segunda-feira, março 21, 2016

Cuba e os "yankees"


Há algumas horas, ao ver Obama descer do Airforce 1, reparei na cara conhecida que o recebia na pista (de óculos, sorridente, atrás de Obama, na foto). Era o ministro dos Negócios Estrangeiros de Cuba, Bruno Rodriguez.

Bruno foi meu colega em Nova Iorque, quando fui embaixador junto da ONU. Estabelecemos então uma ótima relação, idêntica à que sei que tinha com o meu antecessor, António Monteiro, e provavelmente, com colegas que me sucederam - porque sei que esteve muito tempo nas Nações Unidas. 

Devo dizer que, em todos os países onde servi - da Noruega a Angola, do Reino Unido ao Brasil e a França, bem como em instâncias internacionais - criei sempre com os diplomatas cubanos um bom entendimento. Portugal era olhado por eles, e com razão, como um "honest broker", um país que, sem prescindir dos princípios que lhe competia defender na ordem internacional, tentava sempre encontrar pontos comuns e atenuar desnecessárias tensões. A diplomacia cubana era muito militante, mas o toque tropical e latino tornava-a bem mais agradável do que a do antigo centro e Leste europeus. O caráter detestável do seu regime, em matéria de Direitos do Homem e democracia, acabava por ser atenuado pela simpatia e cordialidade de muito dos seus diplomatas. A diplomacia é também isto.

Poucos meses depois de chegar a Nova Iorque, e ter sido eleito para a vice-presidência do Conselho Económico e Social (ECOSOC), fui aproximado pelo meu colega do Reino Unido, que ia deter dentro em breve a presidência do Conselho de Segurança, pedindo a minha ajuda para se organizar uma ação conjunta entre esse órgão e o ECOSOC. Seria uma jornada de um dia, já não recordo sob que temática, que se me afigurava relativamente neutral e até interessante. Perguntei-lhe se a China estava de acordo, porque o peso do G77 (grupo de países do Sul, onde a voz de Pequim era influente) era essencial. Garantiu-me que sim, que todos os cinco membros permanentes não criariam dificuldades. Achei "fruta a mais", mas falei com o colega camaronês que presidia ao ECOSOC e obtive luz verde para avançar.

As primeiras sondagens tornaram-me otimista. Procurei o colega iraniano, que tinha considerável poder de mobilização para um potencial bloqueio no G77, que, sem mostrar grande entusiasmo, disse que, por ele, não objetaria. Mas advertiu-me: "Não faças nada sem falar com o Bruno!" E lá fui à procura do simpático cubano. Na semana anterior, tivera-o a jantar em casa com a mulher. Achei que estava "no papo". Pois isso!

Bruno Rodriguez foi encantador, como sempre, começando por me dizer, com aquela memória de elefante que se cria no mundo multilateral: "Sabes que essa ideia já não é nova?" Eu não sabia. "Mas tens alguma coisa contra a iniciativa?", perguntei-lhe. Expliquei que a temática me parecia inóqua, que os restantes membros permanentes não pareciam ir criar dificuldades, que alguns "key players" do Sul que já tinha contactado também não objetariam. Porém, a influência de Cuba no G77 era grande, pelo que precisava do seu apoio.

Bruno olhou para mim, para a minha "naïveté", e disse-me: "Tens de perceber que não é o tema a tratar que interessa, porque o que importa é quem o propõe. Se essa iniciativa vem dos britânicos é porque interessa "a los yankees" e, Francisco, se a ideia interessa a Washington não nos interessa a nós. E posso assegurar-te uma coisa: os americanos fariam o mesmo, se fôssemos nós a ter a iniciativa. Só que nós nunca o faríamos, porque consideramos importante que o ECOSOC fique imune às iniciativas do Conselho de Segurança, em especial se vindas de certos países. Por isso, tenho muita pena, mas não podes contar com o meu apoio". E a ideia foi "por água abaixo". Quando expliquei, com pena, ao meu colega inglês que não pudera ser-lhe útil, fiquei com a sensação de que não estava à espera de outra coisa...

Ontem, lá estava Bruno na pista, a receber o "yankee". Terá mudado entretanto alguma coisa na ONU?

domingo, março 20, 2016

Obama em Cuba

Confesso que ver Obama chegar a Cuba fez-me ganhar o dia.

Obama far-me-ia ganhar o ano se tivesse a coragem de cumprir a sua promessa - de há quase uma década! - de encerrar a prisão de Guantánamo (que fica em território cubano, para quem se possa ter esquecido), onde jazem ainda largas dezenas de prisioneiros, sem qualquer acusação, fruto de uma legislação dita "de exceção", prolongada para além de tudo quanto é admissível num país que se afirma líder do "mundo livre"

sábado, março 19, 2016

O beija-mão papal

Não tem qualquer sentido a crítica feita ao presidente Rebelo de Sousa (tenho de me habituar a escrever assim...) por este ter sido visto a beijar o anel do papa, na sua visita de cortesia ao chefe da igreja católica.

A neutralidade religiosa da República não é minimamente afetada pelo facto do titular da chefia do Estado ter uma reverência, em consonância com a sua posição pessoal de católico (idêntica, aliás, à da esmagadora maioria do povo português), na presença do chefe dessa igreja. 

Ou será que o chefe do Estado, quando um dia estiver numa cerimónia religiosa em Portugal, não pode benzer-se, porque com isso pode ofender os portugueses que o não são? 

A mim, que sou ateu, isso nada me afeta.

Espiões e diplomatas

Teriam imensa graça, não fora a confusão que a publicação pode causar em leitores menos avisados e mais dados às teorias do "complot", os artigos que, na passada semana e hoje, o "Expresso" traz sobre o conhecido "arquivo Mitrokhin". Nele se reeditam notas de espiões soviéticos, ao tempo da Guerra Fria, sobre contactos com figuras portuguesas, nomeadamente diplomatas. Não falo por outras profissões, nem quero absolver ninguém (particularmente quem nunca foi acusado de nada), mas só quem não conhece os meandros da vida internacional pode ficar (aparentemente) surpreendido pela circunstância de ter havido contactos e conversas entre diplomatas e funcionários (também acreditados como diplomatas) dos serviços secretos de países "de Leste" (soviéticos e não só), a cujas notas, curiosamente, é dada uma estranha credibilidade, na tentativa ávida de encontrar algum escândalo. Como se vê pelo que foi publicado, e na esmagadora maioria dos casos, "a montanha pariu um rato"... Porém, infelizmente, na velha lógica medíocre de que "não há fumo sem fogo", alguma insídia se instalará sempre, o que é triste. Desde logo, para a dignidade do "Expresso".

Ora estas coisas são, em geral, bem simples. Também eu, ao longo dos anos, em especial nos primeiros tempos da minha carreira, fui aproximado por "diplomatas" deste jaez, oriundos de países de Leste. Nunca rejeitei esses contactos, até lhes achava graça, tendo, como regra essencial, reportá-los, com toda a naturalidade, aos embaixadores com quem trabalhava. As "conversas" eram sempre as mesmas: a nossa avaliação sobre a situação política do país onde estávamos colocados, tentativa de obter a nossa leitura pessoal sobre a vida internacional, comentários sobre as embaixadas e funcionários das missões dos grandes países ocidentais no país, a nossa visão sobre algumas figuras políticas locais, etc.

Recordo-me bem, um dia, em Oslo, na Noruega, ter conhecido, num evento social, um funcionário da embaixada da URSS, aí por 1981 ou 1982. Trocámos cartões e, uns dias depois, telefonou-me para me convidar para almoçar. O local, se bem me lembro, era sinistro: um mau restaurante chinês (!), perto do estádio de Bislet. A nossa mesa era ao fundo, numa zona escura da sala. A conversa foi normal, para aquele estilo de contactos. A certo ponto, o meu anfitrião, numa tentativa de criação de cumplicidade, perguntou-me: "O que é que diria o seu embaixador se nos encontrasse a almoçar aqui?". A resposta tê-lo-á desiludido: "Teria curiosidade em que eu o apresentasse, porque lhe disse que vinha almoçar consigo...".

Tempos mais tarde, convidei esse diplomata soviético e a mulher para jantar em minha casa. Havia outros convidados, mas não lhe disse. O casal russo foi o primeiro a chegar e, como grande parte da sala em que estávamos era visível da rua, vi-o discretamente tentar fechar um pouco mais uma das cortinas... Mas a maior surpresa - para ele e não só - estava ainda para vir. Minutos depois, foram chegando os dois casais que faltavam. Foi um "espetáculo" digno de se ver, à medida que se cumprimentavam. Todos eles já se conheciam: eram os "espiões" dos Estados Unidos e da França! Nenhum deles se assumia como tal, pelo que, formalmente, não podiam "queixar-se" do inusitado daquele encontro. Eu tinha boa relação com todos, mas tê-los juntado num jantar era uma evidente (embora subliminar...) provocação. O decurso do jantar foi um tanto "estranho", devo confessar, mas eu diverti-me imenso!

Desde esse dia, o russo desapareceu-me de cena. O francês agradeceu, no dia seguinte, com um cartão neutro. O americano, com quem eu tinha a melhor relação, telefonou-me - num tom entre o divertido e o perplexo - a agradecer a ocasião: "Very nice party! And what a group of guests!" Limitei-me a responder: "I knew you would like it!". E acabámos às gargalhadas...    

"Olhar o Mundo"



Durante este fim de semana, todos os canais da RTP emitem mais uma edição do programa de política internacional "Olhar o Mundo".

Nesta edição, falo com António Mateus sobre a crise política brasileira, a estratégia russa no Médio Oriente, a política externa chinesa, o surgimento dos ficheiros de jihadistas, a chegada do terrorismo à Costa do Marfim, as dificuldades de Angela Merkel depois das recentes eleições estaduais, a instabilidade que atravessa a Turquia e o acordo entre Ancara e Bruxelas, as incógnitas no poder angolano, a crise superada na CPLP, a "saga" governativa em Espanha, as tensões em Moçambique e, naturalmente, o estado da arte nas presidenciais americanas.

Pode ver o programa aqui.

sexta-feira, março 18, 2016

"Portugal no Mundo - Um debate inadiável"


No jornal "Público" de hoje surge um artigo coletivo, sob o título "Portugal no Mundo - um debate inadiável".

Subscrevem-no o antigo ministro das Finanças, João Salgueiro, o presidente do Conselho de Auditoria do Banco de Portugal, João Costa Pinto, os economistas e professores universitários João Ferreira do Amatal e José Manuel Félix Ribeiro, o jurista e diretor da Culturgest, Miguel Lobo Antunes, e eu próprio.

Trata-se do resultado de uma reflexão alimentada por um grupo que, desde há vários anos, promove análises sobre os problemas do país, o mesmo que publicou, há meses, um texto sobre a reforma da Administração Pública e tem levado a cabo a organização de várias jornadas de debate.

Neste caso, é um texto sobre o nosso futuro como país face ao mundo e, muito em particular, face à Europa. O artigo reflete sobre opções que foram feitas, sobre as condicionantes existentes, apelando a um debate, aberto e sem tabus, sobre alguns dos caminhos possíveis para o nosso destino coletivo, adiantando algumas pistas e procurando suscitar a novas ideias.

Pelo facto de não ser ainda possível fazer um link para o jornal, coloquei por ora o texto num outro suporte onde pode ser consultado.

Fundação Mário Soares

Foi há 20 anos. Recordo-me muito bem do dia em que, acompanhado por José Mariano Gago, atravessei pela primeira vez as portas da recém-criada Fundação Mário Soares. Estávamos nos primeiros dias de uma instituição que, ao longo destas duas décadas, prestou um serviço muito importante ao país, em especial no trabalho da memória cívica. Passei por lá muitas vezes, para colóquios, para exposições, para lançamento de livros. Ou, muito simplesmente, para falar com um amigo que se chama Mário Soares.

Ontem, estivemos por lá muitos, amigos e admiradores do antigo presidente, mas também cultores da obra da Fundação, a saudar estes 20 anos da sua atividade. Mário Soares não pôde estar connosco, mas todos sentimos que o seu espírito andava por ali. Foi muito graças ao seu entusiasmo e constante empenhamento que foi possível manter e desenvolver uma estrutura que também vive muito do voluntarismo militante de alguns. Acho que todos os que ontem por ali estivemos tínhamos a consciência da importância de contribuir para que esta obra continue a assegurar, em pleno, a sua continuidade.

Dentre os vários amigos que trabalham e dão alento à Fundação, permito-me deixar uma palavra muito especial à Osita Eleutério, pelo seu entusiasmo, pela sua dedicação e, acima de tudo, pela sua insuperável lealdade.

Já perceberam?


A implosão da Síria e a instabilidade crescente em países da região provocou um imenso fluxo de refugiados em direção à Europa, que veio a somar-se ao tropismo migratório de natureza económica que o caos líbio acentuara. Os Estados da UE que se situam mais próximos desse espaço geográfico foram, pela ordem natural das coisas, os primeiros alvos dessas deslocações populacionais. 

Enquanto esses fluxos se mantiveram em níveis razoáveis, esses Estados foram lidando com essa realidade de uma forma que era comportável nos quadros normativos a que se sentiam obrigados, nomeadamente à luz dos compromissos externos que os vinculavam..Quando a dimensão desses movimentos migratórios aumentou, e na ausência de uma resposta coletiva europeia coerente, alguns desses países revelaram-se incapazes de preservar uma atitude de partilha das responsabilidades coletivas, remetendo-se a lógicas nacionais, às vezes marcadas pela prevalência, no seu tecido político, de forças xenófobas. 

A atitude coletiva europeia passou, a partir de certo momento, a ser desordenada, quase casuística, alternando tempos de afirmada generosidade com outros de retração protecionista. Para um observador comum, a posição da UE acabou por ser lida como uma mera navegação à vista, uma tentativa de ganhar tempo e aceitação nas suas opiniões públicas, esperando, quiçá ingenuamente, que uma atenuação dos conflitos travasse os factos. E, como é da lógica europeia, a UE foi tentando perceber “quanto poderia custar” estabilizar essa mesma serenidade.

É neste contexto que surge aquilo que se pode identificar como a “solução turca”. Por razões geográficas óbvias, a Turquia havia sido o “porto” inicial de acolhimento de grande parte desses refugiados, em especial os do conflito sírio. E, desse “porto”, muitos passaram a sair para o centro da Europa.

Porque se revelam difíceis as soluções no território da UE, esta tenta agora “comprar” que a Turquia “fixe” no seu território grande parte dos refugiados. Com cheques, com promessas de vistos e com uma descarada aceleração do processo de negociação de adesão da Turquia à UE (de que até os turcos deveriam desconfiar). Bruxelas sorri imenso para Ancara, que já percebeu que a tem como refém. Mas isso seria o menos.

Porém, com a sua proposta de fazer regressar à Turquia (forçadamente, está-se a ver) muitos dos refugiados que já estavam em solo europeu, a UE coloca-se flagrantemente à margem das leis internacionais que subscreveu e de que, no plano multilateral, sempre se afirmou como um garante. E isto é um imenso escândalo. Será que os europeus já se deram conta do que está a passar?

Rui Santos

O presidente do município de Vila Real, Rui Santos, foi o nome escolhido por António Costa para liderar os autarcas socialistas.

Rui Santos foi o primeiro socialista a conseguir ganhar a Câmara Municipal de Vila Real, tendo vindo a desenvolver, desde a sua posse, um trabalho de grande qualidade.

Como vilarrealense e como amigo de Rui Santos, deixo-lhe aqui um forte abraço de felicitações.

quinta-feira, março 17, 2016

Económico

Deixa de publicar-se amanhã, em papel, o "Diário Económico". Mantém-se por ora o site informático.

Custa-me ver sair de cena aquele que foi um grande jornal económico português, onde se formaram excelentes jornalistas e que constituiu um espaço muito relevante de debate e expressão de ideias.

Desde sempre, tive muitas "palavras" publicadas no "Económico", de várias entrevistas a muitas notícias, passando por dezenas de artigos que por ali subscrevi. Quase sempre, o meu "tom" contrastou com a linha editorial do jornal, mas isso não impediu que sempre tivesse podido contar com uma total abertura por parte da publicação, dos diretores com quem trabalhei, para poder exprimir-me com toda a liberdade.

Deixo, no dia de hoje, uma saudação muito sincera a todos quantos ali trabalhavam e que agora perdem o seu emprego.

Em particular, quero enviar um abraço solidário à minha amiga Gisa Martinho, responsável pela minha entrada como colunista, em 2013. Não posso também deixar de recordar o Ricardo da Costa Nunes, que uma doença grave afastou nos últimos meses do jornal, cuja simpatia e atenção não esqueço.

Nunca fui jornalista. Mas sinto sempre alguma tristeza quando vejo encerrar um jornal, particularmente numa época em que não abundam novos títulos.

Os taxis, o Uber e a facilidade


Como já se previa, na "guerra" taxis-Uber, parece que acabou por ganhar a facilidade, desconfio que apadrinhada por uma das forças políticas que apoiam o governo. 

Apanhado sem estratégia, entre a popularidade crescente da oferta de serviços do Uber e os protestos enraivecidos dos taxistas, incapazes de oferecerem um serviço comparável, o executivo terá optado pela facilidade, com vista a comprar (por quanto tempo?) alguma paz social no setor. "Deitar dinheiro" sobre os problemas é sempre a solução mais cómoda. 

Assim, parece que vão ser entregues umas dezenas de milhões de euros aos taxistas, para miríficas medidas de modernização. Já estou a imaginar o que vai ser a "reconversão" e a "reeducação" de alguns figurões que às vezes me têm saído em rifa aqui por Lisboa. Em certos casos, como dizia a mãe de Kotter, nas saudosas crónicas de José Cutileiro nos "Bilhetes de Colares", "nem cem anos farão daquilo gente"...

Agora, só falta mesmo que nos critérios de distribuição do dinheiro intervenha uma inenarrável entidade a quem a comunicação social dá regularmente voz e que muito se dedica a ajudar a defender em justiça os taxistas apanhados em vigarices e maroscas, em lugar de contribuir para os afastar e isolar, pelo mau nome que dão a uma classe onde, como é óbvio, continua a haver imensas pessoas honestas e profissionalmente dignas. 

Eu, que sou regular utente dos taxis - até hoje, devo confessar para surpresa de muitos, nunca utilizei o Uber -, ouço diariamente queixas de taxistas sobre a tal entidade, sobre a sua alegada proteção à "mafia" dos famigerados taxistas do aeroporto, com o custo na imagem que tudo isso projeta sobre a generalidade da classe profissional, cujas debilidades de qualidade de oferta a concorrência do Uber trouxe agora mais à evidência.

Tenho pena de que o governo assim atue. Haverá, com toda a certeza, finalidades muito mais úteis para o dinheiro público do que financiar negócios privados incapazes de resistir à concorrência. Ou, em alternativa, o executivo também podia optar por deixar esse dinheiro no bolso dos contribuintes.

ps - depois deste post, já sei que me aguardam, como aconteceu no passado, ameaças e insultos. É a vida...

A bala de prata


No meio do seu segundo mandato como presidente do Brasil, Lula da Silva recusou dar alento à hipótese, por muitos sugerida, de tentar uma mudança constitucional que lhe permitisse um terceiro tempo na chefia do Estado. Recordo-me de ter então dito que não queria proceder como Fernando Henrique Cardoso, que havia aceite uma reforma da constituição para fazer um segundo mandato.

O gesto de respeito pela letra da lei, por parte de Lula, foi apreciado em todo o mundo, por romper com o vício latino-americano de privilegiar as escolhas de continuidade político-pessoal em detrimento do estrito cumprimento dos normativos constitucionais.

A decisão de Lula de integrar o governo de Dilma Rousseff, com o único objetivo de escapar à instância judicial em que está a ser investigado, colocando-se sob o “foro privilegiado” do Supremo Tribunal Federal, não vai passar a ser uma linha prestigiante no currículo de um homem que, no passado, havia ganho a admiração de muitos milhões de pessoas, pela profunda transformação que protagonizou no Brasil.

É verdade que o modo como setores do Ministério Público brasileiro estavam a destratar o antigo presidente estava longe de ser aceitável, como foi flagrante na forma desrespeitosa como foi levado a prestar declarações, bem como em comentários, politicamente enviesados, feitos sobre o processo.

Porém, ao decidir entrar para o governo do país, instrumentalizando-o abertamente por um interesse pessoal, Lula terá ido longe demais. Terá assim disparado a sua última bala, aquilo a que alguns chamam a “bala de prata”. Que também passa a pertencer a Dilma Rousseff, cujo futuro fica agora, mais do que nunca, ligado ao destino de Lula. Pressente-se em tudo isto um grande desespero. E o desespero, na vida como na política, nunca é bom conselheiro.

quarta-feira, março 16, 2016

Lula e a Geografia


Uma noite de 2011, em Paris, depois de um jantar na embaixada brasileira, fiquei à conversa num canto com Lula da Silva, que tinha ido a França receber um doutoramento "honoris causa". O embaixador tinha convidado um grupo pequeno de amigos de Lula, dos quais eu fazia parte. Com gosto, não me custa dizer.

Lula estava muito bem disposto, durante o jantar disse algumas coisas simpáticas sobre a presidência de Dilma Rousseff, então ainda no seu primeiro mamdato, mas senti que o "bichinho" da política ativa não lhe desaparecera por completo. Embora as pessoas à sua volta apenas pertencessem ao Instituto Lula, devo dizer, com sinceridade, que fiquei com a impressão, até por conversas com algumas delas, que o regresso ao poder fazia evidente parte da agenda coletiva, ainda que apenas implícita, daquele grupo. Não sendo plausível que a reeleição de Dilma estivesse em causa, a aposta nas presidenciais de 2018 era assim o cenário mais provável. (Lula iria ainda passar por graves problemas de saúde, mas, nos últimos tempos, parecia "back into business").

Falámos a sós, por alguns minutos. Contei-lhe então uma conversa que havia tido um dia num almoço na poderosa FIESP (Federação das Indústrias do Estado de S. Paulo), com uma das mais importantes figuras da finança privada do país. Aproximava-se o fim do termo do segundo mandato de Lula. A economia ia muito bem, o Brasil parecia imparável e, por alguns tempos, a ideia de poder haver ambiente político para mudar a Constituição e abrir a porta a um terceiro mandato do presidente começara a correr. O meu vizinho de mesa, sem me pedir confidência, disse-me:

- Se se fosse feita aqui na FIESP uma votação secreta para Lula poder ter um terceiro mandato, posso assegurar-lhe que essa ideia era aprovada por larga maioria. 

Lula, com uma gargalhada, reagiu:

- Não sei se eles votaram antes do Fernando Henrique ter mudado a Constituição, para ter direito a um segundo mandato... Mas eu nunca quis um terceiro mandato. Queria cumprir a Constituição tal como a recebi.

Pode ser que tenha sido assim, também pode ser que Lula tivesse avaliado que, no Congresso, as coisas não estariam suficientemente maduras para tal. De todo o modo, não o fez e isso foi positivo para a estabilidade institucional do país. Devo dizer que, à época, fiquei com alguma admiração por Lula não ter estimulado os que pretendiam fazer a revisão institucional. E disse-lho:

- Sabe, Presidente, o senhor devia ter um prémio de Geografia.

- Da Geografia, embaixador?

- Sim, Presidente, porque o senhor conseguiu "tirar" o Brasil da América Latina. Na América Latina, as vantagens da continuidade política costumam ser mais importantes do que a letra das constituições. Mas o senhor, não, preferiu respeitar a constituição existente e, pode crer, isso foi muito apreciado em muitos países.

Lula ficou visivelmente satisfeito com o que ouviu. Lá nos despedimos nessa noite, com um imenso abraço, tratando-me por "querido embaixador", como era do seu jeito. Não voltei a falar com ele desde então.

Ontem, Lula, ao tentar integrar o governo Dilma para se furtar à justiça, ajudou a que o país "regressasse" à região. E isso não é uma boa notícia. Tenho muita pena, confesso.

terça-feira, março 15, 2016

Fortes nos mares

Acabam de ser revelados, pelas autoridades do Oman, pormenores sobre os restos de uma nau de Vasco da Gama. É uma bela notícia que, por um momento, deveria estimular o nosso orgulho naquela aventura ímpar que foram as viagens de Quinhentos.

Recupero aqui um texto que publiquei em dezembro de 2012, escrito aquando de uma viagem ao Oman.

Ele aqui fica.

- Os portugueses chegaram aqui e construíram este forte, depois de terem circundado toda a África. Não é fantástico!

A expressão, de um responsável governamental do Oman, frente à fortaleza de Al-Jalali, o antigo forte de S. João, em Mascate, foi dita perante umas dezenas de pessoas, que logo me olharam, como se acaso os meus antepassados, de lá de Trás-os-Montes ou do Minho, pudessem reivindicar parte dessa glória. E eu, por tabela, como herdeiro natural das viagens que outros fizeram por nós.

- Pois na minha terra, no Benin, também construíram uma bela fortaleza, em Ouidah, disse uma voz, atrás de mim. Sorri silencioso, a lembrar-me do gesto estúpido do funcionário português que, em 1961, na iminência da sua expulsão de S. João Batista de Ajudá, deitou fogo a tudo, inclusivamente ao carro oficial, cuja carcaça hoje faz parte do museu no local.

A tanzaniana logo comentou: "Também construíram bastantes meu país", para logo o iraniano lançar: "há belos vestígios de Portugal na nossa costa", lembrando Ormuz.

Olhei em volta. O meu amigo do Qatar, que me fala sempre de ter nascido junto a um forte português, estava longe, ninguém do Bahrein andava por ali para lembrar o que também ficou por lá, a minha colega queniana não veio na viagem para lembrar Mombaça. Também não havia nenhum marroquino para citar a imponente Mazagão ou Safi, nem ninguém da Malásia para recordar Malaca, ou do Gana para recordar São Jorge da Mina. E, muito menos, algum indiano para citar o belo forte de Diu e o muito que aí ficou. Dos "Palop" não estava ninguém no grupo para inventariar a arquitetura militar portuguesa remanescente (do Cachéu a Luanda, da ilha de Moçambique ao forte de São Sebastião, em S. Tomé). 

Naquele instante, tive pena de não ter, à minha volta, mais vozes internacionais para ajudar ao coro de glória histórica. Até que uma brasileira, casada com um europeu, adiantou: "E então no Brasil!? Conhecem as fortalezas portuguesas no Brasil? São fabulosas!". Mas nem ela se podia gabar de, como eu, de ter visitado a grande maioria delas - a começar por essa maravilha de dificílimo acesso que é o forte Principe da Beira, bem junto à fronteira com a Bolívia.

Isto passou-se ontem, numa viagem da UNESCO ao Golfo, a que me associei, no gozo das minhas últimas férias como embaixador.

O tempo das fortalezas militares já lá vai. Mas Portugal deixou, por aí, um prestigiante mar desses monumentos, marcos de um tempo histórico em que dava algumas cartas. E alguns tiros, porque o poder também se faz disso. E hoje, graças a essa herança, se há ainda coisa em que, pelo mundo, somos fortes é em fortes...

Portugal na Grande Guerra


Hoje à tarde, participarei na RTP num debate sobre Portugal na Grande Guerra, abordando a dimensão diplomática da nossa intervenção.

Lula no Governo?


A possibilidade de Lula da Silva passar a integrar o governo brasileiro, que nas últimas horas tem vindo a ser especulada, não poderá deixar de ser considerado um momento triste para a democracia brasileira. 

A acontecer, a colocação do antigo presidente num lugar do executivo brasileiro, apenas para o proteger de uma eventual prisão, dessa forma garantindo que o seu caso judicial apenas possa ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal, constituiria um artifício muito pouco prestigiante, que, além do mais, denotaria fraqueza e insegurança. Que autoridade teria o "ministro Lula da Silva", enquanto a Justiça lhe rondasse a porta?

É verdade que o discurso do Ministério Público brasileiro surge, nos últimos dias, claramente politizado e enviezado politicamente contra Lula. Além disso, o modo desnecessariamente agressivo como o ex-presidente foi intimado a prestar declarações constituiu um manifesto exagero, aliás reconhecido como tal por figuras da oposição. Nota-se uma evidente quebra de serenidade na ação judicial, que, de forma algo gratuita, acaba por retirar alguma autoridade ao processo que conduz. Deslumbrada pela "rua" anti-PT, alguma Justiça brasileira poderá estar a cometer alguns desnecessários lapsos de percurso. Só por equívoco se pode pensar que as instituições podem furtar-se a seguir a sua fria liturgia, com plena preservação de direitos dos acusados, apenas para acompanhar o sentimento do momento da "rua". Isso tem um nome e esse nome não é democracia.

Mas nada disso, repito, poderá justificar a "fuga" de Lula para o governo. A dignidade do Estado impõe que este tipo de expedientes não deva ocorrer. Um político que não deve nem teme tem de ter a frieza para enfrentar todas as adversidades, com coragem, de forma limpa e transparente. Mesmo que a sua prisão possa estar ao virar da esquina. 

Mas é hoje muito óbvio que o cenário político brasileiro começa a adensar-se, como talvez nunca o tenha estado no passado, em torno de Dilma Rousseff, do PT e do próprio Lula - seja ele ministro ou não. Começa a ser evidente que está instalado um desespero nas hostes do governo, para cuja crise final já só falta o abandono por parte do PMDB, o maior partido brasileiro, que tudo indica estar apostado em vir a ser o beneficiário imediato desta "débacle" do PT. Michel Temer e a sua heteróclita formação parecem apenas medir a temperatura para promover a estocada final. O "day after", contudo, não é muito evidente.

O Brasil é uma grande democracia, com instituições que, no passado, já atravessaram testes importantes. A liberdade continua a ser a palavra de ordem da sociedade brasileira contemporânea. Como amigo do Brasil, só posso desejar que a estabilidade político-institucional seja rapidamente reencontrada. E que ressurjam, por "terras de Vera Cruz", a confiança e o otimismo, as duas grandes caraterísticas do povo brasileiro, que hoje parecem alheias ao seu quotidiano.

segunda-feira, março 14, 2016

Na morte do Senhor Contente


Ia escrever que conhecia mal Nicolau Breyner. Mas parei. Nicolau Breyner faz parte daquelas pessoas que todos conhecemos, praticamente, desde sempre. E que, por isso, nos vai fazer falta.

A primeira memória que dele tenho, como ator ao vivo, foi numa revista que vi no Sá da Bandeira, no Porto, creio que em 1967 ou 1968. Depois, com os anos, para além de outras presenças no Parque Mayer e noutros locais, a televisão tornou-o "one of us". Logo após o 25 de abril, vim a cruzar-me com ele nas "guerras" do período pós-Revolução, cujo entusiasmo partilhou por algum tempo, para depois se aproximar de áreas mais conservadoras. Sempre prevalecia nele o sorriso, a alegria, a graça espontânea. E, também, a delicadeza, a inteligência, a cultura, que, por vezes, não eram suficientemente relevadas, na frequente "ligeireza" de alguns papéis que lhe era dado representar. Recordo-me de como, em outras ocasiões, deu mostras de estar muito para além disso, por exemplo na personagem de natureza muito diferente que lhe coube fazer na telenovela "Vila Faia", em peças de teatro e no cinema. Nicolau Breyner era um excelente ator. Mas era também um criador cultural de grande mérito.

Descobrimos um dia que éramos vizinhos. Às vezes falávamos, por uns minutos, no meio da rua, com ele a passear o cão. Era público que tinha passado por problemas de saúde, mas não o sabia doente. 

Nicolau Breyner deu-nos muitas horas de alegria. Devemos-lhe agora um momento de tristeza.

O estado do Estado

O que vou dizer apoia-se na minha experiência. Aceito que outros possam ter uma perceção diferente. E poder estar equivocado.

Do que vi e ouvi ao longo de muitos anos, os Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa Nacional são os dois departamentos do Estado que, aquando da mudança de governos, apresentam aos novos titulares dossiês, sobre o "estado da arte" em todas as áreas da respetiva competência, com maior neutralidade e equilíbrio. No caso de muitos dos restantes ministérios, a excessiva partidarização ou a condução ideológica dos temas leva a que as novas tutelas olhem o que lhe é passado, nas transições, com menor confiança. Posso estar a ser injusto, mas é o que me chega.

Quando, há uns tempos, comentei isto com alguém ligado ao anterior governo, acrescentei o Ministério das Finanças a essa curta lista de departamentos. Era essa então a minha ideia. A reação dessa pessoa foi imediata:

- As Finanças?! Está completamente enganado! O Ministério das Finanças, tal como você e eu o conhecemos no passado, já desapareceu. Aquilo que nós víamos como um pilar do Estado, com sólidos e conhecedores departamentos, com diretores-gerais prestigiados e estáveis no tempo, acabou há muito. Agora, aquilo é enxameado ciclicamente por uma "rapaziada" trazida pelos ciclos políticos e, para o que realmente importa, no tocante a pareceres, vive de "outsourcing", pagando balúrdios a empresas e escritórios de advogados. 

Há pouco, ao ler os números astronómicos que foram pagos pelo Estado nas assessorias para os "brilhantes" contratos de "swaps", pareceu-me que a opinião daquele meu amigo ficou confortada.

domingo, março 13, 2016

Encontros imediatos

Combinei passar por lá para beber um copo, ao fim da tarde. Era a casa de um amigo, diretor da delegação de um banco português em Londres, onde eu estava colocado como diplomata. Ele tinha por lá três pessoas, vindas de Lisboa, de passagem, que queria apresentar-me. Foi há mais de vinte anos.

O meu amigo veio buscar-me à porta e, entrado na sala, de entre as três caras que por lá se encontravam, houve uma que me foi logo familiar. O nome dele dizia-me qualquer coisa e, sem a menor sombra de dúvida, conhecia-o pessoalmente. Ele também me reconheceu, de imediato, sabia quem eu era.

- Ah! Já se conheciam?!, constatou o meu amigo.

Ambos anuímos, sem a menor margem para dúvidas. Mas, perguntados de onde vinha esse conhecimento, começámos a hesitar. Eu alvitrei que talvez tivesse sido do serviço militar, mas não, ele não andara por lá. Tentámos o Porto, depois a faculdade, os países estrangeiros onde eu vivera, as tertúlias dos cafés, a política... Nada! Ele sugeriu alguns nomes de pessoas em casa de quem nos poderíamos ter encontrado, que nos podiam ter sido comuns numa qualquer ocasião. Mas nada coincidia.

A situação era algo constrangente. A ocasião, essa, ficou "raptada" por esse mistério. Os restantes presentes olhavam-nos, com um ar divertido. Nós fazíamos figura de parvos, ainda a lançar hipóteses para a conversa. Até ao final do encontro, não chegámos a nenhuma conclusão. 

Ao longo dos anos, a dúvida perseguiu-me: onde é que eu teria conhecido aquele tipo? Voltei a encontrá-lo mais tarde já em Portugal, já por diversas vezes, em situações várias. Até já nos tratamos por tu... 

Ontem, nem sei bem porquê, o nome dele veio à baila numa conversa. E, de repente, "fez-se-me luz". Lembrei-me que o havia conhecido num almoço, aí por 1976, num restaurante, com um amigo comum, montijense como ele. A memória tem destas coisas! 

sábado, março 12, 2016

Seguro e Rushdie

António José Seguro regressou ao espaço público, do qual se tinha afastado por vontade própria, depois de ter perdido as eleições internas no PS contra António Costa. Fê-lo na sua qualidade de académico, apresentando um livro que escreveu sobre o parlamento português. Muitos amigos estiveram por lá, a dar-lhe um abraço.

Infelizmente, razões imperiosas de última hora impediram-me de estar presente nessa sessão de lançamento da obra, que decorreu na sua e minha universidade - a Universidade Autónoma de Lisboa -, onde ambos lecionamos, no mesmo departamento de Relações Internacionais.

António José Seguro é um homem de bem e um amigo pessoal. Enquanto foi secretário-geral do PS, tive imenso gosto em com ele colaborar, em especial no aprofundamento de algumas questões europeias, no quadro da iniciativa "Novo Rumo", de cujo "núcleo duro" faziam também parte Caldeira Cabral, Maria João Rodrigues, Sampaio da Nóvoa e Lídia Sequeira.

Antes, eu estivera com ele num dos governos de António Guterres e acompanhara de perto a sua atividade no Parlamento Europeu. É uma figura seriíssima de cidadão e, por muitos erros que possa ter cometido enquanto líder socialista, ninguém o pode acusar de não ter sempre atuado de um modo empenhado, tentando fazer aquilo que considerou ser o melhor para o seu e nosso país.

Ao escrever isto, lembrei-me de como o conheci.

Um dia, em Londres, aí por 1991, recebi um telefonema de António José Seguro. Eu era "ministro conselheiro" na embaixada, isto é, o substituto legal do embaixador. Só conhecia então Seguro de nome, como líder da Juventude Socialista. Nunca antes tínhamos falado.

Disse-me que estava a organizar a vinda a Portugal de Salmon Rushdie, o escritor que, ao publicar o livro "Versos Satânicos", provocara a ira do fundamentalismo religioso iraniano, que sobre ele decretara uma "fatwa", uma decisão que estimulava os muçulmanos shiitas a ajudarem à sua liquidação. Vivia sob ameaças constantes de morte, sob proteção policial, viajando às vezes sob nome falso.

Seguro disse-me que a JS, creio, decidira convidar Rushdie a vir ao Porto, a uma iniciativa sobre liberdade de informação e criação, já não sei em que âmbito. O assunto estaria totalmente sob controlo em Portugal, em termos de segurança, com a PSP devidamente envolvida, cujo comandante, se necessário, poderia ser contactado sobre o assunto. Em Londres, no entanto, no balcão da TAP, as pessoas que ajudavam Rushdie tinham encontrado inesperadas dificuldades, pelo que o assunto estava num impasse. O que António José Seguro pretendia era que a embaixada arranjasse um interlocutor, na delegação da TAP, que pudesse fazer o tratamento personalizado da questão, a qual não era, visivelmente, "business as usual".

Assim fiz. Expliquei ao diretor da TAP em Londres o problema e pedi-lhe que alguém recebesse uma determinada pessoa de que Seguro me deu o nome. É assim que este tipo de questões, com maior delicadeza, sempre se tratam. Não meti nenhuma "cunha", nem pedi que fizessem nada de especial. Nem eu sabia, nem queria saber, se o que eventualmente os amigos de Rushdie pretendiam era possível ou não. A TAP que ajuizasse, depois da conversa. E esqueci o assunto. Pelos jornais, dias depois, vi que Rushdie tinha ido ao tal encontro no Porto.

Eis senão quanto, sou informado que tinha sido ordenado, contra mim, a pedido do gabinete do primeiro-ministro português, um inquérito por alegada "pressão" minha junto da TAP, num caso que tinha afetado a "segurança nacional". O tom era sério, o MNE, na sua subserviência empanicada face a S. Bento, passara de imediato a bola para o meu embaixador. O qual, claro, deu "dois berros" por escrito que acabaram por anular o assunto, depois de eu relatar aquela que era uma verdade bem simples e verificável. Ah! "For the record": o primeiro-ministro de então chamava-se Cavaco Silva.

sexta-feira, março 11, 2016

CPLP - A hora da verdade



Posso ser sincero? A CPLP tem duas décadas de existência e, há que dizê-lo com frontalidade e transparência, estes vinte anos não foram os mais entusiasmantes.

Houve países que investiram a sua vontade política na CPLP. Outros fizeram os mínimos, outros nem isso. A profunda desigualdade entre os Estados integrantes, as diferentes prioridades em que cada um coloca a organização no quadro das suas opções externas – tudo isso contribuiu para desenhar uma manta de retalhos, aqui ou ali nem sempre muito bem servida pelas personalidades a quem competiu desempenhar o cargo de Secretário-Executivo. Presumo que não seja politicamente correto dizer isto “alto”, mas eu, que estou de fora, não me coíbo em afirmá-lo.

A CPLP tem urgentemente de se repensar. Neste tempo de refluxo global da liberdade de circulação, ou a organização se consegue relançar como um espaço de cidadania coletiva, visivelmente útil para todos os seus cidadãos e Estados, ou o seu destino continuará a ser o estiolar na rotina declaratória das cimeiras. Por essa razão, criar tensões artificiais, para tentar relançar jogos de poder, é um gesto gratuito e até irresponsável. Nesse caso, talvez fosse melhor assumir, com coragem, o desafeto lusófobo ao projeto, em lugar de estimular polémicas que podem ter efeitos detrimentais nas relações bilaterais. Ou então, se esse é objetivo, assumi-lo abertamente.

Sei que o tema não é cómodo para muitos, mas também não vale a pena esconder que a adesão da Guiné Equatorial – forçada pela generalidade dos restantes membros, contra a vontade portuguesa – não configurou a “finest hour” de uma organização que se havia assumido, no seu início, com uma vocação ético-política, e que acabou por vergar-se à realpolitik. Goste-se ou não, essa adesão deixou feridas, descredibilizou profundamente a organização e permanece como um ferrete de que a CPLP se não libertou. O facto dos diferentes países ainda hoje olharem para esta realidade de forma contrastada é, em si mesmo, prova da fragilidade dos princípios comuns da organização.

Tenho-o dito e escrito, desde há muito: enquanto a CPLP não for assumida pelo Brasil como um instrumento essencial da sua política externa, a organização tem escassas possibilidades de evoluir e de afirmar-se à escala global. E nunca, até hoje, o foi. Em 2016, o Brasil assume a presidência rotativa da CPLP. Fá-lo-á passando a ter como embaixador junto da organização um diplomata que conheço muito bem, com grande qualidade e prestígio. Esta é uma oportunidade soberana para Brasília dar mostras de liderança e capacidade para relançar um projeto que, para ter “pernas para andar”, necessita, apenas e só, de vontade política. Porque acho que a ideia da CPLP permanece cada vez mais válida, confesso que ando à procura de razões para alimentar o meu otimismo.

quinta-feira, março 10, 2016

Grande Guerra


A mão visível


Para o retrato a óleo que quis deixar para a posteridade da galeria presidencial, Aníbal Cavaco Silva decidiu escolher, para além do texto constitucional, um clássico económico do liberalismo, "A Riqueza das Nações", de Adam Smith.

Um dos princípios que essa obra consagrou é o da "mão invisível", isto é, a defesa da ideia de que, num mercado livre, em que cada um atua na defesa dos seus interesses económicos próprios, a lógica do funcionamento do próprio mercado acaba por proporcionar vantagens para todos. Cada um a seu modo, esta é a "fé" básica dos liberais, com ou sem o "neo" atrás. Pelos vistos, o economista de quem tivemos uma década como chefe de Estado cessante também concorda.

Para a esmagadora maioria das pessoas, terá passado desapercebido que, no meio do discurso de posse de Marcelo Rebelo de Sousa, surgiu uma frase em que ele se afirma solidário com "aqueles que a 'mão invisível' apagou, subalternizou e marginalizou". Quase ninguém notou, mas estou seguro que o novo presidente não escreveria o que leu se não quisesse que se notasse essa sua diferença.

quarta-feira, março 09, 2016

A República está em festa?


O "responsável" é Cavaco Silva ou Marcelo Rebelo de Sousa? É que a República parece em festa. Só podemos esperar que a festa dure!

A menina do telefone


Tem vinte e tal anos, quase trinta. Está por ali, à noite, encostada às paredes ou aos carros, ou sentada no passeio. Às vezes ao frio e à chuva, outras sob o calor. Associo-a à noite, mas, agora reparo, também a encontro, por vezes, ao fim da tarde. Isto passa-se há, pelo menos, dois anos.

Fala ao telefone, sempre e muito. Às vezes parece ser só ela a falar. Entre nós, ao vê-la, dizemos: "Olha! Lá está a miss Telecom!". Deve morar ali perto e, provavelmente, a busca da privacidade obriga-a a procurar a rua para a conversa. Nunca estive muito atento ao que diz, embora ela fale alto. O tom é sempre grave, de discussão, como se houvesse um eterno problema com o interlocutor. Às vezes, há uns fiapos de conversa que, inevitavelmente, não consigo deixar de ouvir: "Eu já te tinha dito que não posso admitir..." ou "as coisas têm de ficar resolvidas, de uma vez por todas..." e coisas do género.

Fico triste com aquilo que parece ser a tristeza persistente daquela jovem mulher, que nunca esboça um esgar sorridente, que dá ares de carregar com ela, nas olheiras, o peso dos problemas do mundo. Será namoro? Deve ser. Mas que diabo tenho eu a ver com a vida dela? Nada, claro. Mas se ela faz parte da paisagem da minha rua, ao seu modo, também faz parte do cenário da minha vida.

Marcelo


Chega hoje a Belém. Esperemos que para bem. Não votei nele, mas desejo, com a maior sinceridade, que, nos próximos cinco anos, saiba interpretar o interesse do país, que conhece muito bem. Entra de mãos livres, com escassa dependência partidária, o que lhe confere uma maior responsabilidade. Por um tempo de graça cuja duração só dele depende, terá a possibilidade de ser o presidente da "acalmação", como noutros tempos se dizia.

Julgo que o conheço bem, mas quantos de nós não dirão o mesmo? É um homem inteligente, arguto, rápido, perspicaz. Por muito que o olhemos sempre no meio de muita gente, é um solitário. Confia imenso em si mesmo, porque a vida lhe tem dado razões para isso, porque a sorte também o tem bafejado, embora a sorte dê muito trabalho. Espera-se que, em Belém, saiba ouvir e seja capaz de refrear um estilo impulsivo que, por vezes, o fez cometer alguns erros. Erros que, no entanto, não foram suficientes para estragar o "percurso limpo" que, com maestria estratégica, o levou até à Presidência - verdade seja que também por falta de comparência de uns e por falta de jeito de outros.

Não vale a pena sublinhar o contraste que fará com a imagem de Cavaco Silva, que ele procurará tornar muito evidente, sem nunca o dizer. O seu modelo de presidente, também sem o dizer, é, na realidade, Mário Soares - no abraço, na afetividade, na simplicidade que, nem por ser ensaiada com coreografia de mestre, de uma forma tão natural que já faz parte de si mesmo, deixa de ter alguma coisa de genuíno. No fundo, estou certo de que, no dia que sair de Belém, também lhe não desagradaria ser comparado, em postura ética, a Jorge Sampaio. Mas também nunca o dirá. Será igual a si mesmo. Enfim, logo veremos!

terça-feira, março 08, 2016

Cavaco Silva


Aníbal Cavaco Silva sai amanhã da cena política. Em quase metade da minha vida como servidor público tive-o como ministro, primeiro-ministro e presidente da República.

Conheci-o ainda antes, como examinador, na minha prova oral de entrada para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 1975. Ele era então um jovem professor de economia, regressado de York, onde se tinha doutorado. Foi uma prova exigente, dura, mas correta. O tema - assuntos europeus - estava, à época, muito longe de ser a minha especialidade... Saí-me, creio, assim-assim. Tive a classificação que merecia.

Trocámos impressões sobre esse episódio, quatro anos mais tarde, na Noruega, era ele ministro das Finanças e eu diplomata na nossa embaixada. Notei o prazer que revelava por ter sido membro desse júri de admissão dos novos diplomatas. É, de facto, uma tarefa nobre e interessante. Também eu, anos mais tarde, fiz parte dos membros desse júri, ao lado de outro examinador que se chamava Marcelo Rebelo de Sousa.

Se, como ministro, Cavaco mantinha uma certa reserva, que sempre me pareceu fruto de alguma timidez e aversão a terrenos onde se não sentisse seguro, como primeiro-ministro fiquei com a sensação de que estimulou (ou aceitou, com agrado - a doutrina divide-se) a criação, à sua volta, de uma redoma de proteção, com uma hiper-segurança e uma corte reverente que o isolava. Creio que se sentia bem confortável assim, distante, parcimonioso na palavra, frio a um ponto de ser quase desagradável. É "um estilo", dizem alguns. Talvez, mas os estilos sujeitam-se a ser qualificados por quem se confronta com eles.

Por coincidência, fui o primeiro embaixador português a ser recebido por Cavaco Silva, enquanto presidente. Notei-o nesse dia mais solto, como se o regresso à política, noutro patamar, depois de uma década de travessia do deserto, lhe tivesse feito bem. Contudo, essa impressão não se confirmaria nos anos seguintes, onde o fui sentindo progressivamente crispado, como se o atravessasse uma desconfiança permanente, o receio de um passo em falso, um cuidado extremo em funcionar "by the book".

Na última vez que nos cruzámos, em 2013, estávamos ambos de fraque, nos dourados de Queluz. Eu,  já reformado da função pública portuguesa, representava uma entidade internacional, o Conselho da Europa, na cerimónia anual de cumprimentos ao chefe do Estado pelo corpo diplomático estrangeiros acreditado em Lisboa. Era então diretor executivo do Centro Norte-Sul, curiosamente uma organização a que Cavaco Silva dedicou sempre grande interesse. Não tive tempo para lhe lembrar que, em 1989, fora eu, enquanto diplomata, quem lhe escrevera o discurso que fez na inauguração do Centro.

Nunca mais encontrei pessoalmente Aníbal Cavaco Silva. Neste que é o último dia da sua função presidencial, acho que o mínimo de elegância aconselha a não falar demasiado do lado político de Cavaco Silva, particularmente por parte de quem, desde o primeiro dia que com ele se encontrou, nunca teve um mínimo de sintonia com a sua forma de estar na política e no serviço público. Não duvido, longe disso, que Cavaco, como ontem disse, tenha sempre agido na convição de que o fazia "de acordo com o superior interesse nacional". Porém, se um político a quem o país deu quatro maiorias absolutas acaba com a popularidade mais baixa do que qualquer outro presidente teve no final do seu mandato, das duas uma: ou é ele que está enganado ou foi o eleitorado que se equivocou. A História irá escolher.

A esquerda da esquerda

A propósito do post que ontem aqui publiquei sobre o PCP, ocorreu-me que parte da tensão que ainda hoje se vive entre aquele partido e o Bloco de Esquerda encontra a sua justificação no conflito ideológico que, desde o início dos anos 60, se instalou na "esquerda da esquerda" portuguesa. E que, na realidade, nunca se apagou por completo, até aos dias de hoje.

Não me proponho revisitar aqui a história da multiplicidade de tendências que surgiram, a partir de 1964, na extrema-esquerda portuguesa, numa cascata de organizações que tinham como ponto comum a diabolização do PCP e o apelo à "reconstrução" do "verdadeiro partido comunista". Mas vale a pena lembrar que esse longo e complexo tecido de organizações acaba, em grande parte, por convergir numa organização frentista que, logo em 1976, consegue eleger um deputado para a Assembleia Constituinte, a UDP - União Democrática Popular. A UDP, ou o que dela restava, acaba por ter um papel fundamental na criação do Bloco de Esquerda, em 2000.

Mas não esteve sozinha. Outro dos componentes do Bloco foram os trotskistas, nomeadamente os que eram oriundos do Partido Socialista Revolucionário.

Há um profunda ironia em ver juntas no mesmo partido pessoas que emergem de correntes estalinistas e trotsquistas, as duas alas mais ferozmente antagónicas do movimento comunista internacional. Não sei se, pelo mundo, um facto como estes é comum.

O Bloco tem ainda uma terceira componente, constituída por figuras que, entretanto, se tinham afastado do PCP mas não ingressaram no PS, parte dos quais tinham criado a Política XXI.

A essa amálgama vêm ainda a somar-se (poucos) nomes que haviam estado no MRPP (a única das organizações maoístas, embora também ferozmente anti-PCP, que não nasceu da divisão de 1962) e outros militantes autónomos, em especial de meios católicos radicais e promotores de causas "fraturantes".

O Bloco parece-me ser isso - mas admito que outros tenham uma diferente leitura da que faço. E devo dizer que, acompanhando com alguma atenção, desde há décadas, a "cissiparidade" endémica da extrema esquerda portuguesa, fico surpreendido com a capacidade de união que uma formação com tanta diversidade tem conseguido manter ao longo destes anos.

O PCP manteve sempre à distância, sem a menor exceção, todas as organizações situadas à sua esquerda, dos maoístas aos trostskistas e anarquistas, embora dando sempre mais atenção crítica aos primeiros. Antes do 25 de abril, Álvaro Cunhal escreveu mesmo um pequeno livro onde fazia a denúncia desses movimentos, a que deu um título que é auto-explicativo: "O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista". Já depois do 25 de abril, um militante comunista, José Manuel Jara, publicou "A farsa dos pseudo-radicais em Portugal" (1974) e "O Maoísmo em Portugal" (1975), onde pretendeu prolongar e desenvolver a denúncia de Álvaro Cunhal.

Nada indica que pontes entre o PCP e o Bloco de Esquerda possam vir a ser construídas, não obstante a vizinhança de assentos no plenário de S. Bento. As velhas querelas mantêm-se e, em certa medida, ambas as formações têm um espaço de crescimento potencial que é comum e, por isso mesmo, continuam em natural disputa entre si.

António Costa não os conseguiu sentar à mesma mesa a assinar o acordo que sustenta o seu governo. Mas, "chapeau!", tem sido suficientemente hábil para os manter a bordo da "geringonça", que tem funcionado melhor do que muitos supunham. A começar por mim.

segunda-feira, março 07, 2016

95 anos


É uma bela idade para um partido, aquela que o PCP ontem comemorou.

Dos partidos existentes, e por data de criação, o PS, que surge em 1973 (52 anos depois!) pode ser considerado o segundo mais antigo. PSD (então PPD) e CDS-PP (então CDS) foram criados já em 1974, depois da Revolução.

Nascido em 1921, por transformação em partido de uma organização de raiz anarquista surgida dois anos antes, no auge do entusiasmo gerado no movimento operário pela Revolução russa, o PCP foi uma estrutura sempre muito débil até ao final da I República. Só o declínio do movimento anarquista, no início dos anos 30, muito atingido pela severa repressão da ditadura militar, que paralelamente exilou o "reviralhismo" e não teve dificuldade em controlar a esquerda intelectual de matriz socializante, permitiu ao PCP vir a ter um papel mais relevante na luta operária que então ainda se conseguia afirmar. Desde o seu início, o Estado Novo iria ser impiedoso para com os comunistas, tal como o fora com os anarquistas, conseguindo mesmo, por algum tempo, quase anular a sua atividade. Só a partir da década de 40 é que o PCP começou a ter maior expressão na luta oposicionista, conseguindo, muito graças aos seus setores intelectuais, estabelecer pontes com o republicanismo tradicional e com as correntes socialistas, se bem que estas fossem muito pouco representativas. Internamente, o partido - cuja fidelidade a Moscovo, sem limites ou reticências, o tornou mimético e acrítico face às mudanças que foram ocorrendo na URSS - sofreu entretanto várias convulsões na sua liderança e mesmo alguns "desvios" no seu percurso. Contudo, desde os anos 40, o PCP nunca abdicou de privilegiar o "frentismo" como forma de ação política, onde sempre procurou fazer prevalecer a sua linha estratégica, que se revelou nem sempre conforme com as dos seus vários aliados. Em especial desde o final dos anos 50, bem cientes da sua força objetiva relativa, os comunistas procuraram assegurar cada vez mais uma liderança firme no seio da oposição, prestigiados como estavam pela sua postura de grande coragem e sacrifício em face da repressão do regime, bem como por uma atitude de forte coerência na luta anti-colonial. Porém, logo de seguida, com o início da década de 60, e como consequência direta do cisma sino-soviético, o PCP ver-se-ia fortemente contestado à sua esquerda, o que lhe criou a necessidade de dar resposta política a uma multifacetada crítica ideológica, que teve especial expressão nos meios académicos. O surgimento de uma forte agitação no movimento católico e o surto de crescimento do movimento sindical trouxeram, entretanto, terrenos novos e férteis à ação do PCP, que, até ao 25 de abril, revelou sempre algum interesse em manter um diálogo crítico com a corrente socialista, apenas com um afastamento acentuado, mas pontual, nas "eleições" de 1969. Porém, de forma incontestável, o PCP iria chegar à Revolução como a força política mais relevante no seio da oposição à ditadura.

Depois, a história é mais conhecida. Parabéns ao PCP, agora reconduzido a uma formação política com responsabilidades de sustentação do poder.

domingo, março 06, 2016

Margem esquerda


Durante a tarde de ontem, numa associação popular do Barreiro, debati, durante mais de duas horas, com o deputado Porfírio Silva e uma interventiva audiência, essa questão essencial que são as alternativas possíveis em matéria de política económico-financeira, numa Europa em evidente crise e no seio da qual a gestão da posição de um país como Portugal é extraordinariamente difícil. Dou-me conta de que, em pouco tempo, esta é a terceira vez que a discussão sobre a Europa me leva "à outra banda", como dizem os lisboetas.

Não sei se o debate foi conclusivo, não posso avaliar se as pessoas saíram mais esclarecidas ou se as nossas dúvidas não acabaram por tornar ainda mais complexa a sua leitura sobre o estado do processo integrador do continente. Tenho sempre uma grande dificuldade em avaliar o saldo final de interesse de quem nos escuta. 

Mas quero dizer, com a maior sinceridade, que saí daquela sessão "com a alma lavada", por observar um grande número de jovens, misturados com outros mais velhos mas que estavam longe de ser a maioria, atentos e a discutir com grande abertura, preocupados com a Europa e a interrogar-se sobre a melhor atitude para a defesa dos interesses de Portugal, avançando com as perguntas certas, sem tremendismos, mas também sem líricas ingenuidades. 

É verdade que a organização pertencia à Juventude Socialista do Barreiro, mas foi reconfortante encontrar também por ali jovens do CDS-PP e do Bloco de Esquerda, visivelmente interessados em temáticas das quais depende o nosso futuro como país. 

Cheguei ao Barreiro pela avenida Alfredo da Silva e saí pela avenida Bento Gonçalves. Isto parece-me que diz alguma coisa sobre o equilíbrio salutar que hoje se vive naquela terra, pela qual me habituei a ter um grande respeito histórico, porque por ali se cruzam memórias muito profundas da luta pela construção da nossa democracia.

sábado, março 05, 2016

Uma censura de Ferro


No âmbito de um trabalho que estou a fazer a convite do "News Museum", que no próximo mês vai abrir em Sintra, consultei nos últimos dias alguma bibliografia sobre António Ferro, o principal artífice da propaganda do salazarismo. Ferro é uma figura controversa, que junta facetas muito contrastantes. Não deixa, no entanto, de ser uma personalidade muito curiosa e quase fascinante, merecedora de destaque e de atento estudo, pelo seu perfil cultural e pelo papel político que desempenhou.

Há meses, insurgi-me aqui sobre uma biografia de António Ferro, da autoria de Orlando Raimundo, que critiquei, porque entendi politicamente preconceituosa. No entanto, não deixei de ler o livro e de dele extrair alguns ensinamentos. Goste-se ou não do trabalho, é uma contribuição incontornável para o tratamento futuro da figura de Ferro.

Ontem, adquiri uma outra obra, muito recente (fevereiro de 2016), intitulada "António Ferro - 120 anos", que traz a atas de um colóquio organizado pela Fundação António Quadros (filho de Ferro e dessa figura também muito interessante que foi a escritora Fernanda de Castro). No final do volume, os organizadores (pelo nome, familiares de Ferro) inserem uma "bibliografia passiva", com 24 obras sobre António Ferro, que eu pensei quase exaustiva, à luz daquilo que eu conheço.

Tentei então descobrir nessa lista a obra que eu próprio tinha criticado. Mas o livro de Orlando Raimundo não figura na bibliografia. Porquê? Seguramente porque a deontologia científica da Fundação António Quadros não chega ao ponto de poder conviver com o contraditório e cede afetivamente à parcialidade. É pena. Ao assim proceder, a Fundação adota os métodos censórios do regime ditatorial de que António Ferro foi tão fiel servidor. Mas não serve a História, que poderia ajudar a consagrar o seu antepassado. É que a História ouve todos os lados, mesmo os que não são simpáticos.

sexta-feira, março 04, 2016

Lula


Ao contrário de muitos dos meus amigos brasileiros e de alguns portugueses, fico triste com a detenção do antigo presidente brasileiro Lula da Silva. Seria muito mais fácil não o dizer no dia de hoje, mas digo-o, sem hesitações.

Porquê? Por três razões.

Porque durante os quatro anos em que fui embaixador português no Brasil, só recebi do presidente Lula manifestações de interesse e carinho por Portugal, que eu ali representei. Porque, depois da minha saída do Brasil, continuou a ter para comigo gestos de simpatia e atitudes reveladoras de amizade e atenção. E isso não esqueço. Estando ele na cadeia ou fora dela.

Porque faço uma avaliação globalmente positiva dos seus mandatos, do salto que fez dar à sociedade brasileira, do sopro de esperança que trouxe a pobres e desfavorecidos, da fome que tirou a milhões dos seus concidadãos e do impulso extraordinário que deu à imagem e ao papel do Brasil pelo mundo.

Mas também porque me preocupa a radicalização que a situação política interna do Brasil possa vir a sofrer, por virtude desta ação da justiça. Há uma parte importante do Brasil que tenho a certeza de que vai interpretar esta detenção como uma espécie de vingança histórico-política, para evitar a sua recandidatura em 2018.

Se a humilhação por que Lula hoje passou tiver sido gratuita, espero que alguém seja por ela fortemente responsabilizado. Não se humilha um antigo chefe de Estado sem razões muito sólidas e incontroversas.

Mas que fique também bem claro: se se vier a confirmar que Lula da Silva é indiscutivelmente culpado dos crimes que lhe venham a ser imputados, desejo sinceramente que a justiça brasileira o condene e o faça pagar por isso, à medida exata das suas responsabilidades.

Digo aquilo que já disse noutro caso: acho sempre especialmente grave se se vier a provar que uma pessoa traiu a confiança democrática que o voto popular lhe confiou, para disso tirar vantagens materiais de natureza pessoal. Nesse caso, e sob prova concludente, deverá ser punida de modo exemplar. A justiça democrática por que Lula sempre disse lutar é isso mesmo.

A liturgia das instituições



Há dias, o líder do Podemos, nas mesmas mangas de camisa com que se apresentou semanas antes a uma convocatória feita pelo rei, foi ao centro do hemiciclo parlamentar espanhol e pespegou um beijo na boca de outro político radical, ao que parece congratulando-o por uma intervenção. A foto correu mundo, talvez com maior difusão do que aquela que, tempos antes, mostrava uma criança, filha de uma deputada do mesmo partido, a mamar, também durante uma sessão das Cortes.

Não há a mais leve dúvida de que gestos e trajes como estes têm como finalidade tentar dessacralizar as instituições, transmitir a ideia de que elas devem evoluir e tornar-se um espelho da própria sociedade, perderem a rigidez protocolar e, quem sabe se por essa via, aproximarem-se dos cidadãos.

Não tenho porém a certeza de que a banalização das instituições favoreça a democracia. Pode, no imediato, conferir alguma popularidade àqueles que “abanam” os modelos políticos, como que a relembrar que há um outro mundo, que não se revê no formalismo, e que ganhou o direito de cidade de ali estar. Mas tenho a maior das dúvidas de que o ruir de algumas liturgias acabe por funcionar em reforço da eficácia e da legitimidade dos modelos de representação.

Confesso que me choca o modo como alguns deputados do nosso parlamento se vestem, num “casual” que roça a bandalheira, não muito distante do sinistro fato-de-treino. Não é tanto a falta da gravata que se contesta: há modos de vestir sem gravata cuja manifesta elegância substitui a de um fato tradicional.

Carlos Brito, o antigo deputado comunista, conta num seu livro que, num dos primeiros anos da democracia, um seu colega, indicado para acompanhar uma visita oficial ao estrangeiro, anunciou que não ia utilizar gravata, não obstante as regras protocolares recomendarem um traje formal em certas ocasiões da deslocação.

A persistente resistência do deputado fez subir o assunto a Álvaro Cunhal. O secretário-geral lembrou então que é muitas vezes adequado, em alternativa às roupas protocolares europeias, o uso em cerimónia oficiais de trajes tradicionais, acrescentando: "Ora nós temos trajes tradicionais muito bonitos, por exemplo, os minhotos". E logo adiantou: "O nosso camarada podia ir vestido de minhoto e evitava-se a gravata. Até podemos telefonar já aos camaradas de Viana e encomendar já um fato". O deputado correu a comprar uma gravata.

Há dias, ao ver um secretário de Estado do governo socialista, nos salões estadonovistas das Finanças, apresentar o orçamento em atitude desengravatada, perguntei-me se acaso um traje típico não seria mais adequado.

quinta-feira, março 03, 2016

Amigos & livros


Nada há de melhor do que ter amigos e ter livros. E, quando os livros são dos amigos, melhor ainda.

Luís Castro Mendes é um excelente poeta. E diplomata. Entrámos para o MNE no mesmo dia, mas ele vai sair de lá mais tarde, porque é um "rapaz" mais novo. Andámos em tempos diferentes por terras comuns (Angola, Brasil), cruzámo-nos por Paris, visitámo-nos pelo mundo, sempre trocando cumplicidades e bebendo copos à amizade e à comunhão de ideias. O Luís publicou agora mais um livro da sua poesia, apresentado, há dias, pelo Nuno Júdice e rodeado de uma legião de amigalhaços, como ele gosta. Quem nos abre a vontade de ir a Trebizonda bem o merece.

No dia seguinte, isto é, ontem, o João Paulo Guerra lançou um seu romance. Já o estou a ler e, como disse o Carlos Matos Gomes, que o apresentou, é um murro no estómago, porque insiste em tratar como deve ser a traumática dimensão humana da guerra colonial - que uma escola historiográfica delicodoce traveste de "guerra do ultramar" ou "guerra de África". A escrita do João, oriunda da melhor escola do jornalismo, está cada vez melhor. Mas faz-me falta, confesso, ouvir a sua inconfundível voz na rádio. Mas ele não faz parte - nunca fez! - das "playlists" da moda.


Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...