O Brasil atravessa um
momento único, regenerador mas perigoso.
Uma tensão política
potenciada por um mau momento da economia e por um sentimento popular de
revolta contra iniquidades do sistema, desencadeou uma crise institucional de
inimagináveis proporções, que levou ao afastamento da principal figura do
Estado.
Três constatações,
entretanto, se impuseram: as liberdades públicas nunca estiveram em risco, a
arquitetura institucional foi preservada e os mecanismos de justiça, que
ganharam força quando os outros poderes se fragilizaram, acabaram por se
autonomizar. Este último facto, contudo, pode revelar-se de certo modo inconforme
com o próprio sistema político.
Porquê? Porque era, e
é, um segredo de Polichinelo que a máquina política brasileira, do nível local
ao federal, vive marcada por uma cultura comportamental à margem da letra das
leis, no tocante ao financiamento da atividade dos agentes políticos.
Num primeiro tempo, a
luta contra a corrupção, levada a cabo pelo aparelho de justiça e que havia
ganho forte legitimidade popular para agir, pareceu relativamente compatível
com o interesse imediato de quem tinha como estratégia a reversão dos
equilíbrios políticos prevalecentes, em sintonia com um sentimento popular que
um sufrágio posterior confortou.
Num segundo tempo,
porém, ao partir da ação anti-corrupção para o terreno do financiamento dos
agentes políticos e das suas atividades, que indubitavelmente se constata
estar-lhe ligado, a mão da justiça passa a confrontar-se com a essência do
próprio sistema. Mais: a sensação que fica é de que, se essa ação se aprofundar
muito por essa mesma pista, o universo dos agentes políticos é de tal modo
atingido que é a sobrevivência do próprio sistema que começa a ser questionada.
A onda salvífica da
democracia potenciada pelo exercício de liberdade da justiça pode, assim, vir a
redundar em impactos que se situam muito para além da capacidade de auto-regeneração
do sistema.
Um conluio político-partidário, para uma operação de obstrução ou definição
de uma « linha vermelha » limite para a ação judicial, não é de
excluir, dado o caráter devastador, em matéria de efeitos, a que o atual
processo de « delação premiada » pode conduzir. Resta saber se isso será
compatível com a atenção escandalizada das ruas.
Para alguns, só uma
relegitimação eleitoral surge como solução. Subsiste, contudo,
uma imensa contradição: para tal, seria necessária a mobilização de
quantos veriam o seu modelo de existência política posto em causa, ou em dúvida,
por esse mesmo exercício. E não é evidente que o masoquismo ou o suicídio venham
a prevalecer.
Não está fácil o Brasil, nos dias que correm.