sexta-feira, janeiro 17, 2020

O Portugal dos cafezinhos

Sai um cafezinho, bem cheio, p’ró senhor Madureira!” “Aquele Trump, só a tiro!” “Eu cá, acho que a história do gajo do Irão está mal contada...” “E ninguém fala de Israel, que esteve por detrás daquilo tudo?” “Você absolvem os aiatolas, mas aquilo no Irão é uma ditadura!” “Está bem, está, mas se fôssemos matar todos os ditadores, nunca mais se acabava...” “Então e o Trump não andou aos beijinhos com o maluquinho da Coreia, o das bombas?!” “Os americanos é para o lado que lhes dá mais jeito. Tanto apoiam ditadores, como os perseguem.” “E o Putin? Está ali, está para ficar para sempre!” “Às tantas, se não criar mais chatices, até é bom que fique”. “Viram a entrevista da engenheira de Angola? Aquilo é que é uma santinha!” “Da Ladeira, digo eu!”. “Sorte para logo, ó Leitão! É bom ser do Belenenses, nestes dias!” “De qual Belenenses. Agora há dois, não é?” “Mau, mestre! Lá começam as provocações”.

A coreografia dos cafés, dos croissants com fiambre, da meia de leite, da torrada “em pão de forma, com manteiga só de um lado”, do pingado “ali para a senhora dona Amélia”, foi abafando a sociedade das nações em que aquele espaço se tinha transformado, por minutos, esta manhã. A conversa já ia no futebol, único tema em que, em geral, o lado de dentro do balcão se sente tentado a intervir, em tudo o resto patrão e empregados só se autorizam alguma exclamação ou contribuem com esgares de leitura não unívoca. Quando saí para a rua, a violência doméstica do Armando Gama começava a aceder ao “hit parade” dos comentários. A menina Adelaide, que chegava para o seu queque tradicional, diria alguma coisa sobre o tema?

É este o Portugal dos “cafezinhos”. Gosto imenso deste país lisboeta de bairro, de quem conhece o outro mas não muito (e, se calhar, ainda bem), dos “vizinhos” de quem não sabemos o nome mas que há anos cumprimentamos (e de quem passamos a íntimos, se cruzamos na praia ou no estrangeiro), das sorridentes cumplicidades implícitas com algumas pessoas (quase sempre, por inferência intuitiva), mas também das antipatias nunca explicadas (“não gosto da cara daquele gajo, pronto!”). Lisboa é imbatível!

O Norte Desportivo


Ontem, por razões óbvias, lembrei-me muito de “O Norte Desportivo”. Era um jornal portuense retintamente portista, num tempo - anos 50 e 60 do século passado - em que os émulos de Lisboa não assumiam claramente as suas cores afetivas, embora toda a gente soubesse que “A Bola” era maioritariamente benfiquista, que no “Record” se exultava com as vitórias do Sporting e que “O Mundo Desportivo” tinha de tudo um pouco, desde os dois rivais lisboetas ao Belenenses.

Joaquim Alves Teixeira era o diretor e, dizia- se, o grande redator de “O Norte Desportivo”, um jornal que tinha a interessante particularidade de ter uma edição ao final da tarde de domingo, que trazia os resultados das partidas. Estas tinham lugar, impreterivelmente, às três da tarde de domingo. A variedade de dias e de horas, por que, nos dias de hoje, se distribuem as jornadas futebolísticas, foi o resultado de uma deriva progressiva, muito motivada pelas transmissões televisivas.

Quem andava nessa altura pelo Porto tinha, nos domingos, a opção, mais barata, de ir saber os resultados “da bola” (como então se dizia muito) junto à porta de “O Comércio do Porto”, nos Aliados, onde, num papel afixado, estava quantificada toda a jornada, logo depois das cinco da tarde. Muitos ficavam por ali em grupo, a comentar.

Outros acabavam por descer para a Praça, esperando, junto ao Imperial, pela edição da “folha” de Alves Teixeira, que por ali chegava um pouco depois das seis, com a tinta ainda por secar, sujando as mãos dos leitores. O jornal, que nem era caro, lia-se num ápice, porque era pouco dado às “literatices” dos colegas de Lisboa.

Eram muito curiosos os relatos ali escritos sobre os jogos principais. Ao ler essas crónicas, notava-se que eram feitas pela cumulação sequencial de textos ditados pelo telefone, todos os cinco minutos, que iam sendo de imediato compostos pelos tipógrafos, para não atrasar a saída do jornal. Às vezes, as coisas acabavam por não “rimar” umas com as outras, o que tornava as crónicas algo divertidas.

Durante anos, Alves Teixeira tinha um mote regular: apelar ao regresso ao Porto de Yustrich, um disciplinador treinador brasileiro, que tinha dado algumas alegrias ao clube das Antas. Esses tinham sido também os tempos de Jaburu, um excelente jogador, também brasileiro, em quem se dizia que Yustrich batia. Era uma coisa quase certa: sempre que as cores azuis entravam em declínio num campeonato, o que então era vulgar, lá vinha ele com a ideia do retorno do treinador.

Um dia, Yustrich acabou mesmo por vir. E foi um fracasso. 

Dificilmente se é feliz duas vezes no mesmo sítio.

quinta-feira, janeiro 16, 2020

Notícias da bola


Por alguma razão, o meu nome vai surgir, nas horas mais próximas, associado por aí ao mundo do futebol, como alguns irão notar. É a vida, como dizia o outro!

Aproveitemos então o ensejo, com toda a tranquilidade, para exercitar um pouco a memória.

Gosto muito de futebol, desde que me conheço. O meu pai levava-me, em miúdo, ao campo do Calvário, onde o Sport Clube de Vila Real - o clube mais antigo de Trás-os-Montes, que, daqui a pouco, festejará o seu centenário - disputava então, em regra, a segunda divisão, antes do destino o ter feito cair, inexoravelmente, para a terceira e depois para os distritais. (Ficou famosa, por ali, uma frase lançada um dia por um adepto, muito entusiasmado mas pouco realista, quando, a dez minutos do fim de um jogo, até então teimosamente empatado, a nossa equipa marcou finalmente um golo: “Vamos à dúzia!”)

Na minha infância e juventude, as vitórias do “Sport Clube” (como se dizia em minha casa) animavam a cidade, em especial se fossem sobre o Chaves, à época o seu grande rival. Qualquer feito notório do clube era festejado com receção no Alto de Espinho, o ponto mais elevado da estrada que liga Vila Real a Amarante. Autoridades e “forças vivas” iam receber os jogadores e diretores, imagino que com cerimónia posterior nos “paços do concelho”, com direito a discursatas gongóricas.

Na cidade, os adeptos do Benfica eram dominantes. Depois, vinha o Sporting, com o Porto então num distante terceiro lugar, em matéria de fãs. Esses eram os dias em que a liderança no futebol português se decidia no “derby” de Lisboa. “A Bola” e o “Record” dominavam em vendas, com “O Norte Desportivo”, do infatigável Alves Teixeira, a defender as então muito minoritárias cores das Antas. O meu pai “levou-me” cedo para o Sporting e por aí fiquei, sempre com imenso gosto e orgulho, por muito que a posterior carreira do clube pudesse apontar noutro sentido.

Fui sempre um medíocre praticante de futebol, desde a escola primária. Tinha a “mania” que era defesa lateral direito, mas algumas experiências, ainda em Vila Real e, mais tarde, quando estudava no Porto, fizeram-me constatar a minha inabilidade. Outras jogatainas, já na tropa, confirmaram essa minha perceção. Terminei cedo a minha “carreira”...

Continuo a gostar imenso de ver futebol, um espetáculo desportivo que acho sem par. Sou, contudo, um feroz adepto de sofá, raramente de bancada. Porém, sempre que ponho em causa a minha comodidade e decido ir a um estádio, apanho um banho de alegria e de vida. Ainda estive no velho Wembley, no Parc des Princes e em algumas outras “catedrais”, mas nunca me perdoarei por ter perdido o Maracanã. Admito que é na televisão que se consegue “ler” melhor um jogo, mas não há nada melhor do que entrar no ambiente de um estádio cheio, para sentir o verdadeiro futebol!

Nos dias de hoje, o meu Sport Clube de Vila Real já não joga no campo do Calvário (na imagem, o pórtico de entrada, desenhado por um tio meu). Por muito tempo, os meus pais viviam num andar que dava sobre esse campo de futebol. De uma ampla varanda, era possível ver quase 90% (ia a escrever “do relvado”, mas era um campo pelado!) do terreno. Um dia, já há muitos anos, estando de visita a Vila Real, ia haver por ali um qualquer jogo, creio que de juniores. Ao ver sair com pompa, do balneário, a equipa de arbitragem, dei-me conta de que o árbitro era meu amigo de infância, uma pessoa que, desde sempre, ia encontrando pelas ruas da cidade. Ele olhou para a varanda, viu-me e acenámos um para o outro. Foi um mar de olhos virados para cima, para tentar perceber quem é que o “senhor árbitro” (como o jogo ainda não tinha começado, ainda era tratado com esse respeito...) estava a saudar! 

São assim as cidades pequenas, que nos trazem grandes memórias.

quarta-feira, janeiro 15, 2020

O dilema de Rio


Terá desaparecido a possibilidade de haver maiorias absolutas de um só partido no sistema político português? O futuro ao eleitor pertence mas, no plano das probabilidades, tudo assim o indica. A atomização vigente no parlamento, sendo sintoma da existência de cada vez mais votantes que se não se sentem representados pelas duas principais forças do sistema tradicional, não obsta a que estas tenham de continuar a ser as âncoras de qualquer solução, mais ou menos duradoura, de estabilidade.

O desafio para cada um desses dois partidos, em termos de apoio parlamentar potencial, mudou muito, contudo, nos últimos anos.

Os socialistas tiveram a histórica ousadia de derrubar o muro, que parecia eterno, à sua esquerda, tendo governado uma legislatura completa com o suporte parlamentar de duas forças que, no juízo definitivo de muita gente, estavam para sempre excluídas do “arco da governação” em democracia. Esses partidos não integraram o executivo, mas puderam reivindicar o resultado de algumas das suas políticas, o que os aproximou dos corredores do poder, aos olhos exteriores e na sua própria perceção. As últimas eleições revelaram que o PS terá sido o mais beneficiado com o “negócio”, razão pela qual parte dessa “esquerda da esquerda” o não quis renovar formalmente. Os socialistas, para recuperarem uma imagem mais “centrista”, não insistiram num novo entendimento formal, esperando que esses seus antigos parceiros acabem, no fim de contas, por preferi-los no governo a vê-los substituídos por forças mais à direita. Mas não é de excluir, em absoluto, que o juízo sobre as vantagens de desencadear uma crise política, provocando eleições antecipadas, possa um dia vir a ser diferente no PS e nos seus antigos aliados.

Para o PSD a questão que se coloca é a do tipo de coligações que lhe permitam o retorno ao espaço do poder. O espetro de opções à sua direita sofreu uma grande alteração, com a simultânea anulação da importância do mais moderado CDS e a emergência do mais radical Chega, o qual, tal como a Iniciativa Liberal, foi “pescar” votos ao seu eleitorado tradicional ou a um novo eleitorado que, normalmente, acabaria por se abster, votar CDS ou apoiá-lo. Qualquer aliança com esse setor dará ao PSD uma imagem clara de “viragem à direita”, precisamente num tempo em que Rui Rio anuncia o seu desejo de levar o partido mais para o centro político. Assim, ou Rui Rio se desdiz e perde a face ou se entrega a um “namoro” ao PS. A alternativa é ficar sozinho na praça.

Líbia


1976. Na longa estrada de Misrata para Tripoli, o carro em que eu seguia era conduzido por um engenheiro líbio, formado no Reino Unido. Havíamos feito um desvio para visitar as magníficas ruínas de Leptis Magna (na imagem), a majestosa cidade de colonização romana, situada a mais de uma centena de quilómetros da capital líbia. 

Íamos os dois sós. Os restantes membros da nossa delegação seguiam em outros carros. Falámos bastante, da vida e do mundo, com ele sempre a mostrar-se orgulhoso do seu país e das suas realizações. Não tinha um discurso apologético àcerca de Kadafhi, mas não se lhe notava qualquer pendor para a dissidência. À passagem pela cidade de Homs (homónima da da Síria, da mesma forma que há outra Tripoli no Líbano), a densidade de cartazes e "outdoors" com a face do líder líbio, legendados em árabe, tornava-se muito evidente. Ousei então perguntar: "Kadafhi é mesmo popular? As pessoas gostam dele?".

O meu interlocutor, cujo nome devo ter ainda em alguma parte, mas de quem nunca mais tive notícias, ficou silencioso por alguns instantes, olhando a estrada. Depois, retorquiu:

- Se gostam de Kadafhi? Gostam de quem lhes dá casas, como Kadafhi lhes dá. Gostam de quem lhes dá escolas para os filhos, como Kadafhi lhes dá. Gostam dos novos hospitais, que Kadafhi está a construir, bem como destas estradas, que antes não tínhamos. Já andou de avião dentro da Líbia, não andou? Os pobres agora viajam de avião.

De facto, as minhas duas ou três experiências nas linhas internas da Libyan Airlines tinham-me mostrado que os aviões estavam transformados numa espécie de autocarros de província, com imensos beduínos, transportando mesmo gaiolas com galinhas! Os preços deviam ser muito acessíveis.

Começava a chegar à conclusão de que o meu condutor, homem com mundo e um excelente inglês, era, afinal, um fiel apoiante do coronel Kadafhi.

- Kadafhi dá muita coisa ao povo. Paga tudo com o petróleo e há muita gente contente com ele. Você já leu o "Livro Verde"? 

Fiquei num certo embaraço. De facto, havia passado os olhos por aquela "obra", escrita num estilo delirante, de quem tinha "descoberto a pólvora" política, desenhando uma terceira via entre o comunismo e o capitalismo. Kadafhi era uma espécie de "genérico" de Nasser: abolira uma monarquia corrupta, afastara os americanos da base americana de Wheelus (por esses dias, eu estava alojado no "Beach Hotel", ao lado da antiga base, antes frequentado quase exclusivamente pelos militares dos EUA) e julgava-se fadado a ser um federador do mundo árabe. Mas estava muito longe da dimensão histórica do líder egípcio. O "Livro Verde" havia aparecido em Portugal pela mão de um jornalista já desaparecido, Cartaxo e Trindade, que cheguei a encontrar, numa outra ocasião, em Tripoli.

Sobre o "Livro Verde", eu não sabia o que dizer ao meu interlocutor. Não queria hostilizá-lo, nem parecer complacente. Devo ter dito uma coisas "redondas" sobre a "originalidade" das ideias expressas no livro. Mas também não era preciso, como verifiquei pelo que ele me disse a seguir, sempre olhando a estrada em frente:

- Kadafhi é um fanático que se acha mais inteligente que todos os outros. O povo líbio não tem grandes queixas materiais, mas não tem, nem percebe que não tem, uma coisa importante que vocês agora já têm: a liberdade. Mas se "eles" sonhassem que lhe estava a dizer isto, eu seria preso.

Calou-se. Percebi que tinha ido tão longe quanto lhe era possível. Talvez mais longe do que a prudência aconselhava. A viagem continuou, connosco em longos minutos em silêncio. Voltei a encontrar esse engenheiro líbio em algumas reuniões técnicas posteriores. Todas já há muitos anos. Nunca mais regressámos ao registo daquela nossa conversa entre Misrata e Tripoli. Que lhe terá acontecido?

terça-feira, janeiro 14, 2020

Lóbi


Estávamos na Zâmbia, a meio de uma longa viagem governamental por vários países africanos. Não faço ideia a quem, naquele caso, competia a responsabilidade pelas reservas, mas a verdade é que, chegados bastante cedo ao Hotel Intercontinental de Lusaka, idos de Harare, naquele final dos anos 80, nos demos conta de que faltavam dois quartos para a delegação portuguesa.

Arrumados os membros da delegação mais afortunados, eu e o Duarte Ivo Cruz, que ali representava a AIP (Associação Industrial Portuguesa) constatámos que, para nós, não havia quartos. Ou melhor: havia uma vaga promessa de poderem "aparecer". Para utilizar uma expressão que o então jovem chefe da delegação portuguesa viria, décadas depois, a tornar popular noutro contexto, nós podíamos dizer que sabíamos que íamos ter um quarto, só não sabíamos é quando.

A visita oficial comportava, entretanto, alguns "números", entre os quais uma visita ao presidente Kenneth Kaunda, bem como reuniões e uma multiplicidade de contactos. Intercalando tais eventos, fazíamos passagens pelo hotel onde a delegação se acolhia. Mas não toda a delegação, não! A maioria da delegação! Porque eu e o Duarte continuávamos com as nossas malas recolhidas em quartos alheios e, nesses intervalos, contactávamos, com progressivo desespero, a receção ou a direção do hotel, metíamos "cunhas" através de empresários locais e da nossa embaixada, sempre em diligências cada vez mais ansiosas, porque a noite se ia aproximando. E, perante o olhar descansado (e demasiado sorridente, parecia-nos) dos nossos colegas, que se regalavam com bebidas no bar e conversavam entre si relaxados, nós os dois andávamos, de um lado para o outro, labutando verbalmente por uma cama onde descansar a noite.

O jantar oficial nem nos caiu bem, porque, acabado este, lá voltámos nós, ansiosos, ao lóbi do hotel. E seria já depois das 11 da noite que, já numa taquicardia angustiada, finalmente, recebemos as chaves dos nossos quartos, para logo constatarmos, com forte choque, que deles haviam sido literalmente "despejadas" minutos antes duas famílias africanas, com filhos, que foram dormir sabe-se lá para onde. Mas, àquela hora da noite, devo confessar que o nosso limiar de solidariedade Norte-Sul estava já ultrapassado pela lei da sobrevivência.

Foi nessa altura, culminadas que haviam sido com as dezenas de diligências feitas, junto de imensos interlocutores, que o Duarte Ivo Cruz, que comigo brindava o mútuo "sucesso" com um merecido whisky, se saiu com uma frase que recordo até hoje: "Só agora percebi, verdadeiramente, por que razão a esta área dos hotéis se chama "lóbi". Foi isso mesmo que nós os dois andámos o dia inteiro a fazer..."

Um abraço de Bom Ano para si, caro Duarte!

segunda-feira, janeiro 13, 2020

Viva o ar condicionado!


Acabo de ler que, no Rio de Janeiro, a sensação de calor foi superior a 50 graus. E recordei uma tarde, de 2006 ou 2007, em que, por ali, de fato e gravata, tive a imprudência, no centro da cidade (o conceito de “centro da cidade”, no Rio, é um pouco estranho: o centro é geograficamente ”de lado”), de dizer ao motorista que queria visitar dois ou três “sebos” (nome brasileiro para alfarrabistas), que trazia em agenda, e que me aparecesse apenas uma hora depois.

Estava imensamente adiantado face ao momento de uma palestra que devia proferir na Associação Brasileira de Imprensa, pelo que achei que escarafunchar em prateleiras de livros antigos seria a coisa certa a fazer para ocupar o tempo. O motorista tinha-me ido buscar ao aeroporto, tendo eu sido iludido pela temperatura interior do carro. Mal saltei para fora e o vi partir, comecei a ser invadido por uma sensação de calor como nunca tinha sentido. E ali estava eu, engravatado e vestido de fato claro, no meio daquele inferno.

O primeiro “sebo” (e depois o segundo e o terceiro) não tinha ar condicionado, apenas uma ventoínha apontada à figura física dos vendedores. Era um bafo quente e húmido que se fazia sentir e me começou a invadir. Comecei a ficar progressivamente encharcado, com o suor a transferir-se para o casaco. Tirei-o, até porque as manchas de humidade já se viam do exterior, coloquei-o às costas, o que, por sua vez, passou a incomodar-me a pesquisa livresca. Dei por mim a maldizer-me da “brilhante” ideia que tivera, de ir aos sebos numa semelhante tarde.

Por um azar monumental, não tinha tomado nota do “celular” do motorista, que, com inveja, logo imaginei refastelado num qualquer “boteco”, com um geladinho “chope” à ilharga. Assim, não o podia chamar de volta, para me resgatar da insensata jornada em que me tinha metido.

O lenço com que procurava secar a cara e o pescoço assemelhava-se a uma trouxa húmida. No saltitar entre os “sebos”, ainda tentei vislumbrar um café ou um bar que tivesse as portas fechadas para a rua, onde pudesse beneficiar do frio artificial, que estava a ser minha ideia conjuntural de felicidade. Mas eram tudo coisas tropicais, ao ar livre, se bem que à sombra, com pouca gente, porque os “cariocas” sabiam como evitar uma imprudência como a minha. E, os que o faziam, andavam com escassa roupa, de bermudas e alpargatas. Só eu, feito parvo, vestido “de embaixador” (a gravata, claro, estava já num bolso), por ali me permitia andar, sob os seus olhares curiosos, fixados naquele cidadão que vestia um traje insólito para o tempo que fazia. Ainda parei num desses lugares, bebi uma cerveja, mas isso só me fez acelerar o débito de suor. Estava inapresentável!

A hora de espera do motorista demorou horas a passar. Quando, finalmente, o vi surgir, entrei disparado no carro, passei para o banco de trás, pedi-lhe para pôr o ar condicionado no máximo e, dizendo-lhe para “não estranhar”, tirei a camisa encharcada, pendurei-a nas costas do banco em frente e devo ter dado algum “espetáculo” aos (felizmente anónimos) passantes: o embaixador de Portugal no Brasil, em tronco nu, passeando-se de carro pelas ruas do Rio. Uma fotografia na imprensa portuguesa, tirada por algum turista, teria sido um gozo nacional!

Arriscando uma pneumonia, fui-me assim secando, por largos minutos, conduzido pelas ruas do Rio, até chegar a hora da cena na ABI, onde entrei com um aspeto de que guardo algures uma fotografia da cerimónia, comigo desgrenhado, com ar de quem saía de uma indizível e bizarra experiência.

Há dias assim, que se há-de fazer! Viva o ar condicionado!

domingo, janeiro 12, 2020

Royals

Há muito de gosto pelas “soap operas”, misturado com a curiosidade saloia com vida das Kardashians, no modo como se vê discutir por aí o novo “o príncipe e a americana”. O facto da “piquena” ser etnicamente diferente do resto de Buckingham dá ainda um toque modernaço ao “remake”.

Rádio

Fico furioso comigo mesmo: constato que só ouço rádio no carro. E, as mais das vezes, ouvir rádio é excelente. “Vamelaver”, como diz o nosso PM, se consigo ouvir mais rádio em 2020.

Primeira dama

Tenho uma embirração antiga com o conceito de “primeira dama”. Para além do pretensiosismo do termo, fico sempre com uma dúvida: há por ali sempre uma segunda dama?

Direitas

Os novos partidos de direita radical, surgidos nas últimas eleições, foram a pior notícia que a direita tradicional podia ter. Retiram-lhe votos que, à partida, seriam dela, potenciam uma competição que é sempre desgastante e fragmentam esse campo político.

Rua

Para fazer esquecer que o PCP se absteve no orçamento, nada melhor do que dar luz verde para que a central sindical que controla inicie um novo ciclo de greves. A política portuguesa, de tão previsível, quase que perde a graça.

Belém

Mais do que o facto de Cristina Ferreira ter aventado a possibilidade de, um dia, poder vir a concorrer à Presidência da República, assusta-me que o país discuta o assunto como se essa eleição fosse possível. Porque, como isto anda e promete andar, talvez fosse mesmo.

Racismo?

Essa agora! Será que ninguém pode criticar, mesmo com severidade, o comportamento da deputada Joacine Katar Moreira, na Assembleia da República, sem arriscar ser crismado de racista? Ou anti-feminista? Está tudo doido, é?

Bola

É ”nesta fase do campeonato” que os árbitros de futebol começam a pensar no futuro das suas carreiras. E, claro, os que se lixam sempre são os mexilhões do costume.

Gorjeta patriótica



Foi há mais de 15 anos, em Khujand, bem no norte do Tajiquistão. Não havia elevadores naquele modesto hotel, ainda tributário da era soviética. Era, no entanto, o melhor da cidade.

Eu chegara, como sempre (nunca aprendi a viajar "light"), com uma pesada mala. Quando me disseram que tinha de subir dois andares a pé, cansado como estava, depois de uma viagem longa e de um dia de trabalho relativamente intenso, "passei-me" e reclamei. 

A rececionista, com pinta de "aparatchik" da era antiga, num país onde as coisas não tinham mudado assim tanto, confrontada com o meu mal-estar, sem me dar grande confiança, disse-me para eu ir indo para o quarto, que a mala lá iria ter. 

Passados largos e irritantes minutos, bateram-me à porta. Ofegante, um homem, cuja idade tinha ultrapassado há muito os 80 anos, apresentou-se com a minha mala. 

Senti-me incomodado. Então aquele senhor idoso tinha subido as escadas, com mais de 20 quilos na mão, para evitar o meu esforço? Para além de articular vários "spasiba", entendi dever dar-lhe uma boa gorjeta, que pudesse compensar o meu complexo de culpabilidade. 

O homem mirou a nota de cinco dólares, revirou-a bem não fosse estar a ver mal e saiu, às vénias, desta vez sendo ele quem se desfez em coisas que entendi como profundos agradecimentos. 

Sabia que a gorjeta tinha sido boa, mas não tinha ideia do que ela significava, à escala local. Quando, ao jantar, contei o episódio a um diplomata holandês que vivia no país, revelando-lhe o montante da gorjeta, o comentário foi, para mim, surpreendente: "Em moeda local, o que você lhe deu deve representar mais de metade da reforma mensal do homem!"

Na manhã seguinte, ao sair do quarto, deparei com o idoso, especado em frente à porta, já preparado para transportar de novo a minha mala. Deduzi que devia estar por ali já há algum tempo. 

Com um imenso sorriso, num tom levemente interrogativo, como que a confirmar apenas o que já sabia, disse-me: "Portugaliya!?" Confirmei e lá descemos as escadas, ele ajoujado com a minha mala, comigo ao lado, descansado, apenas com uma pequena saca de pano ao ombro.

À chegada ao lóbi, recordo, como se fosse hoje, o olhar reprovador e prenhe de "righteousness" das minhas colegas de viagem, embaixadoras da Noruega e do Canadá, que condenavam, num silêncio grave, a minha atitude de vil e eurocêntrica exploração da terceira idade tajique. Como poderia explicar-lhes que estava a fazer um "favor" ao homem? Como reagiriam se lhes falasse dos cinco dólares da véspera?

À entrada para a carrinha, ainda hesitei: como a tarefa da manhã tinha sido "a descer", devia dar uma gorjeta inferior à da véspera? Mas, esmagado pela culpa, logo me decidi: voltei a dar ao homem outra nota de cinco dólares. 

Sorriram-lhes os olhos e despediu-se com um forte e efusivo cumprimento de mão, sempre repetindo, enfático: "Portugaliya! Portugaliya!".

Por 10 dólares, a imagem do nosso país subiu, nesse dia, aos píncaros, nessa remota e pequena cidade da Ásia Central.

sábado, janeiro 11, 2020

PSD

Quem quer que ganhe no PSD, ficará sempre com mais de um terço do partido a jurar vingança e a intrigar no futuro. Além disso, a sombra que a já aguardada impugnação do ato eleitoral vai criar, ofuscará o brilho do vitorioso, em especial for Rio.

Quem se lembra de William Gilman?



Há dias, numa conversa com António Borga, um nome que os portugueses conheceram na televisão, veio à baila o nome de William Gilman, que ele conhecera em Londres, ao tempo que trabalhou no serviço português da BBC.

Aqueles que têm tempo de vida para usufruirem de alguma memória deverão recordar-se de uma voz, com um português com óbvio sotaque britânico, que, de Londres, por alguns anos, nos trazia as notícias da RDP.

Antes, Gilman, tinha trabalhado para o “Record” e foi correspondente da Anop, antecessora da Lusa. Escreveu também para o semanário “País” e, creio, terminou a sua relação jornalística com Portugal como correspondente do “Diário de Notícias”, em 1996. O Estado português condecorou-o em 1993.

Gilman tinha nascido em Portugal, em 1917, filho de um homem dos serviços de “intelligence” britânicos, colocado na respetiva embaixada, e de uma cidadã portuguesa. 

“Gilly”, como era conhecido pelos amigos, era uma figura suave, com um agradável sorriso, casado com Joan, que, curiosamente, muitas vezes o acompanhava nas suas atividades profissionais. Era filha de um jornalista britânico, H. G. Greenwall, autor de um livro sobre Portugal, “Our Oldest Ally”. 

Conheci William Gilman em Londres, ainda nos anos 80 e, mais tarde, quando fui viver para o Reino Unido, tornámo-nos amigos do casal. Estivémos por mais de uma vez na sua casa em Epson, no Surrey, e comemorámos com ambos e os seus amigos o seu meio século de casamento, num clube de golfe, para o qual ele me fez convite para ser sócio. O clube era de muito difícil admissão, ele tinha conseguido uma exceção para mim e, até hoje, tenho esperança de que a minha recusa em corresponder ao seu gesto tenha sido feita com uma gentileza à altura do mesmo. É que eu nem cartas jogo...

William Gilman (na imagem, à direita, tendo à esquerda Fernando de Sousa e ao centro Gilberto Ferraz) morreu em 2001, com 83 anos. Joan sobreviveu-lhe por escassos anos.

Cooperação e política externa


Proferi na quarta-feira, dia 8 de janeiro, na abertura do Seminário anual do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, a convite do respetivo presidente, uma intervenção sobre a cooperação para o desenvolvimento em face dos desafios da política externa portuguesa. O texto pode ser lido aqui

sexta-feira, janeiro 10, 2020

"Evasões"


A revista "Evasões" publica hoje o seu nº 250.

Trata-se de uma revista semanal com uma excelente qualidade de escrita e imagem, distribuída gratuitamente com o "Jornal de Notícias", à sexta-feira, e vendida separadamente nos restantes dias, por um preço extremamente acessível.

Sou um fã da "Evasões", confesso. Em especial, por nela escrever Fernando Melo, um dos mais sabedores críticos gastronómicos da nossa praça, cujas recomendações, de restaurantes e vinhos, nunca frustraram as minhas expetativas. Mas a "Evasões" tem-me ajudado a descobrir muito mais, nas minhas peregrinações pelo país.

Por alguns anos, eu próprio escrevi na "Evasões" uma modesta crónica de "gastrófilo". Depois, um dia, pedi escusa à minha "chefe", Catarina Carvalho, responsável pela revista, e saí discretamente de cena. O tempo não me chegava para tudo. Hoje sou apenas um leitor da "Evasões". Mas atento!

Um abraço de parabéns à equipa da "Evasões"!

Trump


Era uma vez, no Irão...

Agora que o Irão regressou aos títulos, recupero aqui uma pequena história diplomática.

Em junho de 2000, durante a presidência portuguesa da União Europeia, coube-me chefiar uma missão de “diálogo político” a Teerão. Da “troika” (já as havia…) que me acompanhava, faziam parte um diretor do Quai d’Orsay (a França iria suceder-nos na presidência, dias depois) e um representante da Comissão Europeia. A delegação iraniana era chefiada por um vice-ministro dos Negócios Estrangeiros.

Sabia-se que o diálogo com as autoridades do Irão ia ser difícil. Cabia-me colocar-lhes todas as questões que a União Europeia via como polémicas, desde os direitos humanos à observância de princípios democráticos. Temas como a perseguição de opositores e os presos políticos, bem como o do tratamento de minorias e dos estrangeiros, estavam na nossa lista. Eles tinham os seus próprios agravos.

Num certo ponto da agenda, o vice-ministro iraniano acusou um Estado membro da União Europeia, que não identificou, de estar a levar a cabo “atos de espionagem”, em articulação com inimigos do país, contra a segurança do Estado iraniano. Interrompi-o e pedi-lhe para identificar o Estado em causa, dada a gravidade da acusação. Disse-me que não o faria, “para não piorar ainda mais as coisas”. Na ata, deveria ficar a acusação, nos termos genéricos em que a formulara.

Reagi: ou ele identificava o nome do país, também para efeitos da ata da sessão, ou retirava a acusação. O “diálogo político” não podia prosseguir sem uma dessas opções. Sugeri que o intervalo da reunião, que estava previsto para mais tarde, tivesse lugar de imediato.

O ambiente, naquela sala do ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, toldou-se. A delegação iraniana saiu da sala de cara fechada. Os membros da “troika” perguntavam-me se tinha medido bem o risco de dramatização que estava a fazer. Eu disse que sim, mas, interiormente, interrogava-me se o meu “bluff” iria resultar (porque era disso mesmo que se tratava).

Minutos depois, o chefe da delegação iraniana reabriu a sessão dizendo que, com vista “a facilitar os trabalhos”, propunha que, da ata, não constassem as referências que antes tinha feito sobre o “tal” Estado membro europeu.

Desde o início, todos sabíamos que a acusação iraniana se dirigia ao Reino Unido, país com o qual, de há muito, Teerão tem um particular contencioso. Ora, o vice-ministro iraniano, meu contraparte na chefia das negociações, havia-me revelado, em conversa antes da reunião, que, no final desse ano de 2000, deveria ir para Londres como embaixador (o que realmente veio a acontecer).

Ao exigir a revelação do nome do país, eu tinha tido isso em conta. Se acaso ele mencionasse o nome do Reino Unido, e ficasse na ata ter sido ele quem lançara essa atoarda não provada, o governo de Londres nunca lhe daria “agrément”.

A vida diplomática também se faz com alguns truques.

quinta-feira, janeiro 09, 2020

Não vale tudo


O presidente dos Estados Unidos da América ordenou a liquidação física, em território do Iraque, de um chefe militar do Irão. 

Os EUA não estão em guerra declarada com o Irão, embora seja evidente, desde há muito, a sua hostilidade para com o seu regime. Se olharmos para trás, verificaremos que o derrube do líder iraniano que Washington tinha como seu aliado fiel, o Xá Reza Pahlevi, em 1979, iniciou um período de ininterrupta tensão entre os dois países. A invasão da embaixada americana em Teerão, nesse mesmo ano, por entidades iranianas dependentes das respetivas autoridades, espoletou naturalmente essa tensão, que nunca mais se desvaneceu e atravessou, em maior ou menor grau, todas as posteriores administrações americanas. Os EUA, a partir de então, passaram a apoiar quem se opusesse ao Irão, como foi o caso do Iraque, na devastadora guerra entre os dois países (1980/88). 

Os evidentes e reiterados esforços do Irão para obterem a arma nuclear mereceram sempre uma forte rejeição da comunidade internacional, em especial dos EUA, do mundo ocidental em geral e dos adversários regionais de Teerão. Dentre estes, Israel (que possui armas nucleares, sem se submeter ao controlo da AIEA) é aquele que, reagindo às constantes ameaças do Irão face à sua existência como país, anunciou já poder vir a atacar as instalações nucleares iranianas, se a construção dessa bomba estiver prestes a concretizar-se (Israel fez isso contra o Iraque, pelos mesmos motivos, em 1981). Um grupo de importante de países ocidentais, incluindo os EUA (administração Obama), fez entretanto um acordo diplomático com o Irão, que previa um controlo vigiado do seu programa nuclear. Com Trump, os EUA afastaram-se desse acordo.

O Irão, não sendo um país árabe, é um Estado muçulmano que segue e promove o shiismo, uma das duas grandes obediências religiosas muçulmanas. A outra, o sunismo, tem como principal expoente a Arábia Saudita (mas também a Turquia ou a Irmandade Muçulmana do Egipto, embora com uma orientação divergente). Há países, porém, de que o Iraque é talvez o caso mais importante, onde o shiismo e o sunismo coexistem, com implicações no respetivo equilíbrio político interno, sendo o Irão regularmente acusado pelos seus adversários de promover núcleos shiitas em vários outros países, muitas vezes com fortes implicações político-militares, como acontece com o Hezzbolah, no Líbano, ou com as forças hutis, no Iémen. 

O proselitismo shiita do Irão, nas suas expressões agressivas, e a sua obsessão com a arma nuclear converteram o país num “trouble-maker” da sociedade internacional. Com um regime autoritário sob uma liderança religiosa de traços medievais, o Irão é um país que se sente acossado pela sua vizinhança, adotando com regularidade um discurso jingoísta que torna difícil a interlocução diplomática. Mais recentemente, porém, por um interesse próprio que se conjugou com outros esforços internacionais, as forças de Teerão desempenharam um papel não despiciendo na luta contra o Daesh.

Se quisermos ser honestos, teremos de reconhecer que os EUA, com a sua agressão unilateral contra o Iraque, em 2003, foram, a grande distância, os principais culpados da desregulação securitária que se vive na região do Médio Oriente. Se algumas fortes tensões já ali existiam, a invasão do Iraque, levada a cabo sob pretextos deliberadamente falsos, conduziu ao estilhaçar daquele país, com as consequências que se viram.

Ao atuarem violentamente como agora fizeram, sem o menor mandato internacional, executando uma ação de guerra, uma liquidação seletiva de um líder militar estrangeiro, à revelia das autoridades do país que os “convidou” para ajudarem à sua segurança nacional, os EUA colocam-se, com total desplante, à margem da ordem internacional, arrogando-se direitos que negam a todos os outros. Todas as razões que possam ter contra o Irão enfraquecem-se com este seu comportamento, convidando à retaliação e arriscando uma escalada. 

Os Estados de bem lutam por princípios, desde logo, seguindo-os. Essa deve ser a sua diferença.

quarta-feira, janeiro 08, 2020

As lições da General Motors


Se olharmos as relações externas de Portugal, nos últimos 70 anos, incluindo as últimas décadas da ditadura e o regime democrático, constataremos que há uma única prioridade que permaneceu inalterada na nossa agenda nacional: a importância da relação transatlântica. O empenhamento na NATO e a relevância atribuída aos EUA mantiveram-se na lista prioritária de todos os governos portugueses, mesmo os mais “esquerdistas”. Posso imaginar o “entusiasmo” com que o primeiro-ministro Vasco Gonçalves terá ido à cimeira da NATO, em 1975, mas, para o que interessa, esteve lá e, ao que consta, não fez nenhuma diatribe contra a organização. E isso não aconteceu por acaso.

A situação geopolítica do nosso país, onde a questão das Lajes teve sempre forte relevância, e, ainda antes, os imperativos ligados aos equilíbrios da Guerra Fria, fizeram com que a NATO e os EUA passassem a ser um pano de fundo constante na nossa ação externa. A ênfase desse vetor no discurso político pode ter variado com os ciclos de governo, mas o essencial nunca foi tocado.

Aquando da segunda Guerra do Golfo, em 2003, o executivo português de então levou o seu zelo seguidista a um extremo caricato, ao colar-se ao “amigo americano”, que anunciava um deliberado infringimento das regras internacionais. Lisboa usou então o mais enviesado dos argumentos: “ou estamos com os Estados Unidos ou estamos com o Iraque”. Como se uma agressão ilegal, que viria a ser fautora de centenas de milhares de mortos e de um caos regional sem precedentes, pudesse ser “absolvida” apenas porque o Estado que a praticava era um nosso amigo tradicional. 

Mais recentemente, sob a presidência de Donald Trump, os EUA vieram a revelar um inusitado desprezo pelos aliados, criaram tensões no seio da NATO, provocaram fortemente os seus parceiros europeus, desprezaram com arrogância o mundo multilateral. Romperam mesmo um tratado laboriosamente feito com o seu acordo, que prevenia as possibilidades do Irão aceder à arma nuclear, cedendo às pressões de Israel. E, para facilitar a agenda eleitoral de Trump, o governo americano coloca agora o Médio Oriente, de novo, às portas de um conflito aberto, que, no passado, já nos brindou com o Daesh.

Há uns anos, um ignoto secretário de Defesa americano consagrou uma frase para a História anedótica: “o que é bom para a General Motors, é bom para os Estados Unidos”. Hoje, não sem alguma tristeza, pergunto-me: o que é (considerado por Trump ser) bom para os Estados Unidos é necessariamente bom para os seus aliados?

segunda-feira, janeiro 06, 2020

EUA/Irão


No Jornal das Oito da TVI, a comentar a tensão entre os Estados Unidos e o Irão. Pode ver aqui.

A casa do tio Óscar



Tenho uma imensa pena pelo facto da minha capacidade de “desconstrução” das coisas ser muito limitada. 

Contrariamente a uma amiga que, ao provar qualquer prato, consegue, no instante, identificar os componentes e condimentos utilizados na sua feitura, assumo-me como um perfeito “nabo” nesse domínio. O mesmo acontece nos vinhos, onde raramente sou dotado para conseguir notar os aromas e sabores que, com aparente facilidade, os enólogos ali descobrem, comigo numa inveja real face à riqueza daquele léxico específico, que tão bem arredonda as conversas numa mesa.

Mas o meu maior lamento, devo confessar, prende-se com os cheiros das casas. Trago na minha memória olfativa alguns odores que me remetem para locais quase sempre antigos, desde casas de infância a cenas da vida, espalhadas ao longo de décadas. Sou mesmo um inveterado colecionador desses marcantes aromas domésticos.

Hoje, ao entrar para o almoço num clube lisboeta de que sou sócio, neste caso o “Círculo Eça de Queiroz”, dei comigo a reconhecer por ali o cheiro da casa do meu tio Óscar, um militar que sempre vi na reserva e que já se foi desta vida há muito. Era casado com a tia Maria, irmã da minha avó materna, e foi uma das referências das minhas lembranças afetivas, de uma infância que guardei como feliz.

A casa deles era no Porto, na Ramada Alta, num primeiro andar com uma bela vista para a Boavista (se isto não for pleonasmo), que dali se via amplamente, de uma varanda traseira. Tinha um mobiliário clássico, com muitas madeiras e livros, tudo aquilo resultando num saudável conforto burguês, num sereno e pacífico ambiente. E, a envolvê-lo, havia um cheiro muito próprio, que me ficou para sempre.

Cheirava a quê? Sei lá! Talvez a cera, talvez a madeira, talvez a algumas plantas. Não sou, em definitivo, dotado de poderes de “desconstrução”, mas também não me parece que Jacques Derrida estivesse precisamente a pensar nos cheiros, quando acabou por consagrar cientificamente o conceito. 

A única coisa que sei é que o Círculo Eça de Queiroz, ao final desta bela manhã de janeiro, onde quase por acaso me deu para vir almoçar, após uma movimentada manhã de trabalho em três locais bem distintos de Lisboa, tinha hoje o mesmo cheiro da casa do meu tio Óscar. E isto é um elogio para o meu clube, note-se.

Vaticanologia


Nunca tive grande interesse pelas cenas da vida do Vaticano, pelas suas intrigas e, muito particularmente, pelas confabulações sobre o processo de seleção dos papas. Como ateu, não acreditando, naturalmente, na ideia da intervenção divina a influenciar o sentido do voto cardinalício, olho sempre a escolha de cada chefe de Estado da Santa Sé como uma cuidadosa e ponderada decisão, feita pelo serralho dessa instituição espiritual multinacional, com vista a encontrar o homem mais adequado para ir prolongando, com eficácia, o respetivo sistema. Umas vezes, a escolha vai num sentido, outras vezes noutro, de acordo com “l’air du temps”. Às vezes resulta, outras vezes não.

Escrevo isto com o maior respeito, não apenas pelo papel histórico da instituição, mas igualmente pelos seus fiéis, que se lhe entregam com toda a confiança e fidelidade. Os muitos erros que em nome da Igreja Católica têm sido praticados ao longo dos séculos não devem fazer esquecer - em especial, aos ateus, como eu sempre fui - o património de valores morais e sociais positivos que ela encerra e que formatam as consciências dos povos, muito para além dos seus crentes.

É neste contexto de assumida distância para com aquela realidade que não posso deixar de recomendar o filme “Os dois papas”, que ontem vi na Netflix, com imenso agrado. É uma obra que, sendo claramente apologética e que se pretende simpática para a instituição papal, nos traz uma curiosa versão (porque é de ficção que estamos a falar) da relação entre os dois últimos papas, ao mesmo tempo divertida, bem construída e magistralmente interpretada.

domingo, janeiro 05, 2020

Um grande artista

A enquadrar aquele museu num certo país europeu, situado fora da área urbana, havia um magnífico espaço verde. Sobre ele, espalhavam-se vários objetos artísticos, da mais diversa natureza. O museu, por essa altura, albergava, para além da sua coleção permanente, uma muito rara exposição de um conhecido pintor clássico.

Eu e um outro colega havíamos convencido uma personalidade com quem viajávamos, numa deslocação oficial, da importância de não perdermos a oportunidade de ver reunido o essencial da obra desse grande artista da segunda metade do século XIX. 

Louvando embora a ideia do "détour" que fazíamos, de carro, para visitar a exposição, a figura em causa tinha-nos explicado, ao longo do trejeto, que era muito mais dada à apreciação da arte contemporânea, aos novos modelos criativos, das instalações aos trabalhos em vídeo. 

Às nossas dúvidas e à confissão da dificuldade de, por vezes, sermos sensíveis a algumas dessas ousadas expressões artísticas, essa pessoa contrapunha o seu pensamento cheio de contemporaneidade, com um intenso e esmagante "name-dropping" de criadores. Ao ouvi-la, verificámos que estávamos perante assinalável especialista.

E caminhavamos já para o museu, idos do parque de estacionamento, comentando à distância uma óbvia escultura de Moore, quando eu fiz notar:

- Conhecem os trabalhos de Rooney Kindley? É uma canadiano que está a ter imenso sucesso. É pouco conhecido na Europa, embora já tenha coisas no MoMa. Aquela peça, ali adiante, parece-me dele, disse eu apontando para um modelo de contentor pintado num forte azul, pousado sobre uma plataforma.

- Nunca tinha ouvido falar nele, disse a nossa personalidade. Nas vanguardas alemãs, que conheço melhor, há muito quem se dedique à criação deste género de objetos, como reproduções criativas de elementos extraídos do quotidiano, trabalhando-os na cor e nas vertentes de espaço. Este, aliás, parece-me bastante interessante, pela ligação do equilíbrio volumétrico e dos tons impositivos, que, no seu conjunto, provocam um contraste curioso com a paisagem. Por isso, necessitam, como aqui se consegue, de ter um cenário bastante aberto para a obra poder "respirar", permitindo distâncias para múltiplos ângulos de visualização. Como é que você disse que se chama o artista?

Fiz um sorriso irónico e esclareci:

- Esqueça! É apenas um contentor. Inventei o resto...

Durante o resto da viagem, o nosso homem nunca mais me olhou direito.

Indignações.com

Recebo, com regularidade, mensagens indignadas de leitores, pelo facto de eu não abordar, em intervenções nas redes sociais, situações e temas que a eles os indignaram. No fundo, pede-se que eu partilhe, talvez para as amplificar, as suas indignações. 

Nas últimas horas, fui zurzido, em mensagens no Facebook e em comentários quase insultuosos para o blogue, pelo facto de me deter aqui em “episódios grotescos”, como alguém “ter garrafa” num bar, ou fazer notas gastronómicas e incluir fotografias de iluminações de Natal, passando ao lado do assassinato do general iraniano ordenado por Trump ou das agressões a profissionais de saúde.

Entendamo-nos: isto não é um órgão de comunicação social, é um espaço privado de escrita. Se, de momento, nada tenho a dizer sobre a criança maltratada nas urgências de um hospital privado ou sobre o cidadão cabo-verdeano assassinado em Bragança, isso não significa que não esteja indignado com esses factos. Apenas revela que não tenho nada de relevante a dizer sobre isso e não quero massacrar o leitores com platitudes adjetivadas. 

Escrevo para dizer aquilo que muito bem me apetece, como e quando me apetece. E vou mais longe: só por infeliz acaso o que escrevo coincidirá com os estados de alma de quem por aqui passa o tempo a indignar-se, com tudo e com todos.

sábado, janeiro 04, 2020

Júlio Castro Caldas


Morreu Júlio Castro Caldas, leio nas notícias. 

Já o não via há muito tempo e, em especial, havia notado a sua falta ao almoço em que, há uns tempos, juntei em minha casa aquilo a que chamo o “grupo dos nove e meia“ - essa tertúlia “do bem”, para refletir sobre país, que, sob o estímulo de Miguel Lobo Antunes, reuniu por vários anos, às nove e meia da manhã (não conheço outras tertúlias matutinas), na Culturgest, tendo publicado alguns textos coletivos, ainda consultáveis aqui. O Júlio foi um dos últimos membros a aderir ao grupo, mas a sua participação, num estilo que lhe era muito próprio, era sempre muito informada e animada. Na fotografia dos membros dessa tertúlia, Júlio Castro Caldas é o único que se vê de casaco.

Um dia, numa conferência de imprensa no fim de um Conselho Europeu, nos anos 90, um jornalista perguntou a António Guterres se já tinha nomes para uma remodelação do governo de que toda a gente falava. Guterres disse que nomes não faltavam, se quisesse fazer uma mudança e exibiu um pequeno retângulo de papel com coisas rabiscadas. Eu estava ao seu lado e, quando ele pousou o papel sobre a mesa, saltou-me à vista a sigla JCC. Quando nos íamos a levantar, ousei perguntar-lhe: “Está a pensar no Júlio Castro Caldas?”. Notei que Guterres ficou um tanto surpreendido, e talvez desagradado, com a minha “espionagem” e pouco adiantou. Eu tomei nota da sigla.

A remodelação acabou por ter lugar e Castro Caldas não entrou no governo. Passaram uns meses e, um dia, vi Júlio Castro Caldas assumir o ministério da Defesa, pelo que concluí afinal tinha razão. Foi já com o novo ministro que, tempos mais tarde, me desloquei, em substituição de Jaime Gama, a uma reunião ministerial da União da Europa Ocidental (UEO), creio que em Bruxelas, tendo estabelecido com ele uma excelente relação. Lembro-me, meses depois, de ter estado com o Júlio, a convite de António Guterres, num almoço restrito com Mikhail Gorbachev, em S. Bento. Depois de sair do governo, fui para o estrangeiro, perdemo-nos de vista e só nos voltaríamos a reencontrar nessa tertúlia da Culturgest.

Júlio Castro Caldas era uma figura muito cordial, que rapidamente tratava as pessoas por tu, como comigo sucedeu, desde o primeiro momento. Além de ser um advogado de primeira linha, era um homem que gostava da vida e dos amigos. Tinha sempre histórias magníficas, sabia de factos que ninguém mais sabia, era intenso e definitivo na apreciação das coisas do mundo e da vida. Vida e mundo de que agora se despediu.

Ter garrafa


”Quer a sua garrafa?” perguntou-me ontem o dono do restaurante, quando eu escolhia o que ia almoçar. “Tens garrafa aqui?”, inquiriu um amigo, na minha mesa.

Estávamos em Vila Real. A garrafa era de vinho. Era a metade que tinha ficado do meu almoço do dia anterior, também por ali. A pergunta do meu amigo, contudo, trazia água no bico, comportando uma ironia que se ligava a tempos noturnos antigos, que ele também partilhara, lá por Lisboa.

“Ter garrafa”, há muitos anos, era um estatuto, em alguns bares. As garrafas a que o conceito se referia eram de whisky. Os “habitués” ”tinham garrafa”, com o seu nome manuscrito no rótulo. Compravam-na ao próprio bar, a um preço bastante mais elevado do que o preço do mercado, mas, ainda assim, compensando face ao somatório de todas as doses individuais de uma garrafa.

Mas o importante, nesta história de “ter garrafa”, era o estatuto: “Ó Meireles, passa-me aí a garrafa do senhor engenheiro”, pedia o empregado das mesas ao Meireles ou a qualquer outro Meireles que estivesse por detrás do balcão. Isto era dito em voz bem alta, com o “senhor engenheiro”, cujo nome nem sequer necessitava de ser explicitado, a ser o alvo dos olhares circundantes. Por essa simples frase, ficava-se a perceber que o “senhor engenheiro” era um cliente regular da casa, porque só esses podiam “ter garrafa”. Nos “bares de piquenas”, a posse de uma garrafa dava um sainete das arábias.

No Procópio, o único bar onde “tive garrafa”, ainda no longínquo consulado do Juvenal, um dos mais históricos barmans de Lisboa e um bom amigo, a coreografia era bem mais discreta, nunca com vozes alteadas para a plateia. Verdade seja que o Procópio nunca foi um “bar de piquenas”, muito longe disso! No meu caso, era apenas uma maneira de poupar algum dinheiro, nesses tempos em que os meus trigliceridos não se ressentiam dos excessos. Mas, ao que me recordo, acabei por só ter por ali uma única garrafa, que rapidamente se foi...

Ontem, por coincidência, à saída do restaurante, calhou passar perto da casa onde viveu o “Antoninho do Talho”, um abastado industrial de Vila Real, com interesses que iam muito para além das carnes, mas que também as incluíam, bem como aos respetivos pecados. Na minha juventude, a sua imagem de “bon vivant” era prestigiada por um rumor nunca confirmado: “O Antoninho do Talho tem garrafa do Pasapoga!”, sendo este, ao tempo, o cabaret mais famoso de Madrid. É tarde para testar se isso tinha fundamento, se acaso o facto interessasse para alguma coisa, salvo para ilustrar esta historieta.

quinta-feira, janeiro 02, 2020

Dicionário

“Competividade” é um vocábulo que o bom senso (e o bom ouvido) recomenda que, no futuro, passe a integrar os dicionários, talvez em complemento da forma erudita “competitividade”, que caiu em desuso.

Carpe diem

A graça da vida diplomática é a sua incerteza. Para quem, como eu, acabou por ter 21 ministros dos Negócios Estrangeiros na sua carreira, viver em sete cidades estrangeiras, em diversos continentes, não pode assustar. O Brasil, uma das mais complexas - se bem que, aparentemente, simples - relações bilaterais de Portugal, saiu-me depois em rifa. Em boa hora! Aprendi, desde logo, que devia ser “obrigatório” para qualquer diplomata português ter um contacto com a realidade brasileira, para pôr fim a alguns mitos, diluir preconceitos e ajudar-nos a situar melhor no mundo. Quatro anos de Brasil, visitando 23 dos seus 27 Estados, fez-me perceber muitas coisas. A vida correu-me bem por lá, mas eu fiz bastante por isso.

Quando, quatro anos depois, aterrei em Paris, senti-me quase em casa. No final dos anos 60, eu chegara àquela cidade, saído à boleia de Lisboa, como um peregrino que chega a Meca. Depois, viciei-me e passei muitas mais vezes por lá. Regressar como embaixador seria, contudo, muito diferente, muito mais do que eu pensava. Claro que havia os restaurantes e as livrarias, mas as horas foram sempre muito contadas, nos anos em que, até à minha reforma, por ali fiquei. Trabalhei muito, assisti a tempos muito diversos, nem sempre bons, em especial para a imagem de Portugal no mundo. E, como em todo o lado, alimentei-me por ali da serenidades das noites, onde conversei imenso, li muito e, em especial, pensei.

Em 2013, tal como estava planeado desde há muito, regressei, definitivamente, a Portugal. Era a reforma? “Sort of”, como dizem os anglo-saxónicos. Não parei, desde então, um segundo. Houve empresas que quiseram passar a ouvir a minha opinião sobre as áreas internacionais dos seus negócios, universidades que me contrataram para dar aulas ou me convidaram para as aconselhar, jornais que me ofereceram colunas para eu escrever o que pensava. Fora dessa dimensão mais “séria”, que muito me agrada, divirto-me com o usufruto outros prazeres, como os livros, a escrita, a gastronomia e as viagens. Leio, leio muito, escrevo um blogue pela noite dentro, frequento tertúlias muito diversas. E, pelos dias, mas essencialmente pelas noites, estou com os amigos, com a família. Às vezes, perco alguns, dos bons, o que me deixa nostálgico, confesso. Mas tento olhar em frente, aproveitar, ao máximo, este país renovado, magnífico, sereno, que gargalha para as aves agoirentas, para os profissionais da inveja e do mal-dizer, que apetece irritar - e eu faço-o, com algum gosto. Uma terra que agora anda bastante mais feliz do que, ainda há pouco, parecia condenada a ser. Carpe diem! 

(Depoimento)

Potpourri


  • Todas as semanas surge um record! O Ronaldo tem os dele, o Messi também, o Pélé lembra outros. Cada um segue o critério que lhe dá mais jeito. E o Zé Povinho “embarca”.
  • Carlos Ghosn foi “exfiltrado” do Japão, por um “comando” privado, pago pela mulher. Há muita gente a exultar com o golpe. Tenho alguma dificuldade em me congratular com a fuga de alguém à justiça de um país democrático.
  • Andava distraído: não tinha dado conta de que este ano era bissexto. Vou planear com o maior cuidado o que fazer nesse dia a mais.
  • O facto do candidato preferido dos portugueses (comigo incluído) não ter ganho nas presidenciais da Guiné-Bissau não nos confere qualquer direito de ingerência nos seus assuntos internos.
  • Na Guiné-Bissau, o resultado nas urnas foi o que foi. Pudera: dizem que terá havido muitos mortos a votar...
  • Gostei tanto de ver aquela humana reação do papa!
  • Vale a pena olhar um pouco para além do caso que opõe Isabel dos Santos às autoridades angolanas. É muito interessante observar a profunda e algo surpreendente mudança política que hoje atravessa Angola.
  • Nunca tinha encontrado, ao vivo, um negacionista do aquecimento global. Não acabei 2019 sem me cruzar, numa conversa pessoal, com um. Foi uma experiência curiosa.

quarta-feira, janeiro 01, 2020

Será este ano?


Será este ano deixo de comprar a montanha de revistas e jornais que acabo por nunca ler?

Será este ano que vou, finalmente, a Kalininegrado e a Stepanakert e que desisto, de vez, de ir a Alice Springs, a Sanna, a Salem, a Ulan-Bator e a Aleppo?

Será este ano que vou fazer uma limpeza drástica das “newsletters”, dos “clippings” e dos alertas regulares que, dia após dia, enxameiam a minha caixa de e-mails?

Será este ano que vou ver a minha ficha na Pide?

Será este ano que vou dormir à Pousada de Alijó, a única do continente onde nunca passei uma noite?

Será este ano que me converto à Apple?

Será este ano que vou ter a coragem de limpar mais de uma dezena de milhar de fotografias que já não me dizem nada e que ocupam um imenso espaço na “nuvem” que aluguei?

Será este ano que começarei a ler ”A Bíblia”, esse best-seller de que tão bem me falam?

Será este ano que vou passar a deitar-me mais cedo?

Se não for este ano, desde já prometo, é em 2021...

Anuário 2019


O José Carlos de Vasconcelos voltou este ano a desafiar-me a fazer no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, que dirige, mais um “Anuário”, uma coleta de pequenas reflexões, produzidas ao longo do ano que acabou, muitas das quais já aqui publicadas. Enchem duas páginas da publicação, podendo o texto ser lido aqui.

Começar o ano



Tinha tido o impulso de fazer concurso e acabei admitido, com umas centenas de candidatos, naquele emprego do “fundo da tabela” da banca pública. Fi-lo para evitar que os meus pais tivessem de continuar a custear, por mais tempo, as consequências de algumas trapalhadas universitárias que me estavam a interromper o curso. Ficaria por ali, apenas de passagem, antes de ingressar na “tropa”. 

Os colegas que vim a encontrar nesse emprego, todos mais velhos, alguns já com bastantes anos de profissão, eram homens (havia poucas mulheres) para quem ser bancário era uma tarefa para a vida. 

Hoje avalio melhor a riqueza que foi ter começado a trabalhar bem cedo, lado a lado com gente para quem esse quotidiano não tinha o mesmo caráter precário. Foi com essas pessoas que aprendi o significado do trabalho a sério. E, com algumas delas, construí uma amizade que dura até hoje.

Fora admitido na Caixa Geral de Depósitos, em Lisboa, no Calhariz, em meados de novembro de 1971. No último dia desse ano, à hora do almoço no Martins, uma tasca a caminho de Santa Catarina, onde íamos em grupo, veio à conversa a passagem de ano dessa mesma noite. 

O Murta, um saudoso colega algarvio, senhor de um humor fino, virou-se para mim e disse: "Você sabe como é que aqui este nosso colega, desde há muito, faz as passagens de ano?" 

Apontou para um homem de aspeto um tanto abrutalhado, que eu sabia que tinha tido um passado como operário. Da natureza da profissão, ficara-lhe uma atitude política que, em algumas coisas, vim a constatar que rimava bastante com a minha. Tinha um discurso pouco “fino”, saíam-lhe graçolas fortes, com efeito amplificado por uma voz muito sonora, que assentava bem num corpanzil avantajado.

Eu andava por ali há muito pouco tempo, não tinha a mais leve ideia do que estavam a falar, mas a gargalhada coletiva do grupo fez-me perceber que estava a perder alguma coisa. E o Murta prosseguiu: "Este homem não gasta champanhe no réveillon!" Estava cada vez mais baralhado e intrigado. 

O tal colega sorria, deliciado com a minha crescente curiosidade. "Ó homem, conte aqui ao Seixas como é que você passa os fins de ano!", rematou o Murta.

E ele contou. Não vou repetir aqui as brevíssimas palavras utilizadas, porque o JN não tem uma bola vermelha para alertar os leitores mais sensíveis. Só revelo que o hábito desse meu amigo era ir para a cama um quarto de hora antes da passagem de ano. E nunca ia sozinho... Cada um passa o "réveillon" como mais gosta, não é?

Os meus votos para 2020


Tarde do dia de Consoada