sábado, dezembro 22, 2012

Este Natal

Este ano, não passarei o Natal em Vila Real. Na vida, isso aconteceu-me apenas duas vezes: quando vivia em Londres, já nem sei bem porquê, e, no ano passado, porque fiquei por aqui, por Paris, na ressaca de uma questão de saúde. 

Devo dizer que não sinto falta deste Natal, em Vila Real. Seria um Natal triste, depois de um tempo recente em que, por lá, perdi pessoas com cuja falta me não reconciliei. Aliás, nos últimos anos, pelas leis da vida ou da morte, chamem-lhe como quiserem, os Natais têm vindo a tornar-se momentos um pouco mais sofridos do que agradáveis.

Nem sempre foi assim. Até à minha adolescência, os meus Natais dividiam-se entre Viana do Castelo e Vila Real. E eram muito, mesmo muito agradáveis e alegres.

"Exilado" em Vila Real desde os anos 40, o meu pai rumava a Viana com a família, poucos dias antes do Natal, do mesmo modo que fazia nas "férias grandes" e na Páscoa. Invariavelmente, ano após ano. Não tinhamos carro. Íamos de comboio, em três etapas épicas. Primeiro de Vila Real à Régua, na velha linha do Corgo, bancos de "sumopau", com as faúlhas da fumarada das máquinas a entrarem-nos pelos olhos, se acaso espreitávamos pela janelas. Da Régua ao Porto, o comboio era melhor, embora mais monótono. Por um tempo, o Douro ia ali ao lado, mas nós, nessa época, nem olhávamos para ele. (Era uma viagem em que, no Verão, em algumas estações, mulheres vendiam regueifas e água em recipientes de barro: "Água e bilha, 15 tostões!", apregoavam).  A aproximação do Porto, anunciada por túneis sucessivos cuja travessia nunca, até hoje, me sossegou, induzia-me uma recorrente inquietação. É que via o meu pai, com a sua organização meticulosa, preocupado em conferir ao minuto os atrasos, que nessas alturas eram frequentes, por forma a tentar perceber se "dava tempo" para chegar a Campanhã ou mesmo a S. Bento ou se, pelo aperto dos horários, tínhamos de mudar para a linha do Minho em Ermesinde, num rebuliço de bagagens e gentes, com a certeza de ter de ir de pé até Viana, nesses períodos de inevitável enchente dos comboios. É curioso que, até hoje, o nome Ermesinde provoca em mim um "frisson" subliminar, ligado a essa angústia de infância. 

Passávamos quatro ou cinco dias em Viana, com a ceia da Consoada no casarão da minha avó materna, no largo Vasco da Gama, um ambiente que, para a vida, me ficou como sinónimo de férias. Lembro-me bem do presépio que, em cada ano, saía de um armário, do musgo que íamos buscar ao quintal, para colocar sobre um papel forte manchado, e de uma famosa "vaca" que o não era (mas esta é uma "private joke" familiar...). Com os meus primos, jogava pinhões ao rapa e inventávamos algumas maldades inocentes, para encher as noites em que os adultos se entretinham em conversas que só com os anos fomos conseguindo acompanhar. Eram serões muito agradáveis, com todos à volta da minha avó e nós, os mais novos, a traquinar pela imensa casa.

Na tarde de 25 de dezembro, depois da "roupa velha", comida impreterivelmente ao meio dia e meia (a minha avó era de horários sagrados), partíamos para o Porto, comigo já contentado com algumas prendas recebidas. Parte das quais, contudo, para meu silencioso desconsolo, eram sempre pacotes de meias (isso mesmo, meias!), uma oferta regular de duas tias, compradas no Eugénio Pinheiro, ali na Picota. Desse regresso de comboio, tenho para sempre na memória a imagem do meu pai a ler "O Comércio do Porto", nesse dia sempre com as páginas muito ilustradas, com coloridos motivos natalícios. E da minha mãe entretida com a então famosa "Eva" do Natal, uma revista que eu só via surgir nessa altura, com numeração para sorteio de uma moradia. Nunca nos "saiu", diga-se, porque toda a sorte que tivémos deu sempre muito trabalho.

A chegada à estação de S. Bento, com fumarada, apitos e uma barulheira que eu achava o máximo do cosmopolitismo, que depois me lembrava alguns filmes, era um momento desejado. Aguardavam-nos familiares muito próximos, com os quais, após uma ritual passagem para abraços em casa de outros, avançávamos para Vila Real. Ia-se por Santa Catarina, pelo Marquês e por Costa Cabral adiante, passando próximo de Ermesinde (outra vez!), rumo às temíveis curvas do Marão. A elas nos abalançávamos depois de um "reforço" em Amarante, no Zé da Calçada, com aquisição da doçaria na Lai-Lai, ao lado. Passada a Pousada e o ansiado Alto de Espinho, onde a curvaria amainava, as luzes de Vila Real, avistadas de Arrabães, prenunciavam já a outra noite de Natal que aí vinha, desta vez em casa dos meus avós maternos, numa bela e alegre noitada, com outros tios e outros primos. E com novas prendas, claro!

Eram dias felizes. Foram-se os avós, foram-se os pais, foram-se quase todos os tios. Restam os primos, "primos-irmãos", uma rede renovada em gerações, assente num tecido de muito forte amizade. Mesmo assim, este ano, não tenho vontade de passar o Natal em Vila Real.  

É só saúde!

No Hospital de S. João, no Porto, "cada cirurgião faz, em média, uma cirurgia por semana" e "30 cirurgiões nunca foram ao bloco operatório".

Quem afirmou isto foi o presidente do Conselho de administração do Hospital de S. João.

Tal como, há dias, no caso dos "médicos a mais" em Portugal, confesso a minha total incompetência para abordar este tipo de assuntos, fiel ao meu lema de só falar daquilo que sei ou julgo saber. Mas, como simples cidadão, não consigo deixar de achar tudo isto um pouco estranho. Mas, com certeza, devo ser eu quem está a ver mal as coisas.

Haja saúde!

Continuação...

Nos apertos, é sempre muito cómodo haver soluções fáceis, à mão de semear. 

Neste caso, uma vez mais e para não variar, elas saem desse cordeiro eterno para todas as missas - os funcionários públicos. Ou, como se diz na minha terra, nesta época, "continuação"...

Como se vê aqui e aqui.

sexta-feira, dezembro 21, 2012

Boas Festas...

 ... para todos os leitores deste blogue.

Para os republicanos e para os monárquicos, para os críticos e para os defensores do acordo ortográfico, para os que adoram touradas e para quantos as detestam, para quem é de direita e para quem anda pela esquerda, para os bloguistas "graves" da política e para os que não se levam muito a sério, para os adeptos do Sporting e para os adeptos do resto, para os pessimistas e para os meus comparsas otimistas - para todos, Festas Felizes e os meus votos de que 2013 (13, cruzes!) não venha a ser tão mau como alguns já o pintam.
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Post-scriptum só para vilarealenses. O meu amigo Francisco Agarez insinuou, no Facebook, que a fotografia acima reproduzida não parecia ser de Vila Real. Ora isso é um óbvio absurdo. Mandei-lhe a seguinte mensagem: 

Caro Francisco Agarez: mude de óculos, homem! A foto já tem uns anos, mas então não se vê logo que é a avenida Carvalho Araújo, em Vila Real? O vulto a subir é o Bertelo, saído da Sé, junto ao Pátio das Cantigas. A seguir, dos Correios, espreita o Setas e, logo adiante, passados os Quinchosos, junto ao portão do Seminário, lá está a batina do padre Sarmento. Os carros de praça que passam são do Falei e do Bragança. Na reentrância da pensão do Camposana está bem à vista a figura do Honório (não, não é o Fernando Pessoa!), com o saco de plástico na mão. Na vitrine da Pompeia, nota-se que o Neves está a correr os estores. Logo depois, o padre Henrique (então não vê?) está à porta da Voz de Trás-os-Montes, tendo ao lado o Alvelos, que acaba de fechar o Turismo (lá estão as bilhas de segredo de Bisalhães na montra!). Com algum cuidado, vê-se o dr. Zézé a sair do Clube pela escada para a avenida. E, um pouco acima, o Sarreiro encerra a sua loja e o Zé Araújo fecha a porta da Galeria d'Artes, ao lado do barbeiro. Não sei bem quem é o miúdo que está a sair da porta do edifício da Caixa mas, bem mais ao fundo, à direita, embora um pouco mais difícil de descortinar, podem ver-se garrafões a sair do Alcino para a carrinha do António da Toca da Raposa, bem como a barriga proeminente do Furriel, de chapéu na cabeça, a falar com o Chico Costa, de boina basca. Logo depois, bem visível, lá está a bela varanda dos Mota e Costa, com o João Albardeiro encostado à parede a falar com o Quim Rato. Finalmente, só por distração é que você não viu o Pincha e o Chico Cereja a discutir nas escadas do Tribunal. Caramba, homem, vá ao Frederico ver esses olhos! E já que anda ali pelo Pelourinho, compre-me um bolo-rei. Mas na Gomes velha, está bem?)

Em tempo: e o Francisco Agarez respondeu:


Tem toda a razão, meu caro Francisco, mas que quer? Ainda uso as cangalhas que o pai do Frederico me receitou em 1959 e que aviei no Ferreira oculista. Eu bem andava a estranhar ver tudo desfocado à minha volta e já me tinha convencido de que tinha mesmo de mudar de lentes. Mas quando me preparava para passar das intenções aos actos levei com o OE 2013 e encolhi-me todo. Tenho o azar de ter graduações diferentes nos dois olhos (defeito de fabrico de que já não tenho junto de quem reclamar), o que me impede de comprar os óculos novos numa loja das Three Gorges. E também, para lhe dizer quanto é franco, acho que o melhor é mesmo continuar assim, que o que está para vir não é bonito de se ver e já não tenho pernas para ir à caça de lebres e aparentados. Um Bom Natal para si e para a sua mulher".

Nos comentários, alguns vilarealenses ajudaram ainda a "ler" melhor a fotografia. 

TAP

Afinal, não foi o fim-do-mundo para a TAP.

quinta-feira, dezembro 20, 2012

Casa da Música

É uma muito má notícia, a acrescer a outras tantas que nos atormentam os dias, a crise por que passa a Casa da Música, no Porto. Criada no quadro do Porto - Capital Europeia da Cultura, o projeto revelou-se um êxito e uma decisiva contribuição para o reforço de uma centralidade cultural na região.

2012 foi um ano que ligou a Casa da Música a França, com uma programação específica dedicada a este país, cujo lançamento tive o gosto de fazer na embaixada em Paris. Cidade, aliás, onde a respetiva orquestra teve uma prestação de relevo.

Espero que da solução para este impasse não acabe por sair um remendo de gestão que seja o início de um declínio de um grande projeto. Da vida de um país também faz parte a cultura e esta ajuda a atenuar muitas outras mazelas.

Disponibilidade

Não sou um leitor atento dessa bíblia quotidiana que se chama "Diário da República", que até tem "cadernos" (séries) como os grandes jornais. Mas há quem seja. Por isso, a meio da manhã de hoje, essa sentinela cívica que é o meu velho amigo José Dias lá me assinalou que o referido periódico traz hoje a minha exoneração da embaixada em Paris e da UNESCO, "por passar à disponibilidade", com efeito retardado até ao meu aniversário.

Devo dizer que, ao ler o decreto, senti uma sensação curiosa. É o fim de um ciclo, neste caso, o último episódio da crónica de uma saída anunciada. A obrigatoriedade de abandonar o serviço ativo no estrangeiro aos 65 anos é algo que muitos colegas meus contestam, por acharem essa "deadline" etária menos compatível com a tendência universal para se exercerem as funções até mais tarde na vida. Como quem me conhece sabe, não comungo dessa perspetiva, por duas razões.

Em primeiro lugar, porque havendo hoje menos postos diplomáticos e consulares de carreira, tendo sido reduzidos os lugares de chefia no MNE em Lisboa e havendo um manifesto "engarrafamento" na categoria profissional que permite o acesso às chefias de missão no exterior, é para mim mais do que natural que sejam dadas possibilidades a alguns colegas de ascensão a essa titularidade. E isso, naturalmente, passa pela "saída de cena" dos mais antigos. Nada de novo, basta cumprir a lei, que tem décadas. Por isso, também não se justificam os arroubos de "jeunisme" que afetaram algumas pressurosas fontes (quase) anónimas do MNE, ao darem parangonas à baixa da média etária dos novos chefes de missão. 

Em segundo lugar, esta obrigatória passagem à "disponibilidade" - curioso conceito, mais adequado a uns dos que a outros, diga-se... -, em particular se associado à possibilidade de acesso à aposentação, abre a hipótese a alguns diplomatas de, a partir dos 65 anos, ainda terem acesso a uma "segunda vida" profissional, que permita complementar as suas pensões de aposentação, sobre cujo futuro fiscal me abstenho naturalmente de falar. Como uma lei (do anterior governo, diga-se) deixou de permitir acumular essa pensão de aposentação com qualquer prestação de serviço público, mesmo o ensino, resta a opção de enveredar pelo setor privado, a quem tiver possibilidade de o fazer. Para quem acha que aprendeu, no decurso de uma longa vida profissional, algo que ainda pode ser útil a quem o reconheça como tal, e tendo a faculdade de não sofrer, além do mais, da menor incompatibilidade, julgo que esse é um caminho mais do que legítimo.     

Discursos

Por aqui, os jornais trazem, nos últimos dias, citações de frases que, no passado, foram pronunciadas, por responsáveis políticos franceses, por ocasião de encontros franco-argelinos. São expressões que, no respetivo contexto histórico, pretenderam ter um significado próprio, por assinalarem uma linha política que era desejado destacar. E, de facto, juntar hoje essas citações ajuda a perceber melhor o esforço que, em cada época, foi feito para tentar melhorar as relações da França com a sua ex-colónia magrebina.

A profissão ensina-nos, contudo, a ter alguma prudência quando observamos o débito de um discurso político. É importante que se saiba que, a um certo nível elevado de responsabilidades, raro é o político que escreve os seus próprios discursos - ou porque não tem tempo ou porque não tem jeito ou por qualquer outra razão. A maioria dessas prestações públicas ou são colagens de contribuições diversas ou assentam no trabalho de um "ghost writer" ou, o que é mais comum, resultam da combinação de ambas as coisas. É claro que também há alguns raros políticos que, perante um projeto que lhes é apresentado, "trabalham" os textos, os reescrevem, em especial para certas ocasiões tidas por importantes. Mas já fui testemunha de figuras políticas a pronunciarem, sem alterarem uma vírgula, discursos preparados por outros. Algumas vezes sem sequer se darem ao trabalho de os lerem antes...

Não é este o caso dos "grandes" discursos, claro. Mas, mesmo nestes, no tocante às "grandes frases" que se pretendem deixar para a História, eu recomendaria a quem as ouve que relativize sempre a genuinidade da sua real paternidade. Porquê? Porque a história política prova que grande parte das citações que fixaram um lugar no imaginário público foram, de facto, escritas por outra pessoa que não o político que as pronunciou, isto é, são obra de um "ghost writer" ou, como se diz em francês, de um "nègre", às vezes possuidor de uma escrita genial, que ajuda muito um político a brilhar.

Mas a vida política também prova que não é possível fazer uma boa carreira apenas "às costas" dos discursos dos outros e que, por essa razão, os verdadeiros grandes políticos são aqueles a quem a História fez merecer as belas frases que alguém lhes colocou na boca.        

quarta-feira, dezembro 19, 2012

A diplomacia de Salazar

"A diplomacia de Salazar (1932-1949)" é um excelente trabalho de investigação feito pelo meu colega Bernardo Futscher Pereira, recentemente editado pela Dom Quixote.

O livro é redigido num estilo fluente e de muito agradável leitura, sem recurso a academismos pesados ou a um "oficialês" em que muitos de nós, diplomatas, por vezes incorremos. Quase diria que estamos perante uma escrita tributária de uma boa escola jornalística, fruto da passagem do autor por essa área, quando, de Nova Iorque, escrevia para o há muito desaparecido "O Jornal", ao tempo que o seu pai - um dos mais brilhantes nomes da nossa diplomacia - representou Portugal junto das Nações Unidas.

Este trabalho ajuda-nos a entender melhor o processo decisório de Salazar, no seio da tormenta política internacional dos anos 30 e 40 do século passado, ao tempo em que tinha como rede de trabalho um conjunto de excelentes profissionais da diplomacia, uns "de carreira" outros de origem política, que serviam a estratégia de um país que então procurava furar por entre as pingas dos conflitos europeus, da Guerra Civil de Espanha à Segunda Guerra mundial. Mas, mais do que isso, este é um livro que nos revela, de forma viva e fundamentada, as tensões dentro do regime, os seus conflitos de personalidades e de vaidades, num tempo ainda de maturação da ditadura.

Para quem se interessa pela prática diplomática, não deixa de ser interessante apreciar a condução do jogo tático a que o ditador se dedicava, na sua quase solidão de S. Bento. A gestão política dos regimes autoritários tem a "vantagem" de não ter necessidade de viver sob o "peso" do escrutínio democrático, de poder ter à mão arbitrária a polícia política e a repressão, como instrumentos que pode utilizar, de certo modo a seu bel-prazer. Salazar orientava o país no plano externo, notoriamente preocupado em preservá-lo dos efeitos dos conflitos, mas igualmente cuidando em salvar o seu regime dos "riscos" de uma contaminação democrática que podia colocar em causa o seu próprio poder.

Não faço parte de quantos, nomeadamente nos corredores das Necessidades, sempre santificaram a habilidade do ditador, embora, como profissional, não deixe de apreciar o desenho tático da sua estratégia diplomática. Talvez isso aconteça porque herdei histórias de quem ouviu os fusilamentos matinais dos "rojos" espanhóis nos muros de Tui, devolvidos pela polícia portuguesa às forças franquistas, ou porque conheço o suficiente da tragédia pessoal de Aristides de Souza Mendes, sacrificado ao cinismo da realpolitik, a qual, pelos vistos, se sobrepunha à ética de um país que se pretendia dirigido pela moral cristã. 

Como técnico da diplomacia, é-me muito interessante analisar os expedientes a que Salazar recorreu para fugir aos conflitos peninsular e mundial, mas, nem por um segundo, deixo de pensar que isso foi feito tendo como pano de fundo, por décadas, um regime sinistro. A diplomacia não é uma prática neutral, não está desligada dos princípios em que se apoia, e, em especial, não pode constituir-se numa mera lógica de fins.

terça-feira, dezembro 18, 2012

Do Golfo à Turquia

Nestes tempos em que a pressão das questões internas (com a Europa comunitária tida como tal) aparece quase como obsessiva na nossa agenda política, é muito importante, e prova da maturidade das nossas relações externas, que Portugal continue a assumir a sua vocação internacional e a afirmar-se, em vários outros espaços, como um parceiro fiável e coerente. Por isso, é relevante a atual presença do ministro dos Negócios estrangeiros no Golfo, tal como é de destacar a deslocação que o primeiro-ministro hoje fará à Turquia. Portugal tem de continuar a apostar na crescente abertura da sua economia a novos espaços e novos mercados. Mas, para que isso frutifique, a política é indispensável. Estas duas deslocações configuram a desejável continuidade com uma linha diplomática que vem de há muito e que importa prosseguir.

A região do Golfo, com o petróleo e o gaz que lhe alimentam as ambições, é vista pelo mundo como uma "mina" onde todos procuram o novo ouro. O Golfo - os "golfos", porque cada país da área é um caso e só uma grande ingenuidade poderia aconselhar a tratá-los da mesma forma - é uma zona geopolítica onde, por detrás das torres do progresso, espreitam inquietações regionais, algumas variadas tensões internas latentes e a comum preocupação com o futuro. Ainda há dias tive oportunidade de testar no Oman, com interlocutores locais, mas também com amigos do Qatar, dos Emirados e do Bahrein, o modo como o nosso país é "lido" na região, a simpatia histórica de que disfrutamos, a confiança que em nós depositam, talvez pela nossa dimensão e seguramente pelo apreço que lhes merece a nossa atitude. Claro que podemos e devemos explorar economicamente esta realidade, e ninguém levará a mal que o façamos, mas não é menos importante, para Estados que vivem num contexto regional muito particular, que saibamos dar notas claras e inequívocas do modo como somos fiéis aos nossos compromissos para com eles, nas arenas internacionais onde nos movemos, no tocante aos seus interesses e aos cenários que mobilizam as suas preocupações. Isso é válido para a questão do Irão, como o é para o caso sírio e, naturalmente, na atitude quanto à Palestina*.

O caso turco tem uma dimensão diferente, mas nem por isso deixa de ser menos relevante. Desde há vários anos, Portugal tem tido para com a Turquia um comportamento político de uma coerência exemplar, em especial nos quadros da União Europeia e da NATO. O nosso país cedo compreendeu e disse alto que era essencial para a Europa conseguir estabelecer com Ancara uma sólida relação de confiança, não hesitando em deixar públicas mensagens de apoio à sua aproximação às instituições europeias, mesmo quando, a partir de certa altura, essa linha de abordagem entrou em contra-ciclo com a atitude de outros parceiros, como é o caso do país onde estou acreditado. No caso da NATO, Portugal não esqueceu nunca que a Turquia funcionou como a linha da frente das tensões com o mundo soviético, tendo sido, por décadas, um fiel aliado ocidental, pelo que as suas mais recentes crises de segurança, como foi o caso do Irão e agora da Síria, não nos podem ser indiferentes. Ancara é hoje um país emergente da maior importância, um parceiro indispensável numa vital zona de confluência de poderes e temos que perceber que uma errada atitude europeia face à Turquia poderia, inclusivamente, ter consequências detrimentais para quantos, dentro do país, pugnam pela prevalência de valores que nos são caros. Basta olhar para um mapa para se perceber a cegueira que significaria o alheamento europeu face à evolução deste país. E Portugal tem dado provas de que percebe muito bem isto (leia-se aqui).

Por isso, nestes tempos de "Europa, Europa, Europa", é bom que a política externa portuguesa saiba olhar para além da espuma do euro.  

* Alguns amigos árabes perguntaram-me, nas últimas semanas, se não havia uma contradição pelo facto de, recentemente, termos votado a favor do novo estatuto da Palestina na ONU quando, há uns meses, o país se havia abstido em idêntico voto no seio da UNESCO. Expliquei que entendia que a posição do governo português fora assumida sob a seguinte racionalidade: a sede para o "upgrading" do estatuto da Palestina eram as Nações Unidas, pelo que era aí que uma primeira decisão deveria ser assumida. Quando ela finalmente teve lugar, Portugal votou a favor, como seria expectável, à luz do nosso tradicional posicionamento na questão. Nessa assumida lógica, a decisão de antecipar, num órgão subsidiário do sistema onusino como é a UNESCO, a elevação do estatuto internacional da Palestina terá parecido, aos olhos do governo português, uma inversão da hierarquia natural das coisas. Contudo, convirá notar que, mesmo nessa votação na UNESCO, Portugal não se opôs à proposta apresentada e que acabou por ser aprovada, tendo apenas optado pela abstenção.

segunda-feira, dezembro 17, 2012

Paulo Castilho e o francês

Paulo Castilho é diplomata, além de um amigo pessoal. Mas é, para além disso, um excelente escritor. Já aqui falei do seu último romance, "Domínio Público", que há semanas recebeu o Prémio Fernando Namora.

Ontem, chegou-me o último JL onde Paulo Castilho assina o "Diário" da quinzena. Noto o que ele ali escreve sobre a língua francesa em Portugal:

"É uma pena que atualmente em Portugal se despreze o francês e já quase ninguém o fale ou leia. Foi e é a língua de uma grande cultura, ainda hoje com um movimento editorial de um enorme vigor, em muitas áreas superior ao inglês. Agora corremos atrás da língua inglesa e de tudo o que tenha um ar de Inglaterra ou de América sem nos darmos conta de quanto nos encontramos longe da mente anglo-saxónica. Não os compreendemos plenamente e eles não nos compreendem a nós e, na verdade, tendem a tratar-nos com alguma condescendência. Os franceses não são certamente perfeitos, mas são mais 'a nossa gente' ".

100% de acordo, Paulo*.

(Curiosamente, ao olhar para o currículo diplomático de Paulo Castilho, verifica-se que esteve quase sempre colocado em paises anglo-saxónicos (EUA, Reino Unido, Irlanda) ou onde o inglês é usual (Suécia), apenas com uma estada num país de língua francesa, quando serviu junto do Conselho da Europa, em Estrasburgo. O que escreveu torna-se assim mais significativo).

Soberania

Onde se devia cortar, dentro da despesa pública?, perguntou "O Sol" ao antigo governante Nuno Morais Sarmento. Eis parte da resposta:

"Nas funções de soberania, a rede diplomática é ainda hoje a de um país com ambições imperiais ou de potência regional. Manifestamente não é esse o tempo que vivemos".

Tomei boa nota.

Médicos

"Portugal está a caminho de ter médicos a mais", afirma, corporativamente alarmado, o senhor bastonário da Ordem dos Médicos.

Ótimo!, devem dizer os portugueses. Com médicos a mais, pelas leis do mercado, espera-se o surgimento de mais profissionais da medicina espalhados pelos locais remotos do país, para atendimento das populações deles mais carenciadas, tabelas salariais mais razoáveis para as contratações de acesso ao setor público, e, claro!, a baixa drástica do preço das consultas no privado.

Se nada disso acontecer, porque será? Ou também foi já revogada a lei da oferta e da procura?

domingo, dezembro 16, 2012

Uma América

É uma ingenuidade pensar que uma tragédia como a que agora ocorreu nos Estados Unidos pode desencadear uma onda eficaz para a limitação do acesso às armas de fogo naquele país. E que, se acaso fosse possível (e não é), isso resolveria alguma coisa de essencial.

Os europeus têm de entender, de uma vez por todas, que a América não é uma espécie de Europa apenas um pouco "diferente". Os Estados Unidos são um país com uma matriz fundacional própria, o que lhes induz uma cultura mental e comportamental de uma outra natureza, com uma leitura da liberdade individual muito diversa da que prevalece deste lado do Atlântico.

A América é um mundo à parte, ou melhor, são muitos mundos à parte, alguns que rejeitamos profundamente, outros que muito nos seduzem. A América que persiste na pena de morte é a mesma América que elegeu um presidente negro, num país onde, até há escassas décadas, a segregação racial era lei. E, por muito que a América nos faça partilhar os custos de alguns dos erros estratégicos que pratica pelo mundo, essa é a mesma América que, nas praias da Normandia, morreu pela liberdade da Europa - a qual, claro, era também do seu interesse.  

Apesar de tudo, quando nós, europeus, olhamos em volta, somos obrigados a convir que a América continua a ser o melhor aliado que temos para a defesa de alguns - mas não de todos - dos valores que assumimos por essenciais. Embora isso não obste, claro, a que cada um de nós, no velho continente, acabe por ter o seu diferente "amigo americano".

Obélix, le belge

A gastronomia belga vai ter de dedicar-se mais ao javali para alimentar o novo patriotismo de Gérard Dépardieu.

Com a continuação desta desigualdade nos sistemas fiscais, a Europa não vai longe.

O "momento zero"

Há dias, jantávamos com um amigo do Porto, que a Paris aporta com alguma regularidade, até porque foi por aqui que estudou e ainda tem poiso. O local era, tal como o filme, "um americano em Paris", um restaurante cujo nome não vem para o caso, bastante movimentado, ruidoso e animado, ali para os lados do Beaubourg (a foto é de lá). 

A refeição já ia avançada quando decidimos mudar de vinho, cansados da opção por um tinto do "novo mundo" que nos tinham impingido. Olhámos em volta, tentando "to catch the eye" de um dos fâmulos que, minutos antes, giravam pela sala. Qual quê! Ninguém aparecia!

Foi então que esse meu amigo, se saiu com a exclamação: "Estamos no 'momento zero'!". Olhámos para ele, perplexos, desconhecedores do significado do comentário. Esclareceu-nos: "Desde há muitos anos que me convenci que, em todos os restaurantes, há, a certa altura, um 'momento zero'. Trata-se de um vazio momentâneo, que chega a durar minutos, durante o qual os empregados se somem, talvez para fumar um cigarro ou para outras pausas mais básicas, em que o patrão se recolhe por instantes ao escritório, em que o pessoal do balcão, por qualquer razão misteriosa, se eclipsa. Não há ninguém na sala! Ou, se acaso resta alguém, estão recolhidos em espaços inacessíveis, sempre de costas voltadas ou, mesmo se de frente, assumem um olhar vítrio e distante, neutralizados por um cansaço que os torna inoperacionais. É um 'momento' que normalmente acontece quando a refeição já vai adiantada, sem um novo turno de clientes no horizonte, em que se caminha para as derradeiras sobremesas. Ah! Então na altura dos cafés, é uma tragédia, é quando geralmente acontecem os grandes 'momentos zero'!".

O tempo que esse amigo demorou a explicar-nos a teoria do "momento zero", que já testou pelos mundos que visitou - o "momento zero" é transversal a todas as civilizações gastronómicas, note-se -  e que afirmou com a sabedoria de quem vive em frente ao palácio de Cristal, acabou por ser suficiente para que um empregado surgisse, finalmente, ao fundo e, face ao agitar sedento dos nossos braços, nos trouxesse um "pichet" de aceitável "rosso" italiano, para substituir o australiano quer eu caíra na asneira de escolher no início. O "momento zero" acabara.

Fiquei a pensar no assunto. E lembrei-me de uma história de um "momento zero" que me aconteceu um dia: estávamos num restaurante, durante largos minutos ninguém aparecia para dar sequência ao serviço e, em desespero de causa, tive então a ideia de ligar pelo telemóvel ... para o próprio restaurante. Atendeu-me uma voz, a quem eu perguntei: "Podia, por favor, mandar alguém atender a mesa junto à janela?". Vieram que nem setas...

sábado, dezembro 15, 2012

Um tema polémico

O debate sobre o casamento e a adoção homossexual está a agitar a França*. Para nós, portugueses, é, de certo modo, um "déjà vu". Em Portugal, a questão foi ultrapassada, embora se saiba que há importantes setores da nossa sociedade que nunca se reconciliaram com as soluções encontradas. Em ambos os países, o fator religioso tem um natural papel decisivo na formatação das atitudes. Mas cada vez mais me convenço que não é o fator mais condicionante.

Ontem, uma pessoa francesa amiga, com quem falava sobre o assunto, dizia-me: "Eu posso aceitar o princípio do casamento homossexual, embora não entenda bem a sua necessidade, dado que existe já a "união de facto" a proteger legalmente essa vida em comum. Mas não posso aceitar a possibilidade de adoção de crianças por homossexuais". Tenho visto esta atitude assumida por imensa gente, tanto em França como em Portugal.

A rejeição da adoção de crianças por homossexuais masculinos (o problema coloca-se menos na homossexualidade feminina, se pensarem bem) parece-me ter subjacente uma questão de que ninguém fala mas que, estou cada vez mais convicto, constitui a grande motivação por detrás da atitude: os riscos da pedofilia. Porquê? Porque, lá no fundo, mesmo muitos dos que acabam por "compreender" a homossexualidade não deixam de a associar a uma certa "anormalidade", pelo olham para os homossexuais como pessoas pouco "fiáveis", as quais, tendo incorrido nessa "perversão", podem, com facilidade, ser tentadas a outras. Essas pessoas não consideram que os riscos de pedofilia sejam equivalentes no caso de um casal heterossexual, precisamente porque consideram "normais" as pessoas nele envolvidas.  

À luz do debate francês, tenho pensado alguma coisa sobre este tema, o qual, no passado, nunca me interessou muito. E, mesmo que isso possa chocar alguns espíritos, cheguei à conclusão de que a rejeição da adoção de crianças por homossexuais não deixa de representar, de certo modo, uma forma subliminar de homofobia. Mas reconheço que este será, por muitos anos, um debate complexo.

*na imagem, a capa do "Libération" de hoje, que me chegou já depois de ter escrito este post

quinta-feira, dezembro 13, 2012

Património

Desde fevereiro deste ano, tem-me cabido dirigir a missão portuguesa junto da Unesco, em acumulação com a embaixada portuguesa em Paris. Só o consegui fazer graças ao esforço denodado da pequeníssima mas bem mobilizada equipa que permanece na nossa delegação, a qual se desdobra para poder acorrer à imensa diversidade de atividades que têm lugar no seio da organização.

Mesmo com esses limitados meios existentes, julgo que temos conseguido "dar conta do recado" e, muito em especial, que temos estado bem atentos a todas as questões que se prendem com a defesa dos interesses portugueses. Sendo a UNESCO uma organização em que a África é a principal prioridade e onde a promoção internacional da língua portuguesa encontra um espaço privilegiado de afirmação, a diplomacia portuguesa não pode, naturalmente, "deixar cair" a UNESCO.

Por esse motivo, porque a nossa visibilidade na organização é essencial para a nossa política externa, as autoridades portuguesas aceitaram a proposta que formulei no sentido de apresentarmos a nossa candidatura à mais prestigiosa instância da UNESCO, o "Comité do Património Mundial" - o grupo de 21 países que decide da classificação dos bens aos quais a UNESCO atribui um estatuto mundialmente reconhecido, acompanhando posteriormente a respetiva preservação e o cumprimento das regras para tal estabelecidas. Desde há vários anos, Portugal tem diversos bens que já mereceram o estatuto de "património mundial" e integram a respetiva lista. Nesse âmbito, aliás, o nosso país dispõe, de há muito, de uma experiência da maior valia, que é mundialmente reconhecida. Colocá-la ao serviço da UNESCO será, assim, um importante fator de prestígio para o nosso país. A decisão sobre a nossa candidatura, um "combate" complicado onde teremos de defrontar adversários de peso, será tomada pelos Estados membros da UNESCO na segunda metade de 2013. 

Já não estarei em Paris para acompanhar o essencial desse esforço promocional, mas ele ficará em excelentes mãos: as do meu sucessor, em França e na UNESCO, o embaixador José Filipe Moraes Cabral, que foi um dos principais - senão mesmo o principal - responsáveis pela eleição de Portugal para o Conselho de Segurança da ONU, onde depois, durante dois anos, representou Portugal. Lá de Lisboa, como dizem os brasileiros, estarei "a torcer" para que essa nossa nova candidatura possa ter sucesso.

OSCE - Dez anos depois

Foi exatamente há dez anos. Portugal teve durante 2002, a presidência da OSCE - Organização para a Segurança e Cooperação na Europa.

A OSCE é um produto da "détente" entre o Leste e o Oeste, que emergiu nos anos 70. Coube-lhe a importante missão de gerir um processo de redução de tensões criadas durante a "guerra fria", dando corpo organizativo a um processo de diálogo Leste-Oeste iniciado em 1975. A organização foi tão longe quanto era possível na compatibilização de ambições políticas manifestamente contraditórias, de que os Estados Unidos e a Rússia eram os polos extremos, com alguns escassos Estados da União Europeia a procurarem mostrar-se relevantes num terreno geopolítico que, afinal, acabava por ser essencialmente o deles.

Portugal, que organizara em 1996, em Lisboa, uma das mais bem sucedidas cimeiras da história da OSCE, tinha conquistado o direito a exercer a presidência da organização, durante todo o ano de 2002. Era um tempo que acabou por se revelar decisivo, porquanto o 11 de setembro ocorrera no ano imediatamente anterior e a temática do combate terrorismo estava na agenda internacional obrigatória.

O governo português de então, recém-nomeado depois de um sufrágio ocorrido no início do ano, tomou a decisão de mudar a titularidade da equipa diplomática que, em Viena, conduzia a presidência portuguesa da OSCE. Com esse pretexto, afastou-me da chefia da missão junto das Nações Unidas em Nova Iorque, onde eu estava colocado há cerca de um ano, e determinou que eu fosse dirigir o período final da nossa presidência da OSCE, em Viena. Recordo-me de uma conferência que fiz, no dia em que foi conhecida essa decisão, num seminário internacional em Cascais, à qual dei o título de: "Terrorismo - da ONU para a OSCE". Alguns, numa estranha leitura, interpretaram o título dessa minha prestação muito para além daquilo que ele, naturalmente, pretendia significar: a deslocação do tratamento daquela temática da ONU para uma organização de natureza regional como era a OSCE. Há gente muito desconfiada...

A finalização de qualquer presidência da OSCE tem sempre como objetivo procurar assegurar compromissos sobre um grupo importante e muito diversificado de documentos, que possam consagrar linhas de orientação política futura para a organização. Porque todas as decisões deviam, desejavelmente, ser tomadas por unanimidade dos (então) 55 Estados membros, o esforço no sentido de equilibrar as concessões mútuas, sem baixar o nível de densidade dos texto, revelou-se extraordinariamente difícil. Basta lembrar que, no seio da OSCE, havia, como hoje ainda há, países que mantêm entre si tensões político-militares muito agudas. O trabalho de uma presidência é, assim, conseguir ganhar a confiança de todas as partes, mostrar-se um "honest broker" e ter a capacidade de avançar propostas que acomodem os interesses de todos. Uma tarefa nada fácil, diga-se.

A reunião final da presidência portuguesa teve lugar no Porto, no edifício da Alfândega, em dezembro de 2002. Por aí me competiu, por muitas e longas horas, presidir ao Conselho permanente da organização, onde fui tentando concluir uma imensidão de textos, o que incluía frequentes suspensões de sessão para "confessionários", isto é, encontros individualizados com partes em conflito ou divergência, conversas feitas sob compromisso de não poderem ser reveladas às outras partes...

(Porque a vida internacional também tem de comportar aspetos lúdicos, eu havia decidido "apresentar" o Porto às cerca de 700 pessoas que a reunião congregava. Para tal, escrevi e a OSCE publicou, ainda em Viena, um livrinho onde dava algumas dicas para visitas à cidade e, essencialmente, apresentava uma lista comentada por mim de 27 restaurantes do Porto e arredores, misturando diversos tipos de oferta gastronómica. Porque nas organizações internacionais alguns documentos de reflexão são designados "food for thought", lembrei-me de inverter os termos e dar ao guia o título de "Thoughts for food"... Foi um êxito! Ainda recordo a perplexidade do motorista que me acompanhava: "Ontem, um delegado ucraniano, pediu a um colega meu para o levar ao "Veleiros", em Perafita. Como é que é ele terá sabido da existência do restaurante?")

A uma década de distância, recordo um episódio que julgo muito significativo. No âmbito de um determinado documento em discussão, havia uma expressão, designada como um dos fatores negativos que a OSCE deveria condenar, por ser potenciadora de tensões e quiçá promotora de terrorismo. Era uma proposta que, desde o início, um país como o Azerbaijão considerava indispensável.

(Para um leigo nas coisas internacionais, pode parecer que este jogo com palavras é apenas um preciosismo formal, irrelevante e sem consequências. Não é assim: quando, num documento internacional, algo fica acordado por unanimidade, esse conceito e o seu enquadramento normativo convertem-se em doutrina obrigatória, sendo represtinado noutras decisões futuras, passando a referencial orientador da organização, a menos que um outro consenso alternativo, a obter também por unanimidade, o venha entretanto a substituir).

Sem surpresas, a delegação da Arménia opunha-se, desde o início, à inclusão da fórmula. Sendo a Arménia o grande defensor da secessão da região do Nagorno-Karabash, ocupada por populações arménias depois de um conflito sangrento, um território que continua a ser reivindicado pelo Azerbaijão como seu, temia que a inclusão no texto desse conceito, que não importa aqui desenvolver, pudesse vir a ser utilizado para desequilibrar o futuro tratamento deste "frozen conflict" na ordem internacional.

Quer a Arménia quer o Azerbaijão tinham os seus apoiantes entre os restantes Estados da OSCE, embora eles fossem já escassos, tanto mais que já existe um evidente cansaço na comunidade internacional sobre este assunto. Para a nossa presidência, o importante era conseguir "fechar" o documento, com ou sem a inclusão do tal conceito, que considerávamos pouco significativo, por várias razões.

A estratégia delineada foi começar por tentar perceber que outros interesses particulares, em matérias abordadas nas restantes conclusões, tinham os principais Estados que apoiavam a Arménia e o Azerbaijão. Identificados estes, procurámos acomodá-los, desde que obtida, por um "gentlemen's agreement", a contrapartida de que deixariam de dar apoio, em intervenções em sessão, às posições arménia e azeri.

Garantido assim o conveniente isolamento dos dois países, passou-se à segunda fase: convencer estes individualmente. Como? Obrigando os arménios a aceitar a inclusão da expressão mas, noutra parte do texto, inserindo uma outra formulação mais leve, ligeiramente "compensatória" e favorável aos seus interesses. Aos azeris foi dito que poderiam obter, na declaração final, a inclusão da expressão, mas que, em contrapartida, deveriam acordar com a tal frase "compensatória", a qual, contudo, não lhes agradava, por poder agradar aos arménios...

O meu colega azeri, Vaqif Sadikhov, cometeu o erro de, desde o início, assumir que a Arménia nunca aceitaria que o tal conceito integrasse o texto. Para essa convicção, diga-se, não fui de todo estranho, em várias conversas que com ele tive. Por isso, embora se mostrasse relutante a aceitar a frase "compensatória", nunca fechou, em absoluto, a porta a um compromisso, embora manifestamente convicto de que ele nunca se faria, por relutância do adversário.

Pela Arménia, Jivan Tabibian, o embaixador que era representante permanente do seu país junto da OSCE, dizia-me que tinha estritas ordens de Yerevan para recusar a inclusão da expressão, mas, mas últimas horas de negociação, notei que se sentia fragilizado pelo estranho afastamento público de um seu tradicional aliado, nos momentos em que o tema era discutido. Mal ele sabia que havíamos "comprado" o silêncio desse aliado noutro dossiê e que a Arménia estava agora sozinha em jogo. Por isso, fui-o vendo cada vez mais sensível à aceitação das diferentes formulações compensatórias que lhe fui apresentando. Mas foi só cerca da meia noite que, já com o respetivo ministro dos Negócios Estrangeiros ao nosso lado, acordámos numa fórmula final que iriam submeter à sua capital - com necessidade de ser validada pelo próprio presidente da República! E, às seis da manhã (a diferença horária ajudava), Tabibian ligou para o meu quarto, no Pestana da ribeira portuense, a confirmar-me a aceitação do nosso compromisso.

O dia começava bem. Restava agora convencer o Azerbaijão. O essencial do que pretendiam estava obtido, pelo que o importante era que não objetassem à tal fórmula "compensatória". Porque era decisivo garantir uma forte pressão sobre eles, pedi a Elisabeth Jones, "assistant secretary of State for European and Asian affairs", que chefiava a delegação dos Estados Unidos, para me acompanhar na "démarche". E assim aconteceu. Mas iríamos ter uma surpresa.

Sentados em frente a Vaqif Sadikhov, expliquei que tínhamos obtido da Arménia a concessão que queriam e que esperávamos - expliquei que falava também em nome da União Europeia, com os EUA 100% de acordo - que o Azerbaijão acedesse então a aceitar a fórmula "compensatória". Sadikhov olhou-me, perplexo: "Mas a Arménia aceita mesmo a inclusão da frase?" Confirmei que sim. A resposta dele desarmou-me: "Bom, então se eles aceitam, o compromisso não nos interessa. Fiquemos então com o texto original, sem nenhuma fórmula". Tínhamos andado mais de 48 horas a negociar para nada...   

Há semanas, no hall de um hotel em Baku, no Azerbaijão, caí nos braços de Vaqif Sadikhov, agora embaixador do seu país em Roma. Apesar de, nesses dias do Porto, termos mantido grandes discussões, havíamos ficado amigos. E lembrámos o seu antagonista Jivan Tabibian, um homem encantador, infelizmente desaparecido, já há uns anos. Na vida internacional, é importante, sempre que possível, garantir um espaço autónomo para as relações pessoais, ao lado das tarefas oficiais que nos incumbem, por mais desagradáveis que estas possam ser.

Uma nota final sobre essa reunião do Porto, em dezembro de 2002. Foi a última, na história da OSCE, onde foi possível garantir conclusões aprovadas pela unanimidade dos Estados membros da organização. A partir daí, nunca mais nunhuma presidência anual da OSCE conseguiu garantir conclusões consensuais, o que, naturalmente, muito enfraquece a capacidade de afirmação da organização. Por esse exercício de 2002, cujo inegável êxito ficou a dever-se a uma dedicadíssima equipa que tive o gosto de chefiar em Viena, Portugal ganhou um lugar na memória da OSCE, como frequentemente tenho visto ressaltado por muitos interlocutores. Quem eventualmente estiver interessado em saber um pouco mais sobre isto pode ler aqui.

quarta-feira, dezembro 12, 2012

Investimentos

Nos tempos que correm, as possibilidades de captação de novos investimentos estrangeiros para Portugal são, naturalmente, mais reduzidas. Com efeito, a crise global obriga a uma prudência bastante grande em matéria de colocação de capitais e algumas incertezas existentes sobre a situação económica portuguesa também não ajudam. Por essa razão, importa fazer tudo quanto esteja ao nosso alcance para poder manter os investimentos já existentes e, muito em particular, tentar dar oportunidades de expansão e melhoria à sua atividade.

Tenho-me dedicado, em vários contextos, a falar com muitos investidores franceses em Portugal, procurando colocar-me à sua disposição para tentar ajudar a ultrapassar problemas com que possam ser confrontados na sua atividade no nosso país. Antes de partir para Paris, há quatro anos, falei com representantes em Portugal dos grandes investidores franceses e, ao longo deste tempo, tenho procurado, em modelos diferenciados, ser deles e de outros um interlocutor útil junto da nossa administração.

Hoje mesmo, organizei na embaixada um pequeno-almoço de trabalho para tentar identificar entraves com que se defrontam operações francesas no mercado português. Deste como de doutros exercícios similares, alguns com visitas a sedes de empresas francesas, tenho colhido úteis lições sobre os pontos em que, segundo esses interlocutores, Portugal pode e deve evoluir por forma a tornar-se um espaço mais atrativo para os investimentos franceses.

Neste esforço de contacto com os atores empresariais, tive algumas surpresas. Alguns dos aspetos que, entre nós, são regularmente badalados pela opinião publicada como sendo os maiores constrangimentos à ação das empresas estrangeiras em Portugal acabam por não ser identificadas por estas como estando na sua agenda prioritária. E, muito curiosamente, outras questões pouco mencionadas nesse discurso público acabam por constituir-se como obstáculos mais relevantes para o dia-a-dia de muitas empresas. Às vezes, são mesmo pequenas coisas que, com atenção, boa-vontade e determinação, podem ser resolvidas com menor dificuldade, mas com vantagens para quem arrisca os seus capitais entre nós. 

Querem exemplos? Lamento mas não dou, porque não quero contribuir para reforçar a agenda com que certa comunicação social se compraz a pintar o "Portugal negativo" com que alimenta as suas colunas.  

terça-feira, dezembro 11, 2012

Clubes parisienses

Contrariamente a Londres, onde a cultura dos clubes subsiste de há muito e se reproduziu até ao exagero, a vida parisiense tem escassos, embora belíssimos, locais desse género, usualmente muito frequentados por homens, mas com as senhoras a terem em alguns deles uma presença crescente.

Antes de chegar a Paris, foi-me recomendado vivamente, por vários amigos, que me inscrevesse no "Cercle de l'Union Interallié", um comodíssimo clube na rue du Faubourg St. Honoré, junto ao palácio do Eliseu, com um jardim magnífico, bela piscina e restaurantes de grande qualidade, onde é muito prático convidar para almoçar ou para jantar no verão. É um clube muito popular entre os embaixadores, cujo acesso ao vizinho "Nouveau Cercle de l'Union" já é mais complexo, mas que acabei por visitar nas reuniões do júri do "Prix des Ambassadeurs".

Poucos meses após a minha chegada, recebi um convite de pessoa amiga para me tornar sócio do "Travellers", clube irmão do seu homónimo britânico, de que já aqui falei. O "Travellers" parisiense fica no nº 25 dos Champs Elysées, no famoso "hôtel Paiva", um prédio com ligações a Portugal, também por muitos crerem que foi nele que Eça se inspirou para "desenhar" o mítico "202", que nos descreveu em "A cidade e as serras". Com os tempos, fui recebendo convites para me tornar associado do "Jockey Club", do "Automobile Club" e do "Polo de Paris". Confesso que nunca ninguém me sondou para o exclusivo "Le Siècle". Os embaixadores estrangeiros, de passagem por Paris, são "peças" sociais que têm alguma facilidade em terem acesso temporário a esses locais exclusivos. Alguns, mais deslumbrados, confundem isto com uma espécie de eterno "upgrading social", não se dando conta do caráter efémero desta sua "valorização", coitados!

Mas, enfim, a verdade é que esses clubes existem, são locais muito agradáveis e passar por eles, uma vez por outra, acaba por constituir uma experiência interessante, até sob o ponto de vista da sociologia de uma certa sociedade parisiense. Embora, diga-se, mais para quem quer alimentar relações pessoais, com maior ou menor impacto em negócios. Embora, para os diplomatas, os clubes acabem por se tornar locais confortavelmente "neutros", onde, num almoço ou num fim-de-tarde, se podem fazer "démarches" discretas ou sondagens com maior confidência, que seria menos prudente executar nos endereços das missões diplomáticas.

Falo disto com o à-vontade de quem tomou a decisão, desde a chegada a Paris, de, não vir a ser sócio de nenhum clube. Não por qualquer preconceito - vou sempre a esses locais, como convidado, com imenso gosto -, mas, muito simplesmente, porque nunca tive vida que me permitisse alimentar uma relação custo-benefício minimamente aceitável que justificasse o "investimento" nas jóias e cotas respetivas. Aliás, interrogo-me sempre quando ouço colegas gabarem-me as maravilhas do uso regular da piscina do "Cercle" ou os fins-de-tarde com uma bebida a acompanhar uma conversa no "Travellers" ou no "Automobile", na varanda sobre a place de la Concorde. No que me toca, nunca tive tempo para isso, aqui em Paris: em quase 90% dos meus dias (e não exagero!) saio do trabalho ao bater das "badaladas" das oito e meia da tarde! Mas deve ser defeito meu!

Porque falo disto hoje? Porque, a convite de um querido amigo e sem nenhuma agenda, fui ontem almoçar (e bem!) ao "Jockey Club". Em Lisboa, prometo retribuir-lhe com a gastronomia simples, mas bem portuguesa, do nosso Círculo Eça de Queiroz, o único clube do género de que, nos dias de hoje, me permito ser sócio.

segunda-feira, dezembro 10, 2012

Sporting

Como outros amigos sportinguistas, evito, nos últimos tempos, ver jogos da minha equipa, para tentar sofrer menos. Ontem, porém, chegado a Paris, dispus-me a olhar o "derby" entre o Sporting e uma esforçada agremiação desportiva que se aloja ali perto do Colombo. 

Que diabo de ideia fui eu ter! Raramente tenho visto um Sporting como este! Mas, como me comentou, entretanto, um amigo "lampiónico", essa minha impressão negativa é capaz de ser "exagerada" pelo facto de não ter visto outros jogos em que o Sporting ainda jogou bem pior...

Enfim, este Sporting, clube de Portugal em anos de "troika", vai ficar na nossa "história".

domingo, dezembro 09, 2012

O Esteves

Ontem, em conversa num grupo de amigos, comentava-se a circunstância de, em alguns países com problemas de segurança, ou apenas com governantes menos populares, a imprensa oficiosa se referir sempre no passado às deslocações oficiais, evitando o anúncio antecipado das mesmas. Em alguns desses países, tais visitas são mesmo consideradas uma espécie de "segredo de Estado".

Em silêncio, lembrei-me que, no tempo de Salazar, tantas eram as notícias que relatavam que "o senhor presidente do Conselho esteve ontem em visita a ..." que, no léxico da oposição mais moderada, o ditador era designado pelo "Esteves".

Mas este é o tipo de anedota que não se consegue "traduzir". Por um lado, ainda bem: evita lembrar que, há poucas décadas, nós também vivíamos assim. Às vezes, há quem pareça esquecer isto. 

sábado, dezembro 08, 2012

Trópicos

Na minha infância, havia lá por casa um globo metálico onde, desde muito cedo, me habituei a identificar duas linhas paralelas, cuja razão de existência útil nunca consegui que então alguém me explicasse, embora muito delas se falasse: os trópicos de Câncer e de Capricórnio. Desde cedo, porém, percebi que esses trópicos não tinham o mesmo "charme" do Equador, nem sequer dos círculos polares - ártico e antártico.

Com a vida, aprendi que "Trópico de Câncer" e "Trópico de Capricórnio" eram também títulos de dois livros de Henry Miller. Pelo primeiro, depreendi, aliás, que a vida em Paris podia ser uma coisa bem divertida. Só que Miller não era embaixador...  

Como não sou dado a astrologia e coisas assim (só acredito no que vejo e, ultimamente, quase me recuso a crer nalgumas coisas que vejo), devo dizer nunca mais pensei nesses trópicos. Até ontem. Dentro de um 4x4, ao olhar para o mapa de uma região por onde ando, dei-me conta de que acabava de atravessar o trópico de Câncer. Não foi coisa que particularmente me excitasse, mas referi o facto às pessoas que comigo viajavam e, sem surpresa, deparei-me com uma completa indiferença. Concluí, assim, que isto de trópicos já não é o que era.

Por associação de ideias, recordei-me que, por uma legislação diplomática já antiga, era dada uma pequena majoração, em matéria de tempo de serviço para a aposentação, a quem tivesse prestado serviço em postos situados um determinado número de "graus" a norte e a sul do trópico de Capricórnio (15º, creio eu)*. (Coisa similar acontecia a quem tivesse servido em países em "guerra civil ou guerra internacional"). Será que isto ainda se pratica? Ou será que, nos dias que vivemos, lá para os lados da praça das Cebolas e da Sul-e-Sueste ainda são aceites estas regras favoráveis a quem foi obrigado a labutar por zonas difíceis? Ou será que também tudo isto já foi derrogado pela única lei que não há dúvidas de estar em vigor - a da excecionalidade?

Por que é que me lembrei disto agora? Sei lá! Ia dizer, como o dizia Vinicius de Moraes, "porque hoje é sábado", mas nem sequer isso é verdade: já é domingo! Aproveitem-no!

(*Um comentador avisado corrigiu-me, entretanto. Leia-se o comentário)

sexta-feira, dezembro 07, 2012

O embaixador e o ministro (2)

As personagens são as mesmas do episódio ontem relatado: o ministro para as questões europeias e o seu embaixador junto da União Europeia, ambos de um país cujo nome, por qualquer razão, agora me escapa.

As duas figuras detestavam-se, mas era imperativa a sua convivência, para a defesa dos interesses do respetivo país. E o embaixador, forte das proteções de que dispunha, gozava regularmente com o ministro.

Um dia, durante uma reunião negocial em Bruxelas, o ministro, com o embaixador a seu lado, decidiu citar, numa sua intervenção, a opinião abalizada de uma figura marcante do seu país, muito conhecida internacionalmente, mas desaparecida então já há uns anos. Tratava-se de uma qualquer ideia sobre o futuro ou o sobre passado da Europa, já não recordo bem.

Fê-lo, como era seu timbre, com uma solenidade algo pomposa, pretendendo tirar efeito desse sábio comentário que a tal figura teria, em tempos, produzido, na sua presença.

A personalidade citada era de um campo político oposto ao do ministro, o que dava foros de alguma estranheza à sua invocação. A sala estava silenciosa, eu diria que menos por reverência e mais por curiosidade pela "performance" a que assistia.  Num determinado momento, com um procurado dramatismo, o ministro confidenciou:

- Eu vi-o, falei com ele.

Com isso, o ministro queria significar que, por mais estranho que isso pudesse parecer, atentas as suas diferenças políticas, tinham-se encontrado e, desse momento, resultara a ideia que agora nos transmitia.

Ora isto era "demais" para o embaixador, o qual, de viés, o olhava com visível ironia desde o início da intervenção. E não resistiu. Chegou-se à frente, inclinou-se para o microfone que partilhava com o ministro, o qual gozava um segundo de pausa, explorando o efeito da sua frase, e "esclareceu" sobre o momento da conversa:

- Antes da morte dele, bem entendido! - não fosse alguém suspeitar de qualquer diálogo do governante com os espíritos.

A sala soltou-se em gargalhadas. Todo o efeito pretendido pelo ministro se esvaiu, naquele instante. Já ninguém se lembrava mais o que de tão decisivo teria dito o ilustre falecido. Todos olhávamos para a cara furiosa do ministro, que se entaramelava a tentar recolar o discurso perante um fundo sussurrante de risotas contidas, e para o ar divertido do embaixador, ao seu lado, ciente de que tinha ganho o seu dia...

quinta-feira, dezembro 06, 2012

O embaixador e o ministro (1)

Há muito que havíamos notado que a relação entre aquele embaixador junto da União Europeia e o seu ministro para a Europa estava longe de correr às mil maravilhas. O "body language" de ambos, mais evidente da parte do embaixador, não deixava margem para dúvidas: apenas se suportavam. E mal.

Ao que se sabia, o diplomata estava escudado ao mais elevado nível na sua capital e o seu conhecimento da máquina comunitária havia-o transformado numa figura indispensável para a continuidade da política europeia do país, o que justificaria a sua prolongada longevidade no cargo. Já os ministros, iam e vinham com os ventos eleitorais. Por isso, ele podia continuar a dar-se ao luxo dessa atitude.

Entre outras cenas e apartes, com que o embaixador não poupava regularmente a figura do ministro durante as conversas com os colegas, ficou famosa a história da chegada de um convite para almoço, a ter lugar no topo do Justus Lipsius, sede do Conselho de ministros da UE, que sempre ocorria no decurso de uma determinada negociação, na segunda metade dos anos 90.

Para a delegação desse país, como era de regra, chegaram, pela mão de um contínuo, dois convites: um em nome do ministro (que, nesse dia, tinha faltado à reunião, por virtude de uma deslocação oficial) e outro para o embaixador, que o substituíra na reunião. 

Quando recebeu os convites, o embaixador olhou para o envelope destinado ao seu governante, e disse bem alto, audível por toda a sala, na qual as pessoas já estavam de pé, prestes a avançar para o almoço:

- Para o ministro X?! Mas o ministro morreu!

E, nesse mesmo instante, rasgou o envelope em quatro pedaços, que lançou ao ar.

O contínuo que havia entregue o convite - um castiço italiano, atarracado, de bigode, rabo de cavalo, brinco na orelha e gravata laça, que, ao contrário de nós, não estava informado da razão da ausência do ministro -  reagiu, surpreendido:

- O quê!? Morreu?! O ministro X morreu?!

O embaixador nem o olhou nem lhe respondeu. Saiu da sala, deixando o contínuo, zeloso na sua tarefa de entrega dos envelopes, a propagar a "revelação" por quem lhos recebia, cujos sorrisos, manifestamente incompatíveis com a "gravidade" do que ouvira, deveria estranhar:

- Parece que o ministro X morreu, sabia?

Nunca cheguei a saber se o ministro em causa chegou a ter conhecimento da ousadia do seu embaixador. Mas, conhecendo-o, bem como à sua total ausência de sentido de humor, imagino que não deva ter gostado minimamente da graça, que eu e outros, testemunhas presenciais da mesma, guardamos na memória desde então.

Oscar Niemeyer (1907-2012)

A nossa República ainda não existia quando Oscar Niemeyer nasceu. Saíu ontem de cena, com 104 anos, ativo até muito tarde, atento à arquitetura e às coisas e causas da vida, em especial da política.

aqui dei conta de uma conversa que com ele mantive, no Rio, no andar em que todos os dias trabalhava, na avenida Atlântica. Fui vê-lo, acompanhado do cônsul-geral António Almeida Lima, a propósito da sua entrada para a nossa Academia das Ciências, para sócio da qual o fui convidar, a pedido de Adriano Moreira.

Na ocasião, perguntei-lhe como via a evolução de Brasília, que então se aproximava de meio século de existência. A cidade crescera para além de todas as expetativas, embora houvesse a consciência de que isso se devia muito ao "droit de regard" que ele mantinha sobre os principais projetos, sem o que a pressão imobiliária iria bem mais longe.

Niemeyer era um homem que falava bastante e não tinha medo das palavras. Explicou-me que a capital federal não deveria nunca ter acomodado tanta gente e que, por exemplo, os edifícios do Congresso eram destinados a quase um décimo dos atuais ocupantes. Surpreendeu-me ao referir que "a ideia era que Brasília tivesse muito poucos militares e hoje está cheia deles..." 

Tendo-lhe eu comentado que, apesar de tudo, Brasília seria sempre uma magnífica obra, uma terra onde, aliás, eu gostava muito de viver, Niemeyer afastou o olhar para aquela espécie de "bow window" facetada, que se projetava sobre a insuperável baía e, de repente, disse-me, de forma enfática: "Sim, embaixador, mas o Rio é a cidade..." Era o carioca de gema que nele vivia que não podia resistir à "cidade maravilhosa".

Os brasilienses estão agora de luto. E os poucos estrangeiros (não chegam a uma dezena) que, como eu, têm a honra de ser cidadãos honorários da capital federal também lamentam muito o desaparecimento da figura de génio que, com Lúcio Costa, deu corpo ao saudável "sonho louco" de Juscelino Kubitshek. 

Logo que regressar a Paris, em homenagem à memória de Niemeyer, cuidarei em passar uma vez mais em frente ao edifício que ele projetou na place Colonel Fabien, para a sede do Partido Comunista Francês, num gesto de dedicação à ideologia a que se manteve sempre fiel. Era esse comunismo, na "genuína" versão soviética, que lhe alimentou a sua aversão à sinistra ditadura militar e lhe inspirava artigos que, com alguma regularidade, a grande imprensa brasileira acolhia, não obstante a inapelável "idade" dessas suas ideias.

Em Portugal, é vulgar atribuir-se a Niemeyer o traço de um hotel no Funchal. Recordo-me que, quando lhe falei disso, foi evasivo: "É um trabalho feito por gente que trabalhava comigo", como que a afastar-se deliberadamente da paternidade dessa obra.

Mas quem é que entre nós sabe que, também em Portugal, Oscar Niemeyer projetou uma construção, que nunca chegou a ser completada, na quinta dos Alfinetes, nos arredores de Lisboa, que chegou a estar destinada à CPLP? Dizem-me que é hoje uma garagem. Será verdade?

terça-feira, dezembro 04, 2012

A. Campos Matos

Já uma vez por aqui falei de A. Campos Matos, uma das pessoas que, na minha opinião, ao longo das últimas décadas mais tem contribuído, em língua portuguesa, para a divulgação e aprofundamento de vários aspetos da vida e da obra de Eça de Queirós. Tenho pelo seu trabalho uma imensa admiração e, devo dizê-lo, tenho como intenção, após o meu regresso definitivo a Portugal, conhecê-lo pessoalmente, a fim de lha testemunhar.

Um amigo enviou-me agora o seu "Eça de Queiroz - silêncios, sombras e ocultações", uma interessante recolha de ensaios que teve uma primeira edição (embora mais limitada) no Brasil, terra onde a memória de Eça é tratada com desvelo e muita atenção.

Com a vida, aprendi que a devoção comum às grandes figuras literárias está longe de ser um fator de unidade dos devotos, como ingenuamente se poderia supor. Há dias, a propósito da colocação de uma placa na primeira morada de Eça de Queiroz em Paris, fui objeto de remoques de um descendente, que entendia que eu teria o dever de o convocar para o ato. Pelos vistos, A. Campos Matos também não escapa a estas polémicas, desta vez noutra sede, como o revela um opúsculo que publicou, chamado "Um caso insensato da cultura nacional - querela inútil mas inevitável".

O que Eça se haveria de divertir se soubesse as "guerra" de Alecrim e Manjerona que a sua memória ainda suscita.

segunda-feira, dezembro 03, 2012

Fortes



- Os portugueses chegaram aqui e construíram este forte, depois de terem circundado toda a África. Não é fantástico!

A expressão, de um responsável governamental do Oman, frente à fortaleza de Al-Jalali, o antigo forte de S. João, em Mascate, foi dita perante umas dezenas de pessoas, que logo me olharam, como se acaso os meus antepassados, de lá de Trás-os-Montes ou do Minho, pudessem reivindicar parte dessa glória. E eu, por tabela, como herdeiro natural das viagens que outros fizeram por nós.

- Pois na minha terra, no Benin, também construíram uma bela fortaleza, em Ouidah, disse uma voz, atrás de mim. Sorri silencioso, a lembrar-me do gesto estúpido do funcionário português que, em 1961, na iminência da sua expulsão de S. João Batista de Ajudá, deitou fogo a tudo, inclusivamente ao carro oficial, cuja carcaça hoje faz parte do museu no local.

A tanzaniana logo comentou: "Também construíram bastantes meu país", para logo o iraniano lançar: "há belos vestígios de Portugal na nossa costa", lembrando Ormuz.

Olhei em volta. O meu amigo do Qatar, que me fala sempre de ter nascido junto a um forte português, estava longe, ninguém do Bahrein andava por ali para lembrar o que também ficou por lá, a minha colega queniana não veio na viagem para lembrar Mombaça. Também não havia nenhum marroquino para citar a imponente Mazagão ou Safi, nem ninguém da Malásia para recordar Malaca, ou do Gana para recordar São Jorge da Mina. E, muito menos, algum indiano para citar o belo forte de Diu e o muito que aí ficou. Dos "Palop" não estava ninguém no grupo para inventariar a arquitetura militar portuguesa remanescente (do Cachéu a Luanda, da ilha de Moçambique ao forte de São Sebastião, em S. Tomé).

Naquele instante, tive pena de não ter, à minha volta, mais vozes internacionais para ajudar ao coro de glória histórica. Até que uma brasileira, casada com um europeu, adiantou: "E então no Brasil!? Conhecem as fortalezas portuguesas no Brasil? São fabulosas!". Mas nem ela se podia gabar de, como eu, de ter visitado a grande maioria delas - a começar por essa maravilha de dificílimo acesso que é o forte Principe da Beira, bem junto à fronteira com a Bolívia.

Isto passou-se ontem, numa viagem da UNESCO ao Golfo, a que me associei, no gozo das minhas últimas férias como embaixador.

O tempo das fortalezas militares já lá vai. Mas Portugal deixou, por aí, um prestigiante mar desses monumentos, marcos de um tempo histórico em que dava algumas cartas. E alguns tiros, porque o poder também se faz disso. E hoje, graças a essa herança, se há ainda coisa em que, pelo mundo, somos fortes é em fortes...

Isto é verdade?