O’Neill considerava-nos “o incrível país da minha tia, trémulo de bondade e de aletria”. Acompanho o poeta neste requebro melancólico e tenho para mim que a aletria do Natal faz parte da nossa identidade afetiva.
Há uns anos, aqui por Vila Real, na altura das Festas, falhou a aletria. O túnel do nosso contentamento ainda não tinha sido construído e a neve ou o gelo não deixavam passar os camiões no Marão.
Foi o bom e o bonito! A cidade agitava-se, na Gomes e na esquina do Zézé trocavam-se boatos (“Parece que vem pela Régua...”, “Há a ideia de a trazer de Chaves...”), as cozinheiras desesperavam. O espetro de um Natal sem aletria pairou no horizonte. A meio da tarde do dia de consoada, surgiu, finalmente, uma luz! De casa, recebi um telefonema, imagino que em voz baixa, de quem tinha obtido o santo e a senha de fonte A1, como se diz na tropa: “Passa pelo Minipreço! Dizem que já há aletria por lá. Traz três pacotes”. (Nesse tempo, eu “podia” frequentar outras lojas além do Pingo Doce...).
Entrei e logo estaquei: como é que era o aspeto da aletria? Só a conheço nas travessas, já amarelada pelos ovos, com a canela a pontuar, pronta a comer. (Isto de ter fama - e algum proveito, vá lá! -de gastrónomo e não saber estrelar um ovo acaba por não ser muito prestigiante). Embatucado pelo embaraço, perguntei a uma cliente se me podia ajudar. “É o senhor embaixador, não é?” Era. Riu-se e lá me levou à aletria, na zona das massas. Cheguei a casa impante. Pela cidade, o drama tinha passado.
A aletria e os pudins, além da sopa dourada, dos sonhos e das rabanadas, fazem parte daquele tipo de coisas que, desde há vários anos, já são obtidos por impessoal “outsourcing”, embora sempre de “gente de confiança”, sem que o Mário Centeno se meta na transação. Mas nem sempre foi assim. Para além da obrigatória aquisição dos imbatíveis pudins das irmãs Coelho, atrás da Sé, cuja recolha implicava uma condução cuidadosíssima na tarde da consoada, houve sempre pessoas amigas da família que cuidavam em apaparicar-nos a glicose e os trigliceridos. Ainda aí estão hoje as fantásticas rabanadas da Alice, como o foram os deliciosos sonhos da Dona Auta ou o imbatível doce de xila e ovos da Mariazinha Rua.
Um Natal, cá por casa, mudou-se a origem da aletria. Quando o novo produto se provou, ele ganhou, num segundo, um qualificativo que lhe ficou para sempre: a aletria da Cimpor. Dura, sensaborona, sem a menor graça, sem descolar da travessa, parecia ter “levado” cimento na receita. Nos anos seguintes, o tiro foi retificado e tudo voltou à normalidade que estas coisas devem ter.
Estivesse eu em Chaves e meteria cunhas para ter, neste Natal, a aletria que se serve no Aprígio. Comi lá, há semanas, uma das melhores aletrias que provei em toda a minha vida: solta sem ser aguada, doce sem ser enjoativa, com a textura certa abaixo do “al dente” e aquele gosto de boca final, onde o sabor da canela exterior se junta criativamente com o longínquo travo a limão. O Aprígio passou, para mim, a ser o “benchmark” da aletria, isto é, exatamente o contrário da aletria da Cimpor.