segunda-feira, dezembro 14, 2020

Os senhores do tempo


Aquele meu amigo, numa graça de ínvia solidariedade, reagia a um desabafo irritado que, horas antes, eu tinha deixado, nas redes sociais: “Vê lá se tens um bom alibi para a noite do desaparecimento da Maddie! E onde é que tu estavas quando o avião caiu em Camarate? Olha que ainda se lembram do teu nome!”.

Eu não estava na melhor das disposições, não sabendo exatamente o que iria aparecer, no dia seguinte, na notícia sobre a qual um jornalista me contactara, horas antes. Ri-me, mas sem vontade de rir.

Pela segunda vez, em escassos meses, o meu nome ia surgir em parangonas de imprensa, associado a supostas suspeitas - sublinho, supostas, porque ninguém me confirmou se existiam - por parte da nossa Justiça.

No primeiro dos casos, era uma requentada efabulação relativa à barragem Foz-Tua, ecoada por boateiros da calúnia, que fazem disso o seu “fond de commerce”, sem, no entanto, conseguirem alguma vez adiantar a menor prova de nada. Não obstante, televisões, jornais e redes sociais logo se encheram de referências à tal “intenção” da Justiça de me ouvir sobre o assunto.

Como julgo que, lá na Justiça, sabem o meu endereço, fiquei a aguardar. Sentado. Até hoje. Continuo à espera da oportunidade de poder explicar, aliás com assumida vaidade, que, em grande parte graças à intervenção que protagonizei, como embaixador junto da Unesco, o contribuinte português pode ter sido poupado a pagar centenas de milhões (leram bem!) de euros de indemnização a várias empresas. Querem saber como? Chamem-me, que eu conto!

Agora, na insídia, o cenário mudou. Agora é o Brasil, a Odebrecht, o rescaldo do Lavajato, serão luvas pagas sabe-se lá como e a quem. Ficou-se a saber – pela imprensa, sempre pela imprensa – que a Justiça portuguesa enviou o meu nome, entre outros, para que a sua congénere brasileira inquirisse se figuro nos ficheiros da Odebrecht – curiosamente, uma empresa com a qual nunca tive o menor contacto, onde não conheço uma única pessoa. Nem uma! A Justiça portuguesa pediu isso quando? Em 2017. Estamos quase em 2021. Não houve resposta? Então a imprensa passa a ser testemunha da curiosidade insatisfeita dos nossos operadores de Justiça.

Nessa altura, o leitor, em especial o leitor de títulos, começa a matutar: “Este tipo aparece mencionado em dois casos! Não deve haver fumo sem fogo!” E, desta forma, sem que ninguém alguma vez me tenha acusado do que quer que fosse, sem que alguém me tenha sequer colocado a mínima questão sobre nada, a minha cara, o meu bom nome, aparece posto em causa.

Os justiceiros que vivem nas sombras, sem cara nem nome, podem semear suspeitas, impunemente, sobre quem muito bem lhes aprouver, quando lhes der na real veneta, durante os anos que quiserem. São os verdadeiros senhores do tempo. Mesmo do tempo dos outros.

domingo, dezembro 13, 2020

Le Carré


Numa conversa, há muitos anos, disse a António Pinto da França que achava que Le Carré tinha um perfil de cara que era a mistura do dele com o de Álvaro Barreto. “Que disparate!”, reagiu ele, com uma gargalhada, na reação típica de toda a gente: nunca o próprio se acha parecido com outra pessoa. 

Agora, já desapareceram os três. Le Carré morreu hoje, aos 89 anos. 

Há meses, escrevi por aqui isto: 

“Um dia, recém-colocado em Londres, adquiri um dos poucos “audio-livros” que tive em toda a minha vida: foi “Tinker, Tailor, Soldier Spy”. Num passeio pelo sul de Inglaterra, ouvi essas “cassettes” (julgo que eram ainda cassettes). Porquê? Porque, durante algum tempo, confesso que tive alguma dificuldade em conseguir ler, no original, as obras de Le Carré. “Ouvir” o livro ajudou-me assim a “entrar” na narrativa do autor, de quem julgo conhecer hoje praticamente toda a obra - e não é pequena. (Já tenho saudades de quando lia muita ficção, coisa que hoje não acontece).

Le Carré é, a meu ver, o mais notável cultor de um estilo de romance de espionagem que assenta, precisamente, naqueles serviços secretos que sempre me interessaram mais: a “intelligence” britânica, que continua a ser, para mim, o mais fascinante desses mundos de “sombras”, a que o fim da Guerra Fria colocou um (apenas relativo) ponto final. O “Tinker, Tailor, Soldier, Spy” é, a meu ver, o romance mais bem construído da chamada “trilogia de Karla”, dentro de uma série bem mais longa, em que surge a extraordinária figura de George Smiley. Voltar a obras já lidas de John Le Carré é algo que tento fazer com regularidade e, como me acontece com outros bons romances, não é que continuo a descobrir por ali coisas que antes me tinham escapado?“

O segredo


Eu tinha acabado de entrar, há poucos meses, para a universidade, num tempo em que a minha família (que não eu, confesso) vivia convencida de que, cinco anos depois, iria dali sair um engenheiro como deve ser.

O meu tio Humberto, engenheiro (como eu ia ser!), deu-me boleia de carro, numa manhã, de Vila Real para o Porto. Ainda antes de me deixar no lar universitário, levou-me a almoçar a casa do seu pai. 

Este era um homem muito simpático e delicado, com uma figura elegante e fala serena. O senhor Pedro de Carvalho era um pedagogo, autor de muitos livros editados pela Porto Editora. Casara, em Cabo Verde, com a dona Guiomar.

O meu tio Humberto era caboverdeano pelo nascimento, sentia-se um portuense dos sete costados e, em Vila Real, onde foi tudo o que alguém poderia ser, da política à vida associativa, acabou por ser um dos melhores cidadãos locais que por ali houve, como bem sabe quem disso se lembra.

Nesse dia, no fim do almoço com os seus pais e comigo, ali ao Moinho de Vento, no Porto, o meu tio perguntou-me: “Alguma vez tomaste café no Progresso?”. O Progresso era ali ao lado, ao virar da esquina. Nunca lá tinha entrado. Eu frequentava mais o Bissau, em Cedofeita, e, um pouco menos, o Piolho, ao pé dos Leões.

À minha resposta negativa, ouvi-o dizer: “Então não conheces o melhor café do mundo!”. Café de saco, claro, como, à época, era regra maioritária nos cafés do Porto, embora o café de máquina, a tal “La Cimbali”, que crismou o portuense “cimbalino”, estivesse já a fazer, nessa segunda metade dos anos 60, a sua entrada triunfal no mundo dos cafés. Constava, então, que o melhor “cimbalino” era servido no Montarroio, na baixa da cidade.

E lá fomos os três (nesse tempo, as senhoras não iam aos cafés) ao Progresso, depois do almoço, beber “o melhor café do mundo”.

A casa hoje desapareceu e a pandemia tirou-lhe mesmo o honrado destino, que lhe estaria fadado, de ser mais um restaurante da cadeia Avillez, depois de um interregno em que por ali se vendia crepes.

Convencido ou não, nesse dia lá devo ter concordado, para contentar o meu tio, que aquele café é que era!

Mas, afinal qual era o segredo do café do Progresso? Ao que se dizia, mas isso nunca foi confirmado, na máquina do café era diariamente colocada uma lasca de bacalhau (um “rabo de bacalhau”, era exatamente o que constava), que dava o tal toque especial à bebida. Alguém, anos depois, explicou uma coisa simples: não era o bacalhau, mas era, afinal, o sal, que comporia o sabor do café.

Por que diabo trago isto aqui? Pela simples razão de que, ao fazer hoje café em casa, numa máquina de balão que há poucas semanas adquiri, com todos os matadores a cujo luxo um reformado em pandemia se pode dar, me lembrei do Progresso e coloquei, com o café em pó, moído a preceito, uns cristais de sal. E o café saiu soberbo!

Como eu gostava, no dia de hoje, de poder discutir com o meu tio se este meu café era, ou não, melhor do que o do Progresso! Mas o andar da vida é, cada vez mais, feito de conversas que já não podemos ter.

Retratos





Há dias, uma pessoa amiga notou: “Não vejo, na tua sala, fotografias com alguns “grandes”, autografadas por eles, como é normal nas casas dos diplomatas. Mas tens, não tens?”

Claro que tenho, com gosto, do “tutti quanti” que contou na minha vida profissional e política, algumas até com dedicatórias bem simpáticas, outras apenas com uma formal assinatura. E dos atos formais de apresentação de credenciais. Porém, abandonada que foi a vida oficial, a memória fotográfica desses tempos está hoje recolhida em áreas menos visiveis da casa ou, na maioria dos casos, anda por gavetas e caixas, lá por Vila Real.

Não rejeito, longe disso!, a importância desses retratos, e dos tempos que eles marcaram, mas, no que me toca, acrescentam hoje muito pouco à minha maneira de estar na vida. Embora perceba, e respeite muito, que outros - a maioria dos meus colegas de profissão, por exemplo - tenham uma perspetiva diferente das coisas. Cada um é como é, não é?

Há muitos anos, em Serajevo, no final de uma reunião do Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu, onde acompanhava António Guterres, este falou por uns minutos, comigo ao lado, com Bill Clinton, a quem me apresentou. Da delegação que vinha com o nosso primeiro-ministro vi uns gestos, simpáticos, da parte de alguém, para eu me pôr em posição para tirar uma fotografia com a “vedeta” americana. Não me mexi. 

Gostava de ter tirado uma fotografia com Clinton? Não sei, talvez, mas nada fiz por isso e, claro, não foi por timidez, que é coisa que nunca senti na vida pública. Ao ver hoje esse tipo de instantâneos perdidos por gavetas ou a encher buracos em estantes remotas entendo melhor aquela minha reação.

sábado, dezembro 12, 2020

“Observare”


Nesta noite de sábado para domingo, à meia noite e quinze, estarei no “Observare”, programa de relações internacionais da TVI 24 com Luís Tomé e Carlos Gaspar, sob a moderação de Filipe Caetano. Falaremos, nomeadamente, da cimeira europeia e da presidência portuguesa da União Europeia, em 2021. No meu caso, abordarei também a situação na Venezuela e uma vitória portuguesa obtida na Organização para a Segurança e Cooperação Europeia (OSCE).

sexta-feira, dezembro 11, 2020

Tenho de reler Franz Kafka

O telefonema de um jornalista, esta tarde, foi correto e profissional. A questão era “simples”: o que é que eu tinha a dizer perante o facto, que havia chegado ao seu conhecimento, de que, num processo que envolve a empresa brasileira Odebrecht, o meu nome terá surgido, ao que parece entre outros, como suspeito, nem percebi precisamente de quê, numas inquirições feitas entre as autoridades judiciais portuguesas e brasileiras. “A Odebrecht?”, reagi. Por curiosidade, a Odebrecht é talvez das grandes empresas brasileiras a única com a qual, ao tempo em que fui embaixador naquele país, nunca tive o menor contacto. Não conheço ninguém da Odebrecht! Nunca, pelas minhas mãos, passou algum assunto que tivesse a ver com essa empresa. E sou acusado exatamente de quê? Alguém da Justiça me chamou, alguma vez, para me perguntar fosse do que fosse? Envolve-se o nome de um cidadão num “processo” e deixa-se que, com uns títulos, se crie a ideia do “não há fumo sem fogo”. Para gozo da rapaziada das caixas de comentários? E, depois, haverá alguém, responsável e disponível, no dia em que este tipo de insinuações cair no ridículo, em que obviamente cairão, para vir apresentar um pedido de desculpas? E irá isso ainda a tempo de desfazer os preconceitos entretanto criados ou o objetivo, afinal, era esse mesmo?: tentar enlamear o nome da pessoa, antes mesmo que ela tivesse possibilidade de fazer um mínimo de contraditório. É que isto tem precedentes. Há tempos, correu por aí, tentando envolver-me, um alarido sobre a barragem de Foz-Tua. Uma questão muito fácil de explicar, mas só se alguém quiser ouvir. Tive então direito a fotografias na imprensa, peças nas televisões, à esperada especulação pelos caluniadores profissionais. Fiquei, naturalmente, à espera de que alguém me chamasse. É que a questão é simples: há uma investigação ou não há? Se há, o meu nome está envolvido ou não? E, se sim, em quê? Ninguém me diz nada? É tudo em segredo? A senhora Procuradora-Geral da República nada tem a dizer, publicamente, sobre esta forma de atuar dos seus serviços? Já vale tudo? Por mim, com a total serenidade de quem nada tem a temer, apenas gostava que quem tem a mínima das dúvidas - qualquer, por menor que seja! - me chamasse a esclarecê-la. Querem o meu endereço? “Não digas nada! Só vais agravar as coisas!” dizem-me as vozes amigas e da prudência. Mas vou agravar o quê? O que é que posso agravar, se não me foi colocada a menor questão, se não sei sequer do que estão a falar? Tenho de reler Franz Kafka. 

Voos

Há três anos, quase dia por dia, publiquei por aqui este post:

“ A propósito de todos os sucessivos azares que têm vindo a surgir, nos últimos meses, no percurso do governo de António Costa - alguns por culpa própria, outros gerados pelos acasos da vida e todos potenciados pelos seus adversários -, lembrei-me de uma (sábia) máxima de Jacques Chirac: “les emmerdes, ça vole toujours en escadrille”...”

Era bom que trocássemos umas ideias


Reduzi o título deste artigo, que deveria ser “Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”. Não que a frase seja original: é o nome de um livro de Mário de Carvalho. Lembrei-me dele, há dias, ao assistir a um “webinar” em que se analisava a política externa americana, na era pós-Trump. E por ter então sentido, com assumida sinceridade, que não me revia em muito daquilo que por ali se dizia e pensava. Mais do que isso: que não estava solidário com os pressupostos na base dos quais a discussão estava a ter lugar. Pelo que achei que era necessário falar abertamente sobre o assunto.

A nuvem negra que foi a administração Trump, que projetou uma postura egoísta e nacionalista dos EUA pelo mundo, quebrando ou criando tensões nas alianças tradicionais e, pior do que isso, reduzindo as margens de previsibilidade e estabilidade que são essenciais à relação entre os Estados, criou uma inédita “frente comum” de bom senso. Isto é, juntou todos aqueles que comungavam a leitura de que a postura do presidente americano ofendia a razoabilidade e era provocatória de interesses que mereciam ser respeitados. Ao longo dos últimos quatro anos, todos nos encontrámos, em grupos de pessoas que, à partida, tinham perspetivas diferentes do mundo, com uma rejeição muito alargada do estilo “bully” do conjuntural líder americano.

Isso acabou. Trump vai-se embora e cada um de nós regressará ao seu ponto de partida. É natural, é normal, diria mesmo que é saudável. É bom separar as águas. E, ao fazê-lo, é importante que fique claro que o fim de uma administração americana hostil e a provável chegada de outra diferente não deve fazer esquecer à Europa a sua própria autonomia estratégica.

Estivemos sempre com a América no que era essencial. Ela foi um parceiro para a nossa estabilidade e segurança. E deve continuar a sê-lo.

Mas a Guerra Fria acabou e a Europa é hoje uma coisa bem diferente. A União Europeia, se quiser ser digna desse nome, deve saber assumir uma estratégia de interesses própria, autónoma, a qual, muitas vezes, coincidirá com a dos EUA. Mas não necessariamente. A Europa, aliás, é um concorrente objetivo dos Estados Unidos em vários planos – e deve assumi-lo sem complexos. É-o no plano económico, mas também em áreas geopolíticas de concorrência de influências, como a África ou a América Latina. E, partilhando embora as mesmas preocupações de estabilidade, como é o caso das ambições nucleares do Irão, nada obriga a que olhemos as coisas da mesma forma no Médio Oriente – desde logo, na relação com Israel e na complacência face ao medievalismo prevalecente no Golfo Arábico. Ou no caso do desafio que a China representa.

Estamos e devemos continuar, quase todos os europeus, aliados na NATO. Mas a NATO, neste pós Guerra Fria, não tem de continuar a ser um heterónimo dos Estados Unidos e, em especial, não pode aparecer como uma espécie de cobertura, sem baias geográficas, para a leitura estratégica que Washington quiser fazer dos seus interesses pelo mundo, que se habituou a identificar como sendo também os dos seus aliados.

Não esqueço, quero mesmo lembrar, os riscos que uma aventura radical, titulada por uma administração democrática dos EUA, aliada a alguma irresponsabilidade europeia, fez correr a todos nós na Ucrânia, com um saldo que Kiev está hoje a pagar, com Moscovo a rir-se na Crimeia. A NATO do futuro não pode ser uma mera alavanca da liberalidade de afirmação estratégica americana. E o seu alargamento não pode servir de instrumento para aventuras.

Uma administração Biden é mais do que bem vinda, depois do trauma que Trump representou. O grande teste à sua benignidade, contudo, será o modo como souber respeitar a vontade dos seus aliados. No fundo, na forma como preservar o mundo multilateral que a própria América a todos nos ensinou a acreditar como sendo a forma mais democrática de gestão global.

quinta-feira, dezembro 10, 2020

Lusofonias


Hotel numa antiga colónia portuguesa, no início dos anos 80. Telemóveis era uma coisa, à época, inexistente.

Tinha chegado de Lisboa, lá para as 10 horas da noite. Do quarto, liguei para a telefonista e pedi uma chamada para Portugal.

- O camarada necessita de vir aqui preencher boletim de "registro" de chamada, para a mesma se poder "efetivar".

Lá desci os quatro andares a pé, porque o elevador estava em dia não, e preenchi o boletim, que tinha a curiosidade de ser em triplicado, com papel químico pelo meio, herança burocrática do colono. Perguntei se demorava muito. "Vai ser verificado", foi-me dito.

Como a "verificação" não chegava, lá para a meia-noite, liguei de novo, a insistir.

- O camarada aqui tem que ter paciência. Não tem linha. Aqui há muita falta de linha.

- Então, esqueça! Já não quero chamada nenhuma. Muito obrigado.

- O camarada tem de vir anular boletim.

- Faça isso por mim, por favor, rasgue o boletim.

E desliguei.

Lá para as quatro da manhã:

- Foi o camarada que pediu uma chamada para Lisboa?

- Fui!!! Mas eu tinha-lhe pedido para cancelar a chamada!

- Tinha, mas não efetivou cancelamento. O camarada não veio cá destruir pessoalmente o boletim.

- Ó minha senhora! Mas então eu não lhe tinha pedido para rasgar o boletim?

- O camarada devia saber que, depois de "registrado", um boletim só pode ser anulado pelo próprio.

- Pronto, esqueça! Não quero a chamada...

- Mas já tem gente na linha! É voz de senhora. Parece que a acordei e, pela fala, não está nada contente, camarada!

E ouvi a minha interlocutora telefonista a rir!

A língua portuguesa é falada por 240 milhões de pessoas, não é? Mas isso não significa que todos nos entendamos sempre.

quarta-feira, dezembro 09, 2020

Vergonha e pânico


Senti vergonha, no caso de Tancos. Senti vergonha ao constatar que uma instalação militar portuguesa, com paióis de armamento e explosivos, instrumentos ideais para terrorismo e delinquência, esteve à mão de semear de uns gatunos de trazer por casa e que autoridades do meu país entraram, depois, numa ridícula competição clandestina de competências sobre quem devia tomar conta da aferição criminal daquela indignidade. Que tristeza foi ver Portugal a ter de explicar, lá fora, na Nato, aos parceiros, que não era grave, tudo se iria remediar...

Há muitos anos, já havia sentido vergonha – vergonha maior, porque estava ao tempo no governo - ao constatar que uma querela, envolvendo governantes, deputados e jornalistas, tinha fragilizado fortemente os nossos serviços de informação, pondo em causa a segurança física de operacionais e cobrindo-nos de ridículo internacional, de que ainda hoje – para quem não saiba! – a imagem de Portugal não se recompôs.

Sinto hoje vergonha quando constato a complacência objetiva, por muito disfarçada que seja, perante atos de racismo e de violência que, ciclicamente, teimam em manchar a imagem da nossa polícia, transformando uma esquadra, que deve ser um espaço de segurança, num local perigoso para a integridade de alguns – quer se trate de bandidos ou de meros suspeitos.

Contudo, nada me envergonhou mais, devo dizê-lo, nos últimos anos, do que o ato que terá sido cometido por uns sujeitos que, utilizando a autoridade que o Estado lhes havia conferido, assassinaram, bárbara e cobardemente, um cidadão estrangeiro que estava confiado à sua guarda - à guarda de forças policiais que supostamente estão especialmente treinadas para lidar com casos deste tipo.

Passamos anos a orgulharmo-nos por louvores que o país recebe, lá por fora, pelo humanismo das nossas políticas de acolhimento de estrangeiros e refugiados, para depois, por falta de liderança e de capacidade para separar, a tempo e horas, as “maçãs podres” do resto, ocorrerem situações destas. E, sempre, ao lado da decisão para clarificar rapidamente as coisas e tirar consequências exemplares, fica a ideia de haver um arrastar corporativo de pés, no fundo, uma cobardia institucional.

Um “botão de pânico” – que todos imaginamos que, se tivesse existido ao tempo do assassinato do cidadão ucraniano, seria por este “facilmente” utilizável ... – começa a ser necessário para o cidadão comum, como forma de poder reagir perante o espetáculo que lhe é proporcionado por algumas das suas instituições.

terça-feira, dezembro 08, 2020

Alguma luz...

 


Londres, hoje à tarde, no site do Guardian.

Anonimato e decência

De há uns tempos a esta parte, embora com honrosas exceções, os comentários aos posts deste blogue, a esmagadora maioria dos quais feitos sob um “corajoso” anonimato, revelam um crescente estilo de acidez crítica, não raramente insultuosa, que acho incompatível com a serenidade daquilo que por aqui se traz. E notem que o que tem sido publicado já é objeto de uma triagem! Para verem do que a casa gasta! 

Assim sendo, “para grandes males, grandes remédios”: por algum tempo, pelo tempo que eu vier a achar mais adequado, os posts deixam de aceitar comentários de quem não tenha, pelo menos, uma conta Google.

Se um dia mudar de opinião, aviso. Também por aqui. E desde já agradeço as Boas Festas que alguns pensavam poder mandar-me por aqui. 

segunda-feira, dezembro 07, 2020

Geoeconomia


Os compreensivos

Alguns intelectuais, ao “compreenderem” que Ventura “dá voz” a anseios de quem se não sente representado pelos partidos tradicionais, legitimam alegremente, nesse caminho, as pessoas que, ao lado desse fulano, assume sentimentos racistas, xenófobos e a linguagem populista rasca que atulha as caixas de comentários.

TAP

Há uma imensa desonestidade por parte de quem quer comparar a situação que se vivia na TAP, ao tempo em que foi tentada a sua privatização, e este tempo, em que tem lugar a reestruturação da companhia. Como se, entretanto, a pandemia não tivesse posto de pantanas o mercado das companhias aéreas.

Guerras

Por virtude desta pandemia, morreram já mais de 50% de pessoas do que em combate nas três frentes das guerras coloniais (1961/74)

Coros

Pode ser que seja deformação de quem integra um Clube de debates que é muito cioso da sua diversidade opinativa, mas acho muito pouco saudável ver por aí anunciados webinars com gente que pertence toda ao “mesmo lado” ideológico. Já sabem tudo? Não precisam de ouvir mais ninguém?

O pânico

A colocação de um “botão de pânico” nas instalações do SEF no aeroporto não é um insulto à nossa inteligência é um atestado da falta dela de quem teve tão peregrina ideia.

Vergonha própria

Nos últimos anos, houve dois momentos em que senti vergonha pelo meu país: na palhaçada de Tancos e no assassinato de um imigrante ucraniano por membros do SEF.

E se...?

Desculpem a pergunta: mas, em lugar de se sobrecarregarem instalações do SNS, não seria de fazer a aplicação intensiva da vacina em pavilhões gimnodesportivos, com mobilização de meios militares? Poder-se-ia fazer dezenas de milhares de aplicações por dia. É só cá uma ideia...

domingo, dezembro 06, 2020

Alguém sabe responder?

A pergunta que seria óbvia, se não fôssemos todos hipócritas: se, em Portugal, é proibido - em qualquer lugar, em qualquer circunstância - conduzir a 121 km/hora ou mais, por que razão é autorizada a venda de viaturas que podem ultrapassar essa velocidade?

“Observare”


Sob a moderação de Filipe Caetano, Carlos Gaspar, Luís Tomé e eu analisámos a agenda do próximo Conselho Europeu, em especial os problemas decorrentes da posição assumida pela Hungria e pela Polónia na questão financeira, e avaliámos os sinais que as recentes eleições municipais no Brasil trouxeram para os equilíbrios políticos internos naquele pais.

Pode ver o programa aqui.

sábado, dezembro 05, 2020

O Sousa


O Sousa não gostava de mim. Notava-se, à légua, há muito. O Sousa era, julgo, o contínuo mais velho do liceu. Não tinha o estilo futebolístico do Rocha, nem o ar desengonçado do Marques, nem o jeito comercial do Carminé. Mas cabia-lhe essa função inigualável de prestígio que era a gestão da entrada principal do liceu. Essa era uma zona que, por definição, nos era quase interdita, reservada aos trânsito dos professores ou para o cerimonioso acesso à secretaria, onde, atrás do balcão, nos olhava, com ar severo, o senhor Agarez. Contudo, num certo ano, por algum tempo, creio que por virtude de obras de construção de uma das alas do edifício, a entrada de todos os alunos passou a ser feita por esse átrio central, o tal que cabia ao Sousa controlar. (O Alfredo Branco, de bata branca, nesse 1° de Dezembro, cantou, no palco do Teatro Avenida, para a posteridade: “A entrada pró liceu / desta linda capital / já é feita como dantes / pela porta principal. / Por causa das confusões / p’ra evitar mais maçadas / à entrada para o átrio / está o código das estradas”). Eu tinha, confesso que por vício antigo, a mania de chatear o Sousa. Não me perguntem porquê! Nem como! Inventava coisas para o atazanar. Um dia, caiu neve na cidade. Como, ao que me dizem, hoje aconteceu. (Nesses tempos, nevava mais em Vila Real, acho eu). Desde a avenida, já desde o pelourinho (que, à época, estava em frente à Câmara, para quem não saiba), todos chegámos ao liceu, nessa manhã, a atirar bolas de neve uns aos outros. Nesse dia, sei lá bem porquê, entrei no átrio com uma bola de neve na mão. E, da porta grande da entrada, por sobre a cabeça de quem estava no átrio, lancei essa bola de neve, em percurso circular, jogando com a lei de Newton. E ela foi aterrar onde? Num olho do Sousa. Esquerdo? Direito? Tenho boa memória, mas nem tanto! Quase seis décadas depois, ainda me pergunto: terá sido de propósito? Era mesmo num olho do Sousa que eu queria acertar? Esquerdo? Direito? Não sei. Mas, se foi, a minha pontaria, há que reconhecer, foi excelente, magnífica, única, certeira, impecável. Melhor era impossível, se acaso foi (foi?) deliberado. Mas, repito, ainda hoje não tenho a certeza e isso, como é óbvio, absolve-me, em absoluto, de quaisquer culpas. O Sousa, recordo, recuou, sob o impacto do pedação de neve prensada saído da minha mão e, desestabilizado, foi visto a chocar contra uma daquelas vitrines envidraçadas nas quais, em manhãs de angústia, surgiam afixadas as nossa notas. Eu, imagino agora!, intimamente impante pelo indisputável êxito do arremesso, mas ao mesmo tempo temeroso de ver consagrado em fúria o meu rigor de precisão no alvo, ter-me-ei esgueirado para dentro do liceu, a caminho das aulas, contando (creio!) que ninguém bufasse ao Sousa que fora eu o autor de tão apurado, porém genial, feito. Mas alguém disse, porque a cidade, como bem sabemos, nunca foi de total confiança! E, ao final da tarde desse dia, no topo da escadas da minha casa, com quem é que eu deparei? Com a figura pesada e sombria do Sousa. A um oportunista “boa tarde, senhor Sousa!”, não obtive réstia de resposta. Tive logo um mau pressentimento. E tinha razão. O Sousa tinha ido a minha casa, apurei logo por uma criada, para falar com o meu pai. E falou. Um quarto de hora mais tarde, lá levei eu um bufardo na cara, dado pelo meu progenitor, como paga direta pela minha excecional pontaria matinal. Era assim a lógica das coisas nesse tempo. (E, valha a verdade, por muito que a pedagogia contemporânea me queira contrariar, essa bofetada não me traumatizou nada. Ou terá traumatizado? Por que razão lhes estou a contar isto agora?). O Sousa, confirmava-se, não gostava de mim. E eu, vou ser sincero, não gostava nada do Sousa. Pronto! Estamos pagos!

sexta-feira, dezembro 04, 2020

Na Farmácia Campos

Há uns anos, em Pipa, no Rio Grande do Norte, no Brasil, tive um almoço de confraternização com a comunidade portuguesa que aí trabalhava.

Era um tempo em que uma nova geração de empresários portugueses tinha rumado para as praias do Nordeste brasileiro, onde estava a ter imenso sucesso, num Brasil em que o turismo de qualidade começava então a despontar. "Resorts", hotéis, "pousadas" e restaurantes contribuíam para renovar a própria imagem de Portugal naquele país.

Confesso que não faço ideia de como as coisas hoje andarão. quinze anos passados desde o início das minhas funções como embaixador português por ali.

Lembro-me de que, ao entrar no restaurante, fiquei surpreendido com o seu nome: "Farmácia Campos". Mal fui apresentado ao proprietário, perguntei-lhe: "É de Matosinhos?" Era. O seu pai era ou tinha sido dono de um restaurante daquela cidade que, por uma qualquer razão (que me deve ter sido explicada, mas que já esqueci), era conhecido por "Farmácia Campos".

A "Farmácia Campos" de Matosinhos, onde só comi uma vez, tinha-a bem na memória.

Estávamos ali com uma amiga a jantar, numa noite, quando entrou pela casa dentro, um pouco desaustinado, um fulano que pediu ao proprietário para "pôr o rádio alto". Lembro-me de que havia, à esquerda de quem acedia da rua ao espaço do restaurante - uma adega típica, sem grandes requintes de decoração, mas onde se comia bastante bem, para os padrões da época - um longo balcão. O homem disse qualquer coisa para o dono da casa, que levou este a aceder, de imediato, ao pedido para colocar som num aparelho de rádio.

E foi então que ouvimos, no imenso silêncio que se fez, a notícia que o homem já trazia da rua: que o avião onde viajava aquele que, há menos de um ano, era primeiro-ministro de Portugal, Francisco Sá Carneiro, tinha caído perto do aeroporto de Lisboa. Mal nós sabíamos que a viagem tinha como destino o aeroporto de Pedras Rubras, perto do local onde estávamos a jantar. E muito menos nos passou pela cabeça que esse mesmo aeroporto acabaria por vir a ter o seu nome. As notícias da rádio, então parcas em pormenores, não deixavam dívidas de que não ia haver sobreviventes daquela tragédia.

Faz hoje precisamente 40 anos.

quinta-feira, dezembro 03, 2020

Respeito

 


90 anos


Jean-Luc Godard comemora hoje os seus 90 anos. Foi realizador de um filme que inspirou o nome de um blogue que talvez conheçam. 

Giscard e a Europa

Morreu ontem o antigo presidente francês, Giscard d'Estaing.

A Europa comunitária é uma ideia que tem a França no posto de comando. A Alemanha foi essencial para dar músculo económico ao projeto, mas o vetor político assentou sempre em Paris. Escrevi "no comando" porque a França nunca se viu numa outra posição. Desde De Gaulle, a França só aceita uma Europa traduzida na sua língua, sentindo-se alheia a tudo o que assim não for.

Tive o número suficiente de "accrochages" com os meus colegas franceses, quando andei pelo governo, para saber, de ciência certa, que há uma política francesa para a Europa - o que, nem sempre, é sinónimo de uma política europeia da França - que é relativamente independente de que estiver no poder, à esquerda ou à direita. Com os meus amigos Michel Barnier, um orgulhoso gaullista, ou Pierre Moscovici, um socialista "moderno", tive confrontos abertos nos quais senti, às vezes, que eles estiveram à beira de me não perdoarem a minha franqueza. De outras vezes, tive a embaixada francesa em Lisboa a queixar-se nas Necessidades disso mesmo.

Nos quatro anos que passei na embaixada em Paris, tive oportunidade de rever o muito que tinha aprendido, desde a adolescência, sobre a sociedade política francesa. No essencial, confirmei o que julgava saber sobre o modo como a França olha a Europa, como se coloca nela, o que dela quer. Para dizer as coisas em poucas palavras: a França percebe que precisa da Europa para se afirmar no mundo. Por essa razão, alguns políticos franceses estiveram por vezes disponíveis para diluir, num projeto europeu mais "avançado", parte do seu poder nacional, na certeza que o iriam recuperar nesse quadro mais integrado. Isso, porém, até hoje, nunca aconteceu.

Mitterrand, com Maastricht e a moeda única, ficou na soleira dessa audácia. Macron parece ter hoje a consciência de que seria uma opção tentar ir por esse caminho. Mas só Giscard d'Estaing, já depois de sair do Eliseu, revelou rasgo para tentar dar esse mesmo salto em frente.

Em 2002, Giscard d'Estaing presidiu à Convenção sobre o Futuro da Europa, da qual saiu o projeto de Tratado Constitucional Europeu, ideia que o referendo negativo holandês veio a condenar ao insucesso. Parte dessas propostas, mas não as essenciais, ressurgiriam no Tratado de Lisboa, o qual, na minha (muito negativa) opinião, ficou com o pior e recusou o melhor do projeto original.

Tenho tentado lembrar-me, sem êxito, por que diabo, algures no primeiro semestre de 2002, vim a estar presente numa sessão em Nova Iorque onde Giscard d'Estaing falou sobre a Convenção a que presidia. Eu era embaixador na ONU e só por eurofilia militante ali devo ter ido parar. E o que terá levado Giscard a Nova Iorque?

Tendo ao lado o vice-presidente do exercício, o antigo primeiro-ministro italiano Giuliano Amato, Giscard d'Estaing explicou, no seu bom inglês, o que pretendia fazer sair da Convenção.

No final da apresentação, houve algumas perguntas e uma delas foi minha. 

Questionei Giscard sobre se os representantes dos governos dos então Quinze, que estariam presentes no exercício, iriam ter, no final, algum voto qualificado, isto é, se a sua luz verde seria necessária para o processo poder avançar. 

Giscard como que se abespinhou e perguntou por que razão eu entendia que isso seria necessário. Respondi-lhe uma coisa deste género: "Porque os governos é que foram eleitos, porque são eles quem tem legitimidade política, porque são quem responde perante os cidadãos dos respetivos países e a sua anuência, como aconteceu com as Conferências Intergovernamentais que deram origem a todos os anteriores tratados, tem sido essencial para ajudar a um "soft landing" dos projetos junto das opiniões públicas e dos parlamentos". 

Com aquele ar de desdém aristocrático que lhe era caraterístico, a que juntou um sorriso condescendente, Giscard pôs um ponto final no assunto: "Não, caro senhor, o parecer dos governos não será por mim pedido no final dos trabalhos". Ao sentar-me, não deixei de lhe enviar, em francês, um irónico "Bonne chance!".

Um ano e pouco depois, o governo português de então, sendo eu embaixador na OSCE, convidou-me a fazer parte do grupo de aconselhamento do primeiro-ministro Durão Barroso para a negociação do Tratado Constitucional. Entendi dever aceitar.

Quando li os projectos daquilo que estava em cima da mesa como matéria já em vias de ser acordada, percebi que Giscard d'Estaing tinha ido longe demais na sua ambição legislativa para a Europa. E também me dei conta - e disse-o na primeira reunião no "bunker" de S. Bento, na presença de um silencioso Barroso - que o texto já se afastava bastante dos interesses portugueses. Para algum desconforto dos presentes, e levando mais tempo do que parecia ser esperado da minha intervenção, pormenorizei, alto e bom som, as razões por que achava isso. Sem falsa modéstia, o facto de ter sido o principal negociador português dos últimos dois tratados europeus dava-me alguma autoridade para falar.

À saída, Ernâni Lopes, que tinha representado Portugal na Convenção, e que entretanto havia sido objeto de uma atitude de grande indelicadeza por parte do governo, meteu-me o braço e, com um imenso sorriso e a atitude amiga do homem de bem que era, disse-me, na voz mais baixa que o seu vozeirão permitia: "Tiveste-os no sítio!"

Para o que interessa. Giscard d'Estaing tinha-se equivocado. O seu Tratado Constitucional foi rejeitado.

Giscard


Quando emergiu para a grande política, era uma espécie de personagem “à americana”, num género que, depois de Kennedy e de Trudeau, seduzia muitos europeus. Tinha o vigor de uma nova geração, renovadora da V República, coveira assumida da IV. Falava bem (falava inglês, hélas!), com um discurso competente, ágil nas contas, sedutor na eficácia apregoada. Era, ao seu modo, um liberal, ideia mais velha do que antiga e que confere sempre um ar desempoeirado a quem, ciclicamente, a proclama. Mesmo em França, onde o liberalismo foi sempre um receita garantida para o insucesso político. Depois de o ter usado como degrau para as suas legítimas ambições, como ministro da Economia e Finanças, Giscard acabou por provocar um De Gaulle já em declínio, a quem deixou o seu, para sempre tido como oportunista, “oui, mais”. Após demarcar-se do gaullismo (o seu verdadeiro inimigo de estimação), mas conseguindo domesticá-lo por algum tempo em seu proveito, veio a derrotar, na primeira corrida à presidência, François Mitterrand, lançando-lhe, com genial precisão, o magnífico “vous n’avez pas le monopole du coeur”. Cavalgou, entretanto, a conhecida atitude francesa de tentar dominar o processo integrador querendo mostrar o país como mais europeísta do que os outros. Com Helmut Schmidt, com quem fez um dos “tandem” franco-alemão, foi o “inventor” do Conselho Europeu, nesse tempo uma estrutura ainda fora dos tratados. Giscard foi uma figura indiscutivelmente brilhante, uma estrela no firmamento político francês, mas parece também pacífico que era um homem deslumbrado consigo mesmo, ao mesmo tempo que projetava um modo aristocrático, quase monarquista, de afirmação política, um elitismo snobe e distante. A questão dos diamantes que lhe terão sido oferecidos pelo facínora centro-africano Bokassa perseguiu-o sempre e, de certo modo, contribuiu para acelerar o seu fim político. Teve um único mandato presidencial, somando, na derrota que Mitterrand lhe inflingiu em 1981, muitas culpas próprias, conjugadas com uma conjuntura internacional que lhe foi adversa. Manteve sempre o seu prestígio público e viria a ser recuperado para presidir à Convenção Europeia, em que desenhou o Tratado Constitucional, ideia que acabou por morrer na praia, mas que acabaria por ressurgir travestida daquilo que ficou conhecido como o Tratado de Lisboa. Giscard, recorde-se, foi contra o “timing” da abertura da Europa a Espanha e Portugal. Perdeu. Como, mais tarde, foi bastante culpado pelo modo agressivo como a Turquia se sentiu rejeitada na aproximação que pretendia ao projeto. Nesse caso, Giscard, mas não só, contribuiu para que perdêssemos todos. Escreveu, além obras estimáveis e bem construídas, um livro desagradável e desnecessário, a rescender a decadência pessoal, insinuando, numa ficção inconveniente, uma sua hipotética relação com a princesa Diana. Em Paris, Giscard era vizinho da nossa embaixada. Goste-se ou não dele, temos de reconhecer que foi uma grande figura da política francesa. E europeia. Morreu ontem. De Covid.

quarta-feira, dezembro 02, 2020

Pé ante pé


Vale a pena olhar para trás, observar com atenção o percurso que foi fazendo, num ritmo de quem só dava um passo após ter firmado bem o anterior, depois de ter a certeza do que tinha acabado: de fazer, de dizer, de escrever. Foi assim a obra de Eduardo Lourenço.

O perfil físico, a voz beirã, o humor amalandrado, a gargalhada contida, a forma, só aparentemente hesitante, de expressar, em palavras simples, ideias originais, como que presumiam uma quase modéstia. À medida que o fui conhecendo, fui criando, de Eduardo Lourenço, a imagem de um sábio sereno, que se foi ele próprio construindo, quase sem precisar de se impor, uma figura que foi entrando pela alma deste país um pouco pé ante pé, nela acabando por se firmar como o melhor ilustrador daquilo que somos.

Lourenço, ao contrário de alguns bonzos, nunca parou para pensar. Foi pensando ao longo do caminho, sobre o que esse caminho lhe trazia à razão, porque viu sempre Portugal como uma entidade mutante, na consciência clara de que a mudança faz parte da natureza das coisas. E aí, ao contrário desses outros, que se agarram à identidade como a um padrão do império, assentava a sua genialidade.

Devo a Lourenço muitas coisas. Desde logo, a Europa. Foi com ele que comecei a refletir o quanto este retângulo geográfico com gente, para além de uma história, de uma língua, talvez de uma idiossincrasia comum, necessitava da Europa para cumprir mais uma etapa do seu destino, depois da aventura trágico-marítima do império.

Lourenço ensinou-me a perceber a riqueza de conseguirmos ser, com dupla e não contraditória lealdade, portugueses e europeus. Com ele percebi que a Europa nos completava e que, com alguma assumida sobranceria, devíamos também ter a ousadia de pensar que, sem nós, a Europa também seria outra coisa.

Fez-me também perceber que ser português é isto mesmo – a soma do que outros já foram, em nome daquilo a que chamamos Portugal, com o que hoje realmente somos, sem complexos nem gongóricas vaidades. Mostrou-me que esse é o outro lado, simples mas verdadeiro, de um país que é um sobrevivente da História, por entre os escolhos dos seus fracassos e das caravelas que deixaram de existir. Um país que sempre foi mais rico, como entidade histórica com boas razões para ser orgulhosa de si mesma, quando teve pelas suas ruas gente que nem sequer tem de chamar-se a si mesma de portuguesa para nos ajudar a ser o melhor que somos.

Eduardo Lourenço parte com uma imensa glória: ter ensinado o um país a ver-se ao espelho.

terça-feira, dezembro 01, 2020

Em Paris, com Eduardo Lourenço (3)


Ao tempo em que dirigia a delegação em Paris da Fundação Calouste Gulbenkian, João Pedro Garcia organizou um interessante ciclo de conferências sobre a Europa. Figuras portuguesas e francesas diversas intervieram nessas jornadas, sempre muito concorridas, nos tempos em que a antiga residência de Gulbenkian na avenue d’Iéna acolhia esses eventos,

Um dia, coube a vez a Marcelo Rebelo de Sousa de dizer o que pensava da Europa. Ao tempo, o atual presidente da República era um conhecido comentador televisivo. As suas charlas dominicais, sobre tudo e sobre todos, eram acompanhadas pelo país, mesmo por aqueles setores que com ele não concordavam.

Coube a Eduardo Lourenço, ao tempo administrador não executivo da Fundação, fazer a apresentação de Marcelo Rebelo de Sousa. Fê-lo com imensa graça, trabalhando a figura académica, política e mediática de Marcelo. A certo ponto, saiu-se com esta tirada lapidar: "Hoje em dia, em Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa é como aquelas figuras que, numa vila ou numa cidade pequena, estão à janela, a ver as pessoas passar na rua e vão comentando cada uma delas. Só que, no seu caso, ele acaba, por vezes, por ver “passar” nessa rua o cidadão político Marcelo Rebelo de Sousa e, claro, não se faz rogado e também faz comentários sobre ele”. Marcelo, como todos nós, riu-se imenso.

Em Paris, com Eduardo Lourenço (2)


Tenho boa memória, mas não a suficiente para me lembrar do nome do intelectual caribenho que, num final de tarde, na casa antiga da Fundação Calouste Gulbenkian, na avenue d’Iéna, em Paris, fez parelha com Eduardo Lourenço, num debate sobre uma determinada temática, organizado pelo diretor da Delegação, João Pedro Garcia. 

A sala estava cheia, quer pelo interesse no intelectual francófono, um homem já idoso, com voz forte e presença imponente, mas também para ouvir Lourenço, que os portugueses “viciados” nas sessões da Gulbenkian e muitos “lusófilos” muito apreciavam. Prometia ser uma bela sessão.

Começou o homem do Caribe. E fê-lo lindamente, de improviso, arrebatando a sala. Passou mesmo o limite de tempo que lhe era destinado. A seu lado, Eduardo Lourenço ouvia-o com visível interesse. Sentado em frente a ambos, na primeira fila (alguma vantagem haveria em ser embaixador...), notei que Lourenço passou os dedos, por mais de uma vez, por algumas folhas que tinha diante de si.

E chegou o momento de Eduardo Lourenço falar. Começou por referir-se ao que tinha acabado de ouvir, citando dois livros do orador, elogiando a sua notável prestação. E, depois, no excelente francês que era o seu, disse mais ou menos isto: “Eu tinha-me preparado para vos falar sobre o tema que, a ambos, hoje aqui nos convocou. Tinha mesmo escrito um texto, para vos ler. Mas ao ouvir o que, de magnífico, nos trouxe o meu colega de painel, surgiram-me novas ideias e decidi dispensar a leitura desse texto. E, tal como ele fez, vou-vos falar livremente sobre o assunto.”

E falou. Durante bem mais de meia hora, de improviso, num francês de estilo, a que o sotaque beirão dava uma nota curiosa, Eduardo Lourenço encheu a sala de erudição e encheu-nos, a todos os portugueses que por ali tinham o privilégio de estar, de um imenso orgulho por termos como compatriota uma figura daquele calibre. 

Em Paris, com Eduardo Lourenço (1)


Um dia, ao tempo que era embaixador em França, decidi organizar um jantar em honra de Eduardo Lourenço. Por uma qualquer razão, estavam também nesse jantar, recordo bem, Vasco Graça Moura e Guilherme de Oliveira Martins.

O jantar estava marcado para as oito e meia, mas o convidado principal atrasou-se. Já se aproximavam as nove horas quando, afogueado, o Eduardo chegou, pedindo imensas desculpas. E explicando a razão do atraso.

Tinha ido a um estúdio de cinema, em Saint Denis, na periferia de Paris, onde Manuel de Oliveira estava a filmar uma obra, ali tendo construído, em cenário, uma rua do Porto. E apanhara imenso trânsito no regresso, de táxi.

Perguntei a Eduardo Lourenço o motivo da deslocação ao local das filmagens. Fora para estar com Oliveira? Alguma curiosidade de ver a rodagem o filme? 

Íamos na sala, a caminho da mesa de jantar, quando o Eduardo me puxou pelo braço, baixou a voz e fez uma confissão: “Vou-lhe contar por que é que fui!” E deu uma gargalhada marota, de que quem o conhecia se lembra bem. “É que eu sabia que o Oliveira tinha no filme a Jeanne Moreau e a Claudia Cardinalle. Ora dei comigo a pensar que esta era uma boa oportunidade de, por uma vez, conhecer aquelas duas mulheres, duas belezas do meu tempo. E, como tinha algumas horas, meti-me a caminho e fui ao estúdio”. “E esteve com elas?”, perguntei-lhe, já meio invejoso. “Qual quê! Quando lá cheguei já tinham saído. Acabei por pagar uma conta calada de táxi e, ainda por cima, chego atrasado ao seu jantar. Desculpe-me, sim?”

Lourenço

No aparente consenso nacional que rodeava a sua figura, é necessário notar que certas ideias de Eduardo Lourenço foram sempre bastante incómodas para alguns. Porém, por estas horas, eles acham mais prudente manterem as garras recolhidas. Ouçam-se, com atenção, alguns silêncios.

Eduardo Lourenço

 


1º de Dezembro

Há oito anos, a pedido do "Expresso", no dia 1° de dezembro de 2012, escrevi este texto. Reproduzo-o agora, concordando comigo:

O conceito de independência nacional tem-se transmutado ao longo do tempo. A crescente interpenetração das economias, a livre circulação dos capitais e a prevalência dos modelos de segurança coletiva, bem como de formas institucionalizadas de gestão multilateral das soberanias, tudo isso relativiza os modelos tradicionais de independência.

É evidente que a afirmação da independência depende muito da nossa capacidade de controlar o nosso destino imediato, pelo que, na crise económico-financeira atual, perdemos conjunturalmente muita independência. Mas essa perda é, a prazo, recuperável.

Nos dias que correm, a multiplicidade de certas ligações internacionais (pertença ao projeto europeu, participação na NATO, influência na CPLP, capacidade de afirmação nas Nações Unidas) acaba por conferir a Portugal um conjunto maior de garantias para a sua própria sobrevivência como Estado, de afirmação da sua identidade própria como país e de objetivação da sua vontade política. Estamos muito distantes do país tutelado pela Inglaterra que existia até ao final dos anos 20 do século passado ou do Portugal “coincé”, orgulhosa e teimosamente só, da ditadura salazarista, sem força para "mandar cantar um cego" fora das frágeis fronteiras de um império com pés de barro.

Todos somos hoje, pelo mundo, menos independentes e mais dependentes uns dos outros, embora com alguns a serem mais iguais do que outros, pela força natural das coisas. A atenção quase obsessiva que, há semanas, todos dedicámos às eleições americanas – nós, como os russos, os chineses ou os israelitas – é a prova provada da nossa dependência inescapável do futuro de um país que, queiramos ou não, dá hoje as cartas de um jogo em que todos procuramos arrebanhar o maior número possível de trunfos. A luta política internacional contemporânea é centrada na tentativa de cada Estado tentar reduzir, ao mínimo possível, as suas dependências. Mas nenhum Estado, nem mesmo os EUA, é hoje independente – do terrorismo, do petróleo ou dos golpes da natureza.

Portugal tem nove séculos e está aí “para as curvas”. Esta nossa "nonchalance” com a nossa independência, este gosto por dizermos mal de nós próprios (que se suspende quando outros dizem mal de nós à nossa frente, como se viu no caso “finlandês” ou na reação às diatribes de um responsável checo) e do nosso futuro, a snob ideia de “finis patriae” ou a autoprovocação com a diluição ibérica, tudo isso não passa de uma demonstração inequívoca de que estamos suficientemente seguros da nossa identidade para nos podermos dar ao luxo de brincar com ela, mesmo à beira do precipício.

Tenho imenso orgulho em ser português, até porque, por exclusão de partes, não sinto tentação de ser americano, francês ou espanhol. Por esse mundo fora, passo o tempo a encontrar gente que nos identifica como uma entidade com sustentação garantida na sua memória histórica, gente que olha para nós com surpresa quando algum português, neste jeito “self-deprecating” que alguns de nós usamos, se inflige masoquistamente alguns qualificativos negativos. Vejam-se os portugueses da diáspora e o modo como olham o seu país, talvez porque, no país dos outros, sabem bem como os fatores nacionais são explorados.

Querem um exemplo indireto deste orgulho na portugalidade?: o futebol. O hiperbolizar das glórias na ponta de uma chuteira, podendo não ser a mais nobilitante forma de ser patriota, é um sintoma de uma saudável “doença” nacional, que prova que o país “está lá”, no verde e vermelho da bandeira que a todos nos cobre... até aos nostálgicos monárquicos, agora num país sem coroa (embora também sem muitas coroas...).

Se há coisa que a integração da Europa trouxe aos europeus foi a necessidade de se mostrarem diferentes uns dos outros, o orgulho das regiões (e, em alguma Espanha e na Escócia, a vontade de ir mais longe), o sublinhar das identidades antropológicas, o “small is beautiful”, a pulsão pela subsidiariedade ao nível daquilo que nos distingue. Os países estão aí para ficar e nenhum “template” europeizante vai diluir a sua importância.

Portugal é uma ideia moderna e as dificuldades que atravessamos talvez nos tenham feito perceber que estamos num barco, que sendo mais um cacilheiro do que um paquete de luxo, é, no entanto, a única embarcação disponível para evitar um naufrágio. E o passado, onde crises bem maiores já nos ocorreram, vai provar que não temos vocação para “morrer na praia”, embora talvez tenhamos de fazer um esforço para nos convencermos de que não podemos, no futuro, passar tantos dias a gozar férias nela.  Não estou, por isso, minimamente preocupado com o futuro de Portugal como entidade autónoma no plano internacional.

segunda-feira, novembro 30, 2020

Um pedido de desculpas


Depois do que temos visto nos últimos tempos por aí, acho que o país já devia ter formulado um pedido de desculpas a António Marinho Pinto, por ter frequentemente considerado populistas muitas das suas posições. 

É que, como sempre deixei bem claro, não obstante o seu estilo arrebatado, António Marinho Pinto foi e é um democrata, insuspeito de pôr em causa os valores constitucionais, intolerante perante o racismo e a xenofobia, defensor dos Direitos Humanos e das liberdades.

Entre o "populismo" de Marinho Pinto e o extremismo filo-fascista que marca o discurso e a prática política de algumas figuras que atazanam os dias da nossa vida democrática vai uma imensa distância.

domingo, novembro 29, 2020

Cooperação para o Desenvolvimento

 


Santarém e o Brasil


Foi interessante e bastante divertido o debate promovido em Santarém, na redação do semanário “O Mirante”, sobre as relações entre Portugal e o Brasil, a pretexto dos 500 anos da morte, naquela cidade, de Pedro Álvares Cabral.

Sob a moderação de Joaquim Emídio, com a participação do jornalista do “Expresso” Henrique Monteiro e do editor Manuel S. Fonseca, falou-se sobre História, sobre literatura, (de raspão) sobre o Acordo Ortográfico, sobre música, sobre futebol, sobre as migrações, sobre as perceções mútuas e também sobre diplomacia - embora muito pouco sobre política, o que é sempre saudável.

Agradeço a Joana Emídio, diretora executiva desse excelente jornal que é “O Mirante”, o seu amável convite para fazer parte desta charla de fim de tarde.

Israel, o Irão e a arma nuclear

Na passada semana, durante o programa “Observare”, na TVI 24, ao selecionar o chamado “prémio guerra”, destaquei um bombardeamento israelita feito, dias antes, à Síria, num setor onde, segundo alguns meios americanos, Damasco beneficiaria de cooperação militar iraniana. Essas ações foram levadas a cabo em áreas dos Montes Golan, grande parte dos quais é hoje ocupada por Israel, à revelia de resoluções das Nações Unidas, que sempre reconheceram esse território como sendo sírio.

Na ocasião, referi que me parecia que este podia ser um sinal de que Israel poderia ser tentado, nos próximos tempos, isto é, até ao final da administração Trump, a efetuar algumas ações militares contra o Irão.

Ora parece haver hoje fortes indícios de que Israel poderá estar por detrás do assassinato do cientista iraniano, que estaria ligado ao programa nuclear iraniano, ocorrido imediatamente depois. Não quero “ser bruxo”, mas...

O mundo vive preocupado com a possibilidade do Irão poder vir a ter acesso à arma nuclear. Por essa razão, no termo da administração Obama, juntamente com três países europeus (Reino Unido, França e Alemanha), os EUA chegaram a um acordo com o Irão sobre a matéria. Com Trump, Washington dissociou-se desse acordo, estando para saber-se se Biden irá retomá-lo.

Israel protestou sempre contra esse acordo feito com o Irão. A legitimidade política de Tel-Aviv nesta matéria é, contudo, muito limitada. Toda a gente sabe que Israel tem armas nucleares, que não é por acaso que o país não subscreve o Tratado de Não-Proliferação Nuclear e que, até hoje, continua a impedir a Agência Internacional de Energia Atómica de controlar o seu território. 

Israel não quer que o Irão tenha a bomba nuclear, mas não dispensa ter a sua.

“Observare”


Esta semana, por razões excecionais, não tivemos o “Observare”, o programa de relações internacionais, na noite de sábado da TVI 24.

Regressamos ”às lides” para a semana, com novidades.

sábado, novembro 28, 2020

Calendários


Ofereceram-me na passada semana um calendário para 2021, daqueles cheios de paisagens que sugerem sossego e paz, ajudadas pelo photoshop. 

Nas redes sociais, aquele tipo de imagens, em substituição das infernais “florzinhas”, servem de cenário para tiradas filosóficas foleiras, a armar ao profundo, frequentemente com erros ortográficos. Às vezes, vêm acompanhadas de canções brasileiras delicodices, de romantismo saloio.

Mas é um belo calendário, este que me ofereceram! Como não tenho onde o pôr, não sei o que hei-de fazer com ele! 

Nos últimos anos, os calendários deixaram de estar na moda. Hoje, um amigo “da tropa”, mandou-me, num anexo a um email, o da “Playboy” para o próximo ano. O conteúdo é o expectável, com cada mês a ser melhor do que o outro, induzindo um embaraço numa escolha que, afinal, para o bem ou para o mal, não temos de fazer. 

Confesso que tenho uma certa nostalgia do tempo em que não se ia uma garagem sem encontrar, na parede, o clássico calendário da “Pirelli”. Confortava sempre muito o camionista que trazemos escondido dentro de nós...

Quem se lembra?


Esta pintura de parede, feita há 44 anos, ainda há menos de uma década podia ser vista numa parede da minha rua. Lembrei-me disto neste fim de semana do Congresso do PCP.

sexta-feira, novembro 27, 2020

Mudanças na Constituição

Descobri esta história, neste blogue, com quase 10 anos. Resolvi relembrá-la.

"A conversa estava solta e animada. Na sala daquela família burguesa da Foz portuense, discutia-se, entre amigos, a situação política decorrente das recentes eleições (2011). Não havia grandes diferenças ideológicas entre os presentes, todos favoráveis aos "novos ventos" conservadores. 

A certo passo, veio à baila o tema de uma possível revisão da Constituição. Surgiram divergentes as opiniões sobre o interesse de, nesta fase da vida política nacional, introduzir um debate que, segundo alguns, poderia abrir clivagens indesejáveis no seio novo espetro parlamentar. 

Outros, mais radicais, consideravam, precisamente, que era importante aproveitar a nova relação de forças para acabar com o que consideravam ser os "anacronismos" existentes no texto fundamental, ainda muito tributário dos tempos revolucionários dos anos 70.

O David era um dos membros da família a quem estas coisas da política pouco diziam. Com quase quarenta anos, sabia-se que o seu voto havia sido sempre no lado conservador, com variações de partido, mas raramente dava uma opinião sobre esses temas. As "guerras" em que se metia, como feroz portista que era, situavam-se, maioritariamente, no futebol. A mais recente tinha a ver com a "traição" do Villas Boas, que trocara o Dragão por Stamford Bridge. Aí sim, era um radical impenitente.

Por isso, todos estranharam que, ao passar da varanda, onde estivera na última meia hora, à conversa, para a sala, em busca de uma cervejas, tivesse lançado, em voz bem alta, para o grupo: "Pois eu, cá por mim, sou favorável a que se façam mudanças na Constituição". 

E logo saíu, em direção à cozinha, sem dar mais pormenores sobre as suas opções concretas na matéria. Todos se entreolharam, estranhando esta inesperada tomada de posição, tanto mais que o David não participara em nenhuma fase da conversa, onde se tinham abordado as questões laborais e de saúde. Ninguém ligou muito.

Minutos depois, o David reapareceu, sobraçando umas cervejas e alguém perguntou: "Ó David, diz lá então o que é que gostarias que mudasse na Constituição".

O David parou junto à saída para a varanda, onde ia continuar, refletiu um instante e adiantou: "Olhem! Para já, acho que deviam fazer uma rotunda no cruzamento com a Oliveira Monteiro. Assim como está é muito perigoso".

Esta história, com poucas semanas, foi-me contada por amigos do Porto, onde se situa a rua da Constituição. E quase só tem graça para eles. Mas ela aqui fica, nestas minha férias nortenhas."

quinta-feira, novembro 26, 2020

It’s over!

 


A biblioteca gourmet


Sei que muitas pessoas se retraem de ir a restaurantes, nestes tempos de pandemia. 

É claro que tirar a máscara e sentarmo-nos numa mesa com familiares ou amigos, cujo ciclo social e profissional de vida, nos últimos dias ou horas, não conhecemos, significa correr um risco desnecessário, a menos que estejamos a cerca de dois metros uns dos outros - mas ninguém cumpre essa distanciação, deixemo-nos de coisas! 

Porém, ir a um restaurante com a pessoa ou as pessoas com quem coabitamos, precisamente no mesmo registo de convivência que temos em casa, assegurando-nos que as mesas estão com a devida distância entre si, como os restaurantes responsáveis praticam, é hoje uma “viagem” que oferece total segurança.

E é nestes dias, que mesmo com sol não deixam de ser sombrios para todos nós, que é muito bom sair de casa, espairecer, ao mesmo tempo ajudando os profissionais da restauração que lutam, dia a dia, para manterem o seu negócio e salvar os postos de trabalho.

A ”biblioteca” da imagem não existe. É apenas o papel de parede de uma das zonas de um restaurante lisboeta.

O nome? Tal como os livros que está a ver, o nome não interessa, mas dou-lhe uma dica: é ali que se serve o “rollsbeef” de Lisboa - com qualidade, com simpatia e em total segurança. Ah! E é próximo de S. Bento!

quarta-feira, novembro 25, 2020

Eu e Maradona


Na vida, tive sempre bastante dificuldade para conseguir explicar às pessoas que era capaz de passar horas a jogar bilhar livre ou ping-pong (agora, diz-se ténis de mesa, eu sei, mas continuo a dizer ping-pong) sem contar pontos, apenas pelo prazer de tentar fazer uma boa carambola ou puxar bem uma bola. Verdade seja que raramente encontrei parceiros para essa minha estranha forma de estar nos jogos.

Por natureza, sou a pessoa menos competitiva que conheço: muitas vezes, quando entro num jogo, o facto de ganhar ou perder é-me praticamente indiferente. Até chego a achar graça ver os outros ganhar, porque não sofro nada com a minha derrota. (Mas, curiosamente, já não tenho a mesma atitude para competições que não seja eu próprio a disputar, como é o caso dos jogos do meu clube ou da seleção).

A extraordinária arte de jogar a bola era aquilo que eu mais preciava em Maradona, até porque nunca me preocupou se as equipas onde ele jogava ganhavam ou perdiam. O que nele exclusivamente me interessava era a sua relação física com a bola, como num circo aprecio um trapezista ou o passe inexplicável de um mágico. Nem sequer era essencial que, do que ele fazia, viesse a resultar um golo, embora isso fosse o cúmulo superlativo.

Maradona, personalidade que, enquanto figura pública, sempre considerei detestável, foi seguramente dos jogadores de futebol que mais prazer me deu ver jogar. Na hora da sua morte, acho que este é o melhor elogio que posso prestar-lhe. Porque é o mais sincero.

Uma presidência diferente


No imaginário português, as presidências europeias - e já houve três, desde a nossa entrada para as instituições comunitárias - ficaram ligadas à ideia de um corrupio de políticos estrangeiros a visitarem o país, de governantes lusos a presidirem a reuniões em Bruxelas, de declarações sonantes, em vozes portuguesas, em nome dos parceiros.

Em 1992, depois de, sabiamente, Portugal ter dispensado assumir uma presidência logo após a adesão, a nossa estreia nessas lides teve foros de grande evento nacional, com o novo Centro Cultural de Belém como "catedral" dessa liturgia, feita de euroentusiasmo, de fundos e de muita novidade. Cavaco Silva ainda aproveitou bem esse ensejo, com um trabalho europeu rigoroso e competente, num tempo que, contudo, acabaria por ser o início do declínio do seu fulgor político.

Quando António Guterres assumiu idênticas funções, em 2000, quatro anos depois de ter entrado em S. Bento, os favores da opinião pública interna também já se esvaíam. O interessante esforço português, nos caminhos europeus, acabou por ser muito mais apreciado lá fora, pelos seus pares, do que o foi no plano interno, onde o vento começava a mudar para o líder socialista.

Em 2007, na última das nossas presidências, José Sócrates vivia ainda sob um tempo de otimismo. Essa prestação foi bem gerida e projetada na Europa, com os sinais da crise financeira mundial, que estava já ao virar da esquina, ainda pouco claros. Se há marco dessa presidência, esse foi o Tratado de Lisboa.

E é o Tratado de Lisboa que agora tudo muda, que faz do exercício que António Costa vai gerir, por seis meses, a partir de 1 de janeiro de 2021, uma coisa bem diferente daquilo que coube aos seus antecessores.

O primeiro-ministro já não chefiará os Conselhos Europeus, porque o Tratado de Lisboa criou a figura de um presidente permanente desse órgão. Os ministros dos Negócios Estrangeiros, que o mesmo Tratado já tinha afastado de terem assento físico nesse órgão, onde haviam estado desde a sua criação, em 1974, já não se reúnem e agem sob a coordenação de quem assume a presidência rotativa: há um Alto Representante da UE para essa tarefa. Pelo mundo, as embaixadas dos países da presidência cedem a sua função ao representante do Serviço Europeu de Ação Externa. E muito mais.

Não é este o lugar para discutir as vantagens e os inconvenientes do Tratado que ficou a ser chamado de Lisboa. Uma coisa é óbvia, embora não tenha a certeza de que o país disso já se tenha dado conta: agora, não vai ser a mesma coisa.

O concerto da Júlia

Foi assim, depois do almoço de hoje. A pianista, com menos de 10 anos, chama-se Júlia.