euforia, julgando ser possível instituir em Portugal um modelo próximo do fascismo italiano. Pouco tempo depois, Salazar iria pôr um ponto final nesse radicalismo. Os comensais das restantes mesas olhavam o ruidoso grupo, mas mantinham-se em silêncio. Dei-me então conta que um homem que almoçava sozinho começou a agitar-se e, a certa altura, não se conteve e gritou: "Viva a República!". Os nacional-sindicalistas, sentindo-se provocados, levantaram-se e cercaram a mesa do republicano. Este, ameaçado por todos os lados, pegou numa garrafa e enfrentou o grupo agressor. Na luta que se seguiu, um dos "camisas negras" foi atingido no sobrolho e começou a sangrar. Aproveitando a confusão, o republicano conseguiu fugir pela calçada da Bica abaixo. O ferido era o Dutra Faria e o republicano chamava-se Carvalho Araújo(***). Tu sabes quem é...

Claro que sim! Era o Carvalho Araújo, um homem com quem eu tinha colaborado, ali mesmo em Vila Real, na referida batalha oposicionista de 1969 e de quem já um dia contei uma divertida história neste blogue. Fora afastado da função pública pelo Estado Novo e, depois de uma vida difícil e tumultuosa, regressara a Vila Real, pouco tempo antes. Muito radical e com mau feitio, acarretava consigo uma aura de resistente à ditadura que muito impressionava a nossa geração local.

Nessa noite, fiquei a saber a quem se devia a (republicana) cicatriz que nunca mais abandonou o rosto de Dutra Faria.

(*) - A casa Liège ainda hoje existe. Voltei lá um dia, com o meu pai, num almoço em que me descreveu a coreografia da cena.
(**) - Por um bambúrrio histórico, eu tinha conhecido Rolão Preto, no Fundão, numa noite em meados de outubro de 1969, numa reunião oposicionista. O antigo nacional-sindicalista, então com 76 anos, tinha-se aliado a uma lista monárquica anti-regime. Deixo uma imagem dos seus tempos áureos.
(***) - Carvalho Araújo viria a ser reintegrado na Caixa Geral de Depósitos, depois da Revolução de abril. No escasso tempo que lhe restava antes da aposentação, ficou colocado sob a autoridade do meu pai, gerente da Caixa na cidade, que também não lhe gabava o feitio...

(EM 17 DE DEZEMBRO DE 2017 FOI PUBLICADA NESTE BLOGUE UMA VERSÃO ATUALIZADA E CORRIGIDA DESTE POST)

domingo, outubro 13, 2013

O Nobel e a Noruega

Como (não) é (às vezes) sabido, a designação do prémio Nobel da Paz - contrariamente a todos os outros prémios Nobel, que são atribuídos na Suécia - é feita pelo comité Nobel da Noruega. Invariavelmente, a entrega do prémio tem lugar no dia 10 de dezembro, no Rådhus, a câmara municipal de Oslo, pelo primeiro ministro norueguês, na presença do monarca do país. Conheço bem o edifício e a sala, respetivamente com uma arquitetura algo "brutalista" e umas discutíveis pinturas, onde me coube participar num jantar oferecido pelo falecido rei Olavo V ao presidente Eanes.

Quando, por alguns anos, vivi pela Noruega, travei conhecimento com um dos membros desse comité, que era amigo do meu primeiro chefe em Oslo, o embaixador Fernando Reino. Integrar o comité é uma função prestigiada, sendo os seus membros vulgarmente (à época, o que pode ter mudado entretanto) próximos do Partido Trabalhista. Infelizmente, esse meu conhecido nunca se revelou aberto a revelar-me o modo como as escolhas e decisões do comité eram tomadas. A consciência do prémio configurar um momento importante para a imagem externa do país, o que, para um norueguês, assume uma importância extraordinária, deve ser a razão desta reserva secretista. Mas, devo confessar, a metodologia de atribuição do galardão sempre me intrigou.

Este ano, o Nobel da Paz é concedido à Organização para a Proibição das Armas Químicas. A escolha foi criticada por alguns, por poder ser lida como transportando para o centro da questão síria apenas uma das vertentes do conflito no país, podendo assim ajudar Assad a, resolvido que seja esse problema, considerar que está legitimado noutras dimensões do seu bárbaro esforço de guerra. Mas nada disto é novo: muito frequentemente, as decisões do comité Nobel da Paz têm, no passado, sido controversas, às vezes bem mais do que este ano.

De há uns anos a esta parte, tenho para mim que as escolhas dos prémios Nobel da Paz acabam por ser um espelho muito interessante da própria mentalidade norueguesa. Umas vezes, a seleção segue uma lógica simples e conjuntural, foi o caso deste ano. Outras vezes, parece obedecer a uma "naïveté" quase deslumbrada, como foi o caso de Obama, que, à época, ainda não existia enquanto político com história a premiar. Não raramente, o comité optou por algumas ousadias, quase sempre muito "politicamente corretas", que lhe conferem uma imagem de "espírito de ONG" - e mais não digo...

Se olharmos com atenção, ao longo dos anos, para os nomes escolhidos para os prémios Nobel da Paz, quase que poderemos, através deles, descortinar o verdadeiro perfil psicológico desse país singular que é a Noruega - gente simples, preocupada com a "rightouseness", as mais das vezes algo óbvia, mas sempre séria e "modestamente" surpreendida com o facto do mundo teimar em não se lhe assemelhar.

sábado, outubro 12, 2013

A ponte a pé

A questão da escolha da ponte em que terá lugar a manifestação da CGTP tem vindo a ser abordada numa perspetiva de segurança. O governo entende que seria mais prudente fazê-la na Vasco da Gama, enquanto que os sindicalistas pretendem a 25 de Abril. 

Ora, ora... O que a CGTP quer é uma ponte que possa encher para a fotografia, o que será fácil com a mobilização da rapaziada da "outra banda". O que o governo quer é enviá-los para tão longe quanto possível, para um espaço onde ficasse visível a incapacidade sindical de o preencher. No meio disto, discute-se segurança...

Assumir a verdade, em política, é muito complicado, não é?

A Turquia em breves conversas

Universitário iraniano, em estágio no país - "Embora se sinta por aqui uma crescente tendência para impor normas de inspiração corânica, nota-se na Turquia um evidente progresso económico e social que faz com que as pessoas sintam que têm um futuro. Ao contrário, no meu país, há uma tristeza muito grande na população, que se sente "raptada" por uma elite política que circula pelos lugares de poder, com uma legitimidade que lhe é dada pela invocação de Deus, por tudo e por nada. Aqui, nota-se um ambiente bastante autoritário, como se viu na repressão às manifestações, mas essa sempre foi a marca do país, desde Ataturk. Há uns anos, o Irão era o país rico e a Turquia o pobre; agora é o contrário. Gostaria de ficar a viver aqui para sempre".

Amigo turco - "Vive-se aqui uma prosperidade económica e uma ambição nacional de grandeza, à escala internacional, que começa a não ser compatível com o retrocesso de costumes que o governo quer impor à sociedade. O "template" autoritário, que continua a ser a marca do país, passou da mão dos militares, que agora são quase humilhados, para um setor da classe política que descobriu uma forma de se prolongar eternamente no poder. Lembras-te de eu te dizer, há mais de dez anos, que a Europa era a nossa esperança? Pretendíamos utilizar a adesão à União Europeia como "escudo" contra o nacionalismo orgulhoso. Com a persistente atitude europeia de rejeição da nossa candidatura - eu sei que Portugal nunca teve essa posição... - as coisas são hoje o que são! Mas as tensões internas vão permanecer muito grandes, podes crer".

Portuguesa residente - "É um pouco inquietante assistir ao surgimento de práticas e leis que revelam a clara intenção de islamizar os costumes. Isso é feito pouco a pouco, às vezes com pretextos de momento, mas pressente-se que há uma estratégia de longo prazo. Há muitos setores na juventude turca que dão sinais de não estarem dispostos a aceitar este retrocesso, que, aliás, acaba por ser contraditório com o prolongamento da divinização de Ataturk, cuja obra foi precisamente na direção oposta. Mas muitos dos meus amigos turcos reconhecem, contudo, o trabalho de Erdogan para melhorar a qualidade de vida e colocar o país no centro da cena internacional. Por isso é que o partido no poder é reeleito".

Governante turco - "Estamos a fazer um esforço de alargamento da nossa presença diplomática à escala global, por forma a colocar a Turquia no patamar de influência à altura daquele que é já hoje o nosso papel no mundo. Temos ações de cooperação para o desenvolvimento em várias áreas do mundo, está em curso uma forte extensão da nossa rede de embaixadas e consulados. Estamos envolvidos em iniciativas para provocar uma nova reflexão sobre o atual injusto equilíbrio de representação no seio das Nações Unidas e noutras instâncias internacionais".

Diplomata turco - "É chocante o modo como a comunidade internacional se comporta no tocante à partilha de responsabilidades no caso dos refugiados sírios. A Turquia assume hoje, sozinha, uma inaceitável parte do peso dessa tragédia, com centena de milhares de refugiados, instalados em dezenas de campos, que se situam, aliás, em áreas menos desenvolvidas do país, que, em alguns casos, duplicaram a respetiva população, suscitando situações sociais da maior gravidade. Temos tido, ao nosso lado, António Guterres, como alto-comissário da ONU para os refugiados, que tem feito um trabalho notável, cuja ação e entusiasmo são hoje muito respeitados, mas que continua a não ter meios para atuar de forma sempre eficaz. A repetição incessantes deste tipo tragédias justifica um esforço internacional concertado".

sexta-feira, outubro 11, 2013

Diplomacia e lavoura

De Lisboa, um amigo alertou-me, ontem à noite, para o facto de um diário lisboeta ter citado, em comentários negativos sobre o ministro Rui Machete, alguns diplomatas aposentados, que teriam pedido para manter o anonimato.

Nem sei bem porquê, lembrei-me dos tempos em que, na União Europeia, a diplomacia portuguesa se batia, com sucesso, pelo aumento das quotas de tomate. Valeu a pena?

quinta-feira, outubro 10, 2013

Prova de vida

Escrever um blogue e nele procurar ter uma atividade diária é, podem crer, uma tarefa complicada. E exigente.

Ontem, tive um dia de intenso trabalho em Antalya e, logo depois de uma corrida para o aeroporto, uma viagem, ao final da noite, para Ancara. Hoje, aqui na capital turca, bem cedo, tive duas reuniões. Agora, fechado numa sala a trabalhar, recebo um email de um amigo, algures em Portugal, com o seguinte teor: "Há algum problema contigo? Como não escreveste hoje nada no blogue..."

Caramba! Já não se pode passar um dia sem dar "prova de vida"? Pronto, aqui está o "post" de hoje. OK?

quarta-feira, outubro 09, 2013

América Latina na Turquia

Todos os dois anos, a Federação Internacional de Estudos sobre a América Latina e o Caribe organiza o seu congresso, que decorre, nestes dias. em Antalya, na Turquia. 

Fui convidado pelo Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Ancara a estar presente neste exercicio, no qual procurarei desenvolver, no encerramento da sessão de hoje, o tema da importância geopolítica da América Latina para a Europa, nas suas diversas vertentes. 

terça-feira, outubro 08, 2013

Para o Sérgio Moutinho

Olá, Sérgio

Cheguei há pouco ao sul da Anatólia, aqui na Turquia, não muito longe da Síria de que tanto me falavas com entusiasmo. De repente, lembrei-me que terá sido mais ou menos por aqui, no final dos anos 80, que vinte e tal facadas traiçoeiras te calaram a alegria. Foi num dos meus mais tristes Natais, em Vila Real, aquele dia frio em que te fomos deixar para sempre em Santa Iria.

Ainda tenho, entre algumas outras, uma carta tua, enviada meses antes, de Ancara, em que me falavas do teu cansaço com o posto onde te mantinham, para além do razoável, muito contra a tua vontade. Lembro-me de me teres dito que te apetecia concorrer a Marselha e de eu te desaconselhar essa opção, já nem sei bem com que argumentos. E de não ter tido artes para te tirar da Turquia, coisa que nunca me perdoei. Não esqueço também o nosso último almoço, na Laurentina, com a Mi Allegro, a quem tu davas conselhos para a vida afetiva - logo tu, Sérgio!

Já passaram muitos anos, mesmo muitos, desde os tempos em que desembarcaste em Vila Real, vindo dos "States", com o melhor inglês da cidade, sempre agitado e agitador, numa terra pouco dada a acomodar quem não estava "nem aí" para se acomodar. Foram os tempos comuns no liceu de Vila Real, onde só o teu entusiasmo, e a paciência bracarense do professor Ladislau, conseguiu levar-nos a montar o fantástico "Centro de Estudos Geográficos", onde, com o Elísio Neves, o Zé Barreto, o Carlos Leite e alguns outros, soubemos dar a volta à rotina desses dias algo baços, numa cidade que - confessemos! - era então uma grande chatice. Ainda guardo exemplares do "Meridiano", órgão do Centro, com textos que hoje me fazem sorrir.

Para ti, que sempre foste um apressado dos tempos, esse foi apenas o início de um percurso trepidante, que te levou à universidade de Coimbra, a dar aulas, a ser preso pela Pide, a te meteres na aventura da cooperação na jovem Guiné-Bissau. E, finalmente, sob o meu conselho, a entrares para a carreira diplomática, onde foste uma promissora estrela, tão efémera como acabou por ser a tua vida. Tudo isso feito sob o olhar bom, sorridente e deliciado, da tua mãe, a âncora mais fiel de uma existência em que, sem outras baias que não fossem as do usufruto obsessivo do instante, testaste todos os limites e abanaste todas as convenções. Até àquela noite.

Nunca se soube, nem se saberá ao certo, o que aconteceu nessa ocasião trágica, aqui na Anatólia. Como dizem os juristas, "a doutrina divide-se" e eu fiz parte de uns poucos que, contra a vontade de alguns outros - à frente de quem esteve, quem havia de ser?, a nossa amiga Ana Gomes, que tu me havias apresentado um dia - nunca se mostraram excessivamente empenhados em escrutinar o rigor dos factos ocorridos, talvez porque o facto maior foi sempre a tua morte, e essa foi a tristeza definitiva que nenhuma revelação sensacional poderia reverter. E porque, quem sabe se erradamente, sempre fui de opinião de que a verdade oficial que, inevitavelmente, seria vendida e mediatizada, só iria contribuir para agravar a tristeza de quem te estava mais próximo.

É tudo quanto hoje te quero dizer, Sérgio, aqui da Turquia, um país a que sempre te associo. Se acaso há algum lugar por onde possas andar, só tenho uma certeza: estarás a agitar as águas e os espíritos. Recebe um abraço saudoso do

Francisco

ps - não te falo da política caseira porque, conhecendo-te, "passavas-te" se eu te contasse como as coisas andam por lá, por Portugal. Mas, mesmo assim, felicito-te pelos resultados em Setúbal, em Évora, em Loures ou em Beja, entre outros lugares onde os teus (o "partido", como tu dizias) mostraram a sua consabida arte de bem cavalgar todas as crises.

segunda-feira, outubro 07, 2013

Constantinopla

Daqui a pouco, vou apanhar um avião para Istambul, que já se chamou Constantinopla.

Por uma mera coincidência, acabei ontem de ler "O homem de Constantinopla", primeiro volume de uma biografia romanceada de Calouste Gulbenkian, da autoria de José Rodrigues dos Santos. É um livro que se lê bem e que, para além da trama caricaturada do romance, nos permite um olhar sobre um tempo interessante. Nele é retratada a vida otomana e a odisseia da população arménia naquele país, no final do século XIX, bem como as manobras dos impérios no Médio Oriente desse tempo que antecedeu o primeiro grande conflito mundial. Resta aguardar pela sequela da história, que sairá em Novembro, intitulada "Um milionário em Lisboa", para completar esta versão da saga de um homem que foi genial nos negócios, com um apurado sentido da beleza o que, segundo o livro, também não terá sido alheio a alguns gostos bem peculiares que marcaram a sua vida íntima, coisa de que até agora não tinha ouvido falar. Curiosamente, está em preparação, por um historiador britânico, uma completa biografia de Gulbenkian, que será interessante cruzar depois com este romance.

domingo, outubro 06, 2013

Civismo

Em Portugal, os eventos prolongam-se muito para além da sua realização.

Se bem repararem, ainda sobrevivem, rotas e desmaiadas, por janelas e varandas do país, bandeiras nacionais do Euro 2004. Não é patriotismo, é desmazelo.

Das festas populares de verão, sobram ainda, de árvores ou em paredes, cartazes e pendões rasgados. Para inundar o panorama, tudo bem, para "recolher as canas" é que é o diabo!

As eleições autárquicas já foram há uma semana. O que justifica que, por todo o lado, permaneçam "outdoors" e imensa propaganda?

Enfim, ainda há letreiros assinalar a EXPO 98...

O tempo e a política

As regras da vida política dos dias que correm são, para o bem e para o mal, muito diferentes das que existiam no passado. O escrutínio público do atos e da vida dos atores políticos é muito maior e com um grau de exigência acrescido, sendo que, quando o vento geral não corre de feição, esse ambiente dominante tudo agrava. Aquilo que, num período de "estado de graça", poderia ter passado como um "fait divers", assume uma relevância de outras proporções quando surge a contraciclo. E se, como às vezes acontece, isso vem somar-se a "episódios" anteriores, então, para usar a elegante formulaçao recente do presidente da Comissão europeia, "o caldo está entornado". Cedo ou tarde.

Desde sempre, entra-se para um governo para colaborar num projeto no qual se acredita, para ser útil, para resolver problemas. Se alguém, a certo ponto, constata que a sua presença acaba por constituir-se, em si mesma, como um novo problema para o próprio governo, recomenda o bom-senso que seja o ator político a tomar a decisão de afastar-se. Sem perda de tempo, limitando o desgaste. Poderá, dessa forma, preservar melhor a sua história pessoal e contribuir para deixar de ser um peso para o executivo com o qual se sente solidário. Esta, aliás, é uma regra bem antiga, pelo que quem já viveu outros tempos da política tem obrigação de conhecê-la.

A tabacaria

Era uma pequena tabacaria de vão de escada, situada no edifício entre a igreja da Encarnação e a então livraria "Diário de Notícias", no Chiado, onde hoje está a Hermès. Dirigia-a uma matrona faladora, que sempre vi à conversa com uns tipos de fato cinzento, sem notória ocupação, que se encostavam pela entrada.

Terá sido por 1971 ou 1972. Num dia, entrei na tabacaria - se assim se pode dizer, porque o balcão estava quase junto à porta - e pedi o "República", o diário oposicionista que saía no início da tarde.

A matrona olhou-me com um sorriso desdenhoso e replicou: "Eu não vendo esse jornal!". Virei as costas, mas ainda ouvi o comentário dela para um dos cavalheiros que ornava a moldura da porta: "Ó Teixeira! Este queria o jornal dos comunas. Deve ser daqueles de quem vocês gostam..."

Saí "gelado" pelo Chiado abaixo. O Teixeira era, com toda a certeza, agente da Direção-Geral de Segurança (o "heterónimo" que o marcelismo tinha criado para a Pide), cuja sede ficava na rua ao virar da esquina.

Depois do 25 de abril, viria a saber-se que a dona da tabacaria era "fiadora" de muitos pides e que aquele era um pouso de predileção dessas figuras.

sexta-feira, outubro 04, 2013

Os nomes e lugares

Vi que saíram da cena da vida Silvino Silvério Marques e Vasco Lourinho. Quem, com menos de 30 anos, sabe quem foi o general efemeramente reciclado pelo 25 de abril ou o correspondente madrileno da RTP com o mais "portuñolez" dos sotaques? Quem, neste presente muito vertiginoso, tem tempo para um passado cuja evocação deve soar a uma espécie de "name-dropping" nostálgico?

Cruzei esta dúvida com a experiência, que há dias aqui contei, de uma conversa com jovens interessados em falar sobre o património de convívio que se esvai, com os lugares desse outro tempo e das pessoas que ajudaram a fazer-lhes o nome. Fiquei então muito agradado e surpreendido com o facto de terem sido eles a promover uma iniciativa deste género, de procurarem "agarrar" o passado, talvez por entenderem que ele é parte importante da sua própria identidade.

Nessa conversa, e à medida que falava, ia-me dando conta de que, porventura, podiam ter para eles escasso significado nomes de figuras que eu ainda vi pela "Smarta", de escritores que identificava na "Paulistana" ou no "Monte Branco", da importância de quantos preparavam pelo "Vává", mas também pela barra do "Gambrinus", o renascimento do cinema português. Arrisquei falar de gente interessante que cruzei na "Granfina", de algumas conspirações leves a que assisti, em fins de tarde, no "Montecarlo", bem como dos "internacional-situacionistas" que por lá surgiam, dos "situacionistas" do regime (e dos sportinguistas, o que, ao tempo, era bastante o mesmo) que andavam pelas mesas de canto do "Aviz" ou, um pouco mais acima, de alguma intelectualidade, esquerdalha e jornalística, que passava pela "Ribadouro" ou pelo "Café Lisboa". Mas também de figuras que vi ou conheci por noites do "Botequim", do "Bolero", do "British Bar", da "Alga" ou do "Alfredo". E de quem parava, às tardes, pelas livrarias do Chiado, que antes eram lugar de animada tertúlia - lembrando, no que me toca, especialmente a "Opinião", com o pessoal saído das redações do Bairro Alto.

Alguns perguntarão: mas que importância tem isso hoje, ou, como em tempos se dizia cinicamente, "em que é que isso contribui para a minha felicidade?" 

Ora bem, eu também não andei com o Bocage no "Nicola", nunca encontrei o Eça na "Havaneza", nunca vi o Pessoa no "Martinho da Arcada", não cruzei as gerações históricas da arte na "Brasileira", já não topei surrealistas no "Gelo", não estava no "Chave d'Ouro" quando o Delgado anunciou o decreto de demissão de Salazar. E, no entanto, sei bem quem eram, por onde paravam, o que uns fizeram, o que outros escreviam, conheço histórias que os uniam ou separavam. Um país é isso tudo. É também o que fica para trás. E que nos compete ajudar a transmitir. Dar razões às novas gerações para se interessarem pelo que já lá vai é uma tarefa que ainda vale a pena. Acho eu!

O discurso da "troika"

Há momentos tristes na vida de um país. 

Um deles é ver, com a óbvia cumplicidade (senão mesmo a pedido) das autoridades nacionais, um grupo de credores institucionais externos expressarem, de forma ostensiva, uma pressão sobre um órgão de soberania como o Tribunal Constitucional português. Leia-se isto:
"No caso de algumas destas medidas virem a ser consideradas inconstitucionais, o Governo teria de reformular o projeto de orçamento a fim de cumprir a meta do défice acordada. Tal, contudo, implicaria riscos acrescidos no que se refere ao crescimento e ao emprego e reduziria as perspetivas de um regresso sustentado aos mercados financeiros."
Pergunto-me sobre a reação que, em outros países, um tipo de declaração desta natureza teria desencadeado. 

quinta-feira, outubro 03, 2013

Uma equação belenense

  • Marcelo Rebelo de Sousa mostrou-se altamente crítico da prestação de Pedro Passos Coelho como líder do PSD, considerando mesmo ter sido o pior de toda a sua história partidária.
  • No caminho para as próximas eleições presidenciais, em 2016, o presidente do PSD, seja ele tem for, terá sempre a palavra decisiva na escolha do candidato que o partido vier a apoiar.
  • Como é sabido, em certos setores do PSD, o nome de Rui Rio começa a ser muito falado como alternativa possível ao atual líder, particularmente se o resultado nas eleições europeias, em meados de 2014, voltarem a ser desastrosos para o partido.
  • Marcelo Rebelo de Sousa nunca escondeu as suas ambições presidenciais e o sufrágio de 2016 é, muito provavelmente, a sua derradeira oportunidade, tanto mais que a lógica portuguesa aponta para a recondução dos presidentes em funções.
  • Como se chamava o secretário-geral do PSD que Marcelo Rebelo de Sousa escolheu quando foi presidente do partido?
  • Acertou! Chamava-se Rui Rio.

O futuro da PT

Escrevi aqui um dia que, cada vez mais, só emito opiniões firmes sobre questões relativamente às quais julgo possuir conhecimentos suficientes para formular um juízo minimamente consistente. Quanto ao resto, posso ter vagas ideias, mas elas não dão mais do que para uma mera conversa de café.

É este último sentimento que tenho face à questão da fusão da PT com a brasileira Ói, que por uns dias vai dominar o debate público e que, com toda a certeza, irá ser objeto de tomadas de posição, definitivas e enfáticas, por parte dos nossos conhecidos "tutólogos" - essa originalidade nacional que nos dá o privilégio de possuir um mão cheia de figuras que falam e escrevem de cátedra, sobre tudo o que "vem à rede", desde o desporto à economia, da saúde às obras públicas, passando naturalmente pela política, área em que são ases deste baralho de bisca lambida que nos calhou em rifa.

Por coincidência, e ao tempo em que era embaixador português no Brasil, tive o ensejo de participar em conversas que Henrique Granadeiro manteve com entidades oficiais brasileiras, com vista a apresentar-lhes o modelo estratégico que a PT tinha em perspetiva para aquele país. Não podendo entrar aqui em detalhes, porque a reserva profissional a isso não me autoriza, posso contudo dizer que esse modelo procurava associar, de forma criativa, valências empresariais dos dois países, com a finalidade de obter importantes ganhos de escala, com impactos pretendidos no espaço global da língua portuguesa, numa lógica que excedia em muito as meras comunicações para se prolongar na futura gestão de conteúdos. Era um formato que, ao tempo, parecia coerente e com perspetivas de ser uma boa aposta para o futuro.

Muita água correu, entretanto, sob as pontes. As alianças da PT no Brasil acabaram por ser algo diferentes das que, à época, pareciam ser as mais desejáveis. Foram, com certeza, as possíveis e é nesse novo quadro que o modelo agora anunciado se concretiza.

Como disse, não tenho a menor opinião sobre a bondade da opção seguida. Tenho, porém, duas certezas. A primeira é a de que Henrique Granadeiro é uma personalidade que, ao longo destes anos, maturou e mostrou uma leitura estratégica para a PT, feita de uma grande experiência e de um evidente acumular de sucessos. A segunda é de que Zeinal Bava é, nos dias que correm, reconhecido como um dos mais brilhantes gestores mundiais na área das telecomunicações. Só podemos esperar que a decisão que ambos tomaram - e que, do lado da PT, cabe essencialmente aos acionistas avaliarem - tenha sido a melhor.

Lugares da vida urbana

A iniciativa insere-se no âmbito da Trienal de Arquitetura de Lisboa. O projeto chama-se Gargantua Collective e, em síntese, tem por objetivo refletir sobre as perdas, para o património humano e cultural das cidades, que pode representar a desaparição de alguns locais públicos de convívio lúdico e de restauração, que estão hoje sob forte ameaça, em grande parte pela crise económica, mas, noutros casos, pela mera inadequação da sua oferta, algo estática, face aos desafios do consumo contemporâneo.

O olissipógrafo José Sarmento de Matos e eu próprio, fomos anteontem convidados a falar, perante um público jovem, atento e interessado, que se juntou no restaurante "Pessoa" - uma casa com 164 anos, por onde o homónimo poeta também passou, na clássica rua dos Douradores - sobre a importância desses locais, como plataformas de sociabilização e, em alguns casos, como espaços de criatividade e diálogo cultural, com dimensão histórica significativa.

Dediquei a Lisboa grande parte daquilo que disse, nessas quase duas horas e meia de convívio, onde também se leu poesia e se avaliou a evolução do usufruto da "rua" e da noite pelas gerações, chamando à conversa as redes sociais e a globalização da cultura do imediato, que hoje atravessa as camadas mais jovens, que olham preferencialmente para outros suportes, muito para além dos livros, dos jornais ou da televisão. 

Sem a menor nostalgia mas com o carinho devido, falei de cafés, bares e restaurantes perdidos ao longo dos anos, realçando sempre, contudo, que nunca como hoje a cidade de Lisboa esteve tão "gloriosa" e diversa em termos de oferta gastronómica e de locais de convívio, não apenas para os jovens, mas para todas as gerações e gostos. E abordei, com alguma atenção, a evolução da vida urbana fora da capital, no Porto e em outras cidades de província que conheço bem, notando as mutações nos hábitos e, com elas, a perda inevitável e irreversível do lugar social de certos espaços, como, aliás, acontece um pouco por todo o mundo que se nos assemelha.

Houve ocasião para abordar o tempo da vaga avassaladora dos bancos sobre muitos cafés, explicando o papel que estes tinham desempenhado, durante muitos anos, na atenuação da solidão de quem, vindo da província - e, à época, "quase não havia lisboetas..."- caía desamparado numa cidade que parecia imensa, fosse ele estudante ou trabalhador. Falámos das tertúlias políticas, intelectuais e literárias, desportivas ou simplesmente lúdicas, da noite "que era predominantemente masculina", salvo num seu certo lado... Falámos muito, de facto, dessa noite, da boémia, pobre e rica, dos bares, dos cabarés, até do fado, dos escritores e dos seus lugares preferidos, dos locais operários e estudantis. E da cultura, dos suplementos literários, das revistas que marcavam um tempo que era muito mais lento e menos perecível, agora apagado de imediato pelo dia seguinte.

Sarmento de Matos, com o seu conhecimento histórico ímpar da capital, deu-nos notas curiosíssimas sobre a evolução espacial de Lisboa, dos círculos de identidade em que a capital se desdobrou, das dinâmicas sociais urbanas e no modo como a cidade se foi construindo.

Na sala estava uma das figuras a quem a divulgação da vida e obra de Eça de Queiroz mais deve, o arquiteto Campos Matos, que contribuiu com traços muito interessantes dessa Lisboa novecentista. Apelámos à audiência para que lesse "A Capital", onde está tudo: os cafés, as tertúlias, os lugares de restauração, a vida social e intelectual, visto sob um (falso) olhar provinciano. Olhar essa Lisboa é meio caminho andado para entender a Lisboa de hoje. E Portugal.

quarta-feira, outubro 02, 2013

O voto de Berlusconi

Graças a Sílvio Berlusconi, a Itália parece ter regressado a um novo ciclo de turbulência. Hoje, num almoço a que assisti, veio à baila esta figura polémica da política europeia. Dois dos convivas, ambos portugueses, contaram um episódio curioso a que haviam assistido.

Um conhecido político português foi, um dia, visitar Berlusconi, que então era primeiro ministro. O encontro decorreu de forma agradável, no ambiente de descontração que o líder italiano tradicionalmente proporcionava aos seus visitantes.

O nosso político, a certo ponto da conversa, fez uma apresentação muito completa e informada sobre a situação europeia e mundial, com grande rigor e brilho expositivo. Berlusconi mostrou-se visivelmente interessado no que ouvia, que seguiu com atenção até ao fim. Nesse instante, não se conteve e disse:

- Tenho pena que o senhor não seja italiano!

Por segundos, o escasso auditório ficou perplexo. Com um sorriso aberto, Berlusconi esclareceu:

- Se o senhor fosse um político italiano, eu e a minha família votaríamos em si, com toda a certeza.

O nosso político terá considerado isso um elogio?

terça-feira, outubro 01, 2013

Silêncio de ouro

Os comentadores, na sua natural liberdade, podem, e até devem, falar da possibilidade de Portugal, caso venha a constatar-se que não consegue regressar ao mercado financeiro sem garantias externas, poder ter de vir negociar um novo programa de ajuda, no pior cenário em moldes idênticos ao atual, na melhor das hipóteses através de um "programa cautelar", apoiado apenas nas instituições europeias.

Aos mesmos comentadores assiste também o direito de refletirem em voz alta sobre se Portugal e os seus credores não deverão, em momento oportuno, encarar a possibilidade de recorrer a uma "reestruturação da dívida" (alguns, dados ao "economez" que agora é gíria, dão-se ao luxo de falar de "haircut"), elegante forma de se assumir que parte dela será necessariamente "perdoada" e não paga, atenta a implausibilidade manifesta de o país vir a registar taxas de crescimento capazes de corrigirem os atuais desvios.

De igual modo, nas tribunas de imprensa ou nas conversas de café, a questão do nível do défice das nossas contas públicas para 2014 pode ser objeto de comentários, às vezes informados, outras vezes meras "fezadas". Ou, retomando Augusto Gil: "Será 4%? Será 4,5%? 5% não é certamente, porque a "troika" não deixa assim..."

Os comentadores têm todo o direito de especular sobre tudo isto. Mas os políticos não. Só que, em Portugal, já não se percebe bem onde começam uns e acabam os outros. 

Numa situação internacional na qual a imagem de Portugal sofre hoje de uma clara fragilidade, em que os detentores - atuais ou potenciais - da nossa dívida olham "à lupa" qualquer dissonância por parte do nossos decisores políticos - também eles, atuais ou potenciais -, o óbvio recomendável seria que todos eles se calassem, sobre os temas que acima referi. Mas já se percebeu que isso não é possível e que a politiqueirice os impele a fazerem, de quando em vez, considerações "ligeiras" sobre estas questões, que sendo de uma extrema sensibilidade, nos custam a todos, e todos os dias, imenso dinheiro. Que não são eles que pagam, claro.

É a vida?

O PS não tem pena de não ter sido um seu governo a anunciar o novo aeroporto (não conta, claro, o "anúncio" feito por Pedro Nuno S...