Há dias, ao falar por aqui do ISCSPU, alguém se referiu a um dos professores da casa, o padre Silva Rego, que conheci nesses anos que passei pelo palácio Burnay, na rua da Junqueira, na mudança de década de 60 para 70, do século passado.
O ISCSPU, a que o 25 de abril haveria de fazer perder o "U" de "Ultramarina", foi a última versão de uma muito antiga escola de quadros para a administração colonial, criada no âmbito da Sociedade de Geografia de Lisboa. Adriano Moreira, que dirigiu o ISCSPU até 1969, foi responsável por alguma qualidade académica que o Instituto chegaria a ter.
Silva Rego era um professor do ISCSPU, um colaborador próximo de Adriano Morteira. Foi um investigador reconhecido nas suas áreas específicas de competência, em especial a história das missões em África. Além de docente de cadeiras de História, dirigia o Centro de Estudos Missionários, um espaço onde me recordo que havia uma pequena biblioteca, um “oásis” em que se podia trabalhar em grande sossego, com um cheiro a madeiras e papel que o meu olfato nunca mais esqueceu.
Rego era beirão, o que se notava à distância pelos “xis” abundantes na sua conversa. Era um homem firme, na sua aparente bonomia de sacerdote. Mas, do que me lembro, e não lembro muito, não me pareceu ser má pessoa.
Um dia, em 1971, teve lugar uma Assembleia de Escola, no maior anfiteatro da casa, a que Silva Rego, por uma qualquer razão, presidia. Por essa época, Adriano Moreira já fora afastado da direção do ISCSPU, num ato de saneamento político de Marcelo Caetano, executado pelo seu homem de mão na Educação, Hermano Saraiva. O Instituto era já então dirigido por Vasco Fortuna, uma figura com uma postura nada dialogante com os estudantes, com quem eu iria passar a ter um conflito, sério e longo, pouco tempo depois.
Tenho ideia de que a sessão presidida por Silva Rego, que imagino tenha sido organizada para tentar controlar os constantes debates que fazíamos, para discutir a natureza da escola, tentando forçar a abertura às Ciências Sociais que Adriano Moreira iniciara, terá evoluido mal, à luz dos propósitos para que fora convocada. O debate entrou num registo algo caótico e, a certo ponto, fugiu ao controlo de Silva Rego. Quando alguém que intervinha citou a palavra “colónias”, que por ali era em absoluto proibida, ele perdeu a paciência, enfureceu-se, pôs-se de pé e declarou, com solenidade: “Está levantada a sessão!”. Imagino que tenha soado a “xexão”...
Da primeira fila da assistência, numa insolência que reconheço escusada, mas com a garra de “troublemaker” académico que, por esses tempos, eu era, levantei-me e declarei, alto e bom som: “Se o senhor professor levanta a sessão, então nós pousamo-la!”. A minha única mas escassa “autoridade” provinha do facto de ser presidente da Assembleia Geral da associação de estudantes. Soaram pela sala algumas gargalhadas e, enquanto Silva Rego abandonava o anfiteatro, apressado e furibundo, acompanhado dos professores presentes, eu encaminhei-me para a mesa, “assumi” a presidência e, pouco subtilmente, converti a sessão numa RGA, uma “reunião geral de alunos”.
Já não recordo bem como as coisas se passaram depois, mas, horas mais tarde, fui chamado ao gabinete de Silva Rego. Temi o pior, claro.
Rego tinha sido meu professor, creio que de duas disciplinas, em que fui aprovado com merecidas notas de nível mediano. Num desses exames, vi-o ficar profundamente irritado quando lhe citei o célebre livro do historiador britânico Charles Boxer, “Race relations in the Portuguese colonial empire”. Mal eu sabia, embora devesse ter imaginado, que Boxer era o seu maior “ódio de estimação”. (Um dia de 1990, em Londres, tive oportunidade de contar este episódio a Boxer, que foi talvez o mais importante historiador da nossa aventura colonial, que me revelou nutrir escasso apreço académico por Rego).
Voltemos àquela tarde de 1971. Apesar dos meus receios, Silva Rego, que estava já bem mais calmo, recebeu-me com um tom que, sem deixar de ser firme, era relativamente cordial. Na sua caraterística pronúncia beirã, tratando-me por tu, como paternalmente sempre fazia, disse-me: “Ó filho! Tu tens de entender, de uma vez por todas, que não estás bem nesta casa! Quem para aqui vem deve comportar-se como quem vai para um seminário: tem de acreditar! Ora tu, tal como outros amigos teus, não acreditas na política de manutenção do Ultramar. Isso ainda um dia te vai criar outros problemas, mas esse não é agora o meu problema. O que eu te queria dizer, com a maior franqueza, é que acho que o teu lugar não é nesta escola. Devias ir fazer vida para outro lado.” Não sei o que lhe respondi nem como a conversa evoluiu.
Silva Rego, nessa tarde de 1971, tinha razão. A partir de então, e durante três anos, a minha vida viria a tornar-se num “inferno”, no ISCSPU. Tive um longo processo disciplinar, por este e por outro incidente, e passei por vários tempos complicados que incluiram uma notória perseguição pessoal, a proibição de entrada nas instalações, com acesso apenas às “frequências” e aos exames. No ano seguinte, uma decisão ministerial viria a impedir a minha reeleição como dirigente académico. Depois do 25 de abril, vim a ter acesso a um processo que sobre mim foi elaborado, enviado ao Ministério da Educação, contendo citações de intervenções que eu tinha feito em várias ocasiões, com comentários que me qualificavam como um “perigoso agitador” e epítetos parecidos, num tom “pidesco” que me ajudou a entender melhor os métodos de certas pessoas da “casa”, algumas das quais me denunciavam por detrás e sorriam pela frente. O que lá vai lá vai, mas o que ficou ficou.
No dia 29 de abril de 1974, decido entrar no ISCSPU. Voltei fardado de militar, como miliciano que era. O José Augusto, o contínuo “bufo” que vigiava os estudantes e que, até àquele dia, tinha tido ordens para barrar o meu acesso físico à escola, recebeu-me com um sorriso do tamanho do mundo. É que o mundo mudara, entretanto
Nunca mais soube do padre Silva Rego. Reconheço que, por um lado, ele estava certo: eu não acreditava em nada daquilo. E que, por outro, estava errado: a História deu-me razão.