domingo, outubro 06, 2013

A tabacaria

Era uma pequena tabacaria de vão de escada, situada no edifício entre a igreja da Encarnação e a então livraria "Diário de Notícias", no Chiado, onde hoje está a Hermès. Dirigia-a uma matrona faladora, que sempre vi à conversa com uns tipos de fato cinzento, sem notória ocupação, que se encostavam pela entrada.

Terá sido por 1971 ou 1972. Num dia, entrei na tabacaria - se assim se pode dizer, porque o balcão estava quase junto à porta - e pedi o "República", o diário oposicionista que saía no início da tarde.

A matrona olhou-me com um sorriso desdenhoso e replicou: "Eu não vendo esse jornal!". Virei as costas, mas ainda ouvi o comentário dela para um dos cavalheiros que ornava a moldura da porta: "Ó Teixeira! Este queria o jornal dos comunas. Deve ser daqueles de quem vocês gostam..."

Saí "gelado" pelo Chiado abaixo. O Teixeira era, com toda a certeza, agente da Direção-Geral de Segurança (o "heterónimo" que o marcelismo tinha criado para a Pide), cuja sede ficava na rua ao virar da esquina.

Depois do 25 de abril, viria a saber-se que a dona da tabacaria era "fiadora" de muitos pides e que aquele era um pouso de predileção dessas figuras.

23 comentários:

Anónimo disse...

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
In Tabacaria de Álvaro de Campos.
José Barros

ignatz disse...

mas o jornal dos comunas não era o avante? há qualquer coisa errada neste episódio antifascista.

Isabel Seixas disse...

Pouco perspicaz a senhora bruxa...
via-se logo que era para coleção, que mais poderia ser com os sarroncos espalhados por todo o lado e até em forma de mulher, oh coitados filhos da mãe.
Ps(Mesmo PS)
"Tenho saudades de ver a minha amiga por aqui, numa fase que há tanto por rimalhar..."

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Ignatz: não há nada de errado, nem o episódio trm nada de "antifascista". Trata-se apenas da atitude de quem achava que tudo quanto tinha qualquer coisa de oposicionista podia logo ser qualificado de comunista.

Anónimo disse...

Agora o prédio da Pide é um prédio de apartamentos de luxo. Assim se vê o que fizemos da nossa democracia.

margarida disse...

Film presque noir...
Os tempos e o local, cenário belo e perfeito, adequam-se. O galã desce a Calçada do Combro e, na afoiteza da juventude, afronta o perigo.
Num esconso sombrio acoita-se a 'bufa', que usa o negóciozeco como posto avançado da polícia política.
Mas esta é um nadinha bronca e não usa as possibilidades que a estratégia disponibiliza: não comercializa os jornais 'do contra', e assim os esbirros que ali sabujam não podem seguir os prevaricadores e aferir de putativas conspirações contra os sagrados pilares do Estado.
Como famoso resistente, o galã nunca conhece, então, o arrepio de um inquérito na António Maria Cardoso? De um abanão mais rancoroso? De uma noite em branco atrás de umas grades sinistras?
Sequela, aguarda-se.

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Margarida: gostei da trama. Mas a História não "ajuda". Este escriba nunca teve qualquer actividade "subversiva" que justificasse o interesse da polícia política.

Anónimo disse...

Conheci essa Tabacaria nos anos 60 e 70, pois trabalhava na zona e quási diariamente lá entrava para comprar cigarros (jornais poucos). Confirmo a presença frequente dos agentes da DGS (PIDE), bem como no café Brasileira, já que a sede da polícia era ali bem perto, na rua António Maria Cardoso. Assisti, uma manhã, à entrada do Luís de Sttau Monteiro pedindo a essa senhora o jornal Diário da Manhã, (Bíblia do governo de então). Em menos de um minuto, depois de ler a notícia que lhe interessava, rasgou-o com raiva, e meteu-o no lixo. Não estava na altura nenhum dos agentes habituais, pois caso contrário, iria fazer uma visita à António Maria Cardoso...

Anónimo disse...

As Tabacarias na Baixa Lisboeta, muito antes do 25 de Abril, eram locais de eleição, bem como alguns cafés, de tertúlias políticas e não só. Já depois do 25 de Abril, esta Tabacaria no Chiado, era passagem de caixões com defuntos de e para a Igreja.

margarida disse...

Excelência!... a sério?!

Anónimo disse...


O meu pai contava que se algum colega de trabalho se atrevia a pedir aumento de ordenado, o patrão ameaçava-o dizendo que iria denunciá-lo como comunista!

Esperemos que esses tempos de pides ou comunas a "gelar" pessoas tenham desaparecido para sempre!

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Margarida: é pura verdade! Se ler bem este blogue, que tem o rigor factual como regra de ouro, reparará que, a maioria das vezes, eu sou essencialmente um observador comprometido nos episódios que relato, nuns casos figurante, noutros ator secundário, raramente "sujeito" - e, quando isso é o caso, aquilo que importa realmente é o que se retira da explicação do contexto. Na maioria dos casos, o que você lê por aqui são as minhas histórias dos outros.
A menos que fosse outro o sentido da sua surpresa...

margarida disse...

Excelência, creia que leio muito bem este blogue.
:)

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Margarida: ainda bem! Porque, no que me toca, tenho a sensação de que leio cada vez menos o que por aqui escrevo...

opjj disse...

Teixeira!-conheci um há 20 anos, que era - polícia- qd ia a Santa Apolónia esperar à sexta o meu filho que estudava em Coimbra. Todas as noites q o Sr.estava em serviço, esgotava 2 cadernetes com multas.Tb me tocou.A par da estação haviam bombas de gasolina, não é q o Sr. polícia se escondia atrás duma bomba e todos os q não fizessem sinal prá direita para abastecer, levavam com a respectiva. E eram todos.
Cumprimentos

Anónimo disse...

Vexa saiu ""gelado" pelo Chiado abaixo" porque não tinha "tomates" para ser comuna ?

DFM

Francisco Seixas da Costa disse...

Que elegância, DFM! Dá gosto publicar comentários com este recorte estilístico

Carlos Fonseca disse...

Nunca teve qualquer actividade "subversiva"?

Se bem me lembro do que li neste blogue, o senhor militou na CDE,em Vila Real. Se "eles" não consideravam isso "subversivo", então era o quê?

Helena Oneto disse...

Cada vez que o meu tio Fernando "intentava contra o regime", um par de Pides chefiados pelo inspector Rosa Casaca punham-se de plantão no passeio em frente a nossa casa. Durante os dias que durava a caça, era habito telefonarem a minha tia ou a minha avó proferindo ameaças e insultos. Fartos de secar ao sol ou debaixo de chuva sem sucesso, os pides mudaram de metodo: antevendo um qualquer acontecimento que pudesse desenfrear contestaçoes, agentes chefiados pelo inspetor RC iam prender o meu tio a casa "em prevençao" e passavam os quatro andares da casa da Lapa a pente fino. Estas cenas repetiram-se vezes sem conta! E nao vale a pena contar os que cruzavamos em Caxias quando iamos as visitas. Mais tarde, nas minhas idas e vindas para Londres, era acolhida no aeroporto por um par de sinistros individuos que vasculhavam a minha mala com luvas brancas! Uma noite, tive o privilegio de ter ao meu lado, num voo Lisboa Londres, um senhor de punhos brancos a tentar "arrulhar"-me (expressao que aprendi com o Senhor Embaixador) com palavras doces para o acompanhar... Chegados a destino, o galã teve oportunidade de mostrar a sua "bienveillance á mon égard" tirando-me duma situaçao dificil na passagem da duane. Se não fossem uns maços de cigarros a mais, nunca teria sabido que o meu 'anjo da guarda" era nem mais nem menos o numero dois da PIDE!
Sao coisas que nunca se esquecem!

EGR disse...

Senhor Embaixador: permita-me que relate aqui que também me deixou bem gelado: certo dia viajava eu de comboio para a cidade onde se situava - e lá continua - a faculdade onde fui aluno voluntário; ia em companhia de um colega que, ao tempo, chefiava a secretaria do colégio que eu frequentara. A certa altura veio sentar-se junto a nós um sujeito, que o meu amigo conhecia; o homem bem falante conversou connosco animadamente até ao fim da viagem momento em que nos separamos.
Foi então que o meu amigo me perguntou se eu sabia quem era o sujeito tendo eu respondido, naturalmente, que não, após o que ele me informou que o dito era, nem mais, nem menos, o diretor de rebatizada PIDE no Porto facto que ele conhecia porque o homem era casado com uma senhora que dera aulas no nosso colégio.
Mais tarde encontrei o mesmo sujeito varias vezes na sala de audiências do tribunal plenário que julgou o padre Mário da Lixa.
Assistia as audiências sentado na parte da sala destinada aos advogados numa secretária colocada do lado em frente a destinada aos advogados e nos intervalos, circulava nos corredores do Tribunal de S. João Novo com grande à vontade e quando me via falava das peripécias dessas indescritíveis audiências presididas por um repugnante desembargador de nome Morais Campilho.
Esclareço que não tive qualquer intervenção em tais audiências apenas assisti a algumas delas.
O sujeito em causa esteve preso depois do 25 de Abril mas que eu saiba não foi julgado e muito menos condenado.
Com efeito, talvez uns três anos mais tarde, exercia advocacia no Porto.
Sem dúvida que o 25 de Abril foi a revolução dos cravos!

Ésse Gê (sectário-geral) disse...

Coimbra, década de 60 - 1967,quase de certeza. Em razão de relações familiares, no meu caso, de filiação, no refeitório da PSP de Coimbra era permitido que alguns estudantes universitários ali tomassem as refeições. Do mesmo beneficiavam alguns funcionários públicos; ao todo pouca gente além dos utentes 'naturais', o pessoal da PSP.
No corredor de entrada, do lado esquerdo, havia um bengaleiro que acolhia abafos, guarda-chuvas e as pastas ou livros soltos que transportávamos. Havia também uma mesa grande onde se sentava a generalidade dos utentes e umas duas ou três, pequenas, para alguns 'distintos'.
Destes, um casal talvez a entrar na casa dos trinta, discreto: para além dos educados cumprimentos, nada os notava, mudos e calados para o exterior do seu mundo.
Até que um dia ele entra de rompante na sala, brandindo alto uma revista, e pergunta com voz forte e veemente, até então insuspeita de poder sair daquela estatura um pouco abaixo da média (largura e altura) olhos vivos nariz pontiagudo e cara cor de pele de tambor com pouco uso:
- De quem é isto?
Como a Seara Nova era minha, respondi num tom parecido e espontâneo:
- É minha, se quiser ler eu empresto-lha!
O rapaz, com ar surpreso e suspenso, fez uma pausa e saiu da sala a recolocar a Seara no sítio em que a encontrara. Almoçou com a sua, e lá voltaram à normalidade de mudos e calados.
Depois de eles saírem um dos agentes da PSP presentes dirigiu-se ao nosso grupo e avisou:
- Tenham cuidado, o gajo é da PIDE.
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Anos passados, numa ação de formação e coordenação num organismo público onde na altura exercia funções dirigentes, vejo ali na minha frente aquela cara em cima de um corpo sentado no anfiteatro, tentando inutilmente fazer que não estava lá.
No final, naqueles cumprimentos a que ninguém podia fugir, e perante a sua pose entre o tímido e algo parecido com ‘temor reverencial’ só lhe perguntei com toda a bonomia que pude arranjar:
-Então vai lendo a Seara Nova?

Anónimo disse...

Nos anos 60 trabalhei um ano no Recife - Brasil. Fiz uma assinatura da Revista Seara Nova, para o endereço do hotel onde morava. Foi o bastante para aí ter um contato com alguém ligado à Pide, o que me trouxe alguns problemas.

Anónimo disse...

"Anónimo 7 de Outubro de 2013 às 14:34", se foi "contato", não tem muito de que se queixar, que raio...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...